Assim como no Brasil de hoje, até 1975 mulheres suecas eram obrigadas a recorrer a clínicas clandestinas e inseguras; desde então, país registra estabilidade tanto na taxa de abortos anuais quanto no crescimento da população.
1975. Maria descobre que está grávida e, depois de muita angústia e desespero, vividos em total solidão, decide abortar. Conversa com algumas amigas que sabem “o caminho das pedras”: uma clínica de aborto clandestino fora da cidade. Marcado o dia do procedimento, ela pega o trem para o interior sentindo-se uma criminosa fugitiva. Chegando ao local, percebe a inferioridade e insegurança da infraestrutura, mas se entrega à cirurgia entre o arrependimento, a angústia e a culpa. No mesmo dia, volta para casa, tem uma grave hemorragia e é encaminhada à emergência do hospital “legal”. Cercada por olhares julgadores da equipe médica, e pelo preconceito e rejeição da própria família, Maria morre. Fim.
2015. Maria descobre que está grávida e, depois de muito pensar e conversar com seu companheiro, decide abortar. Vai até a clínica de mulheres do hospital da cidade e é recebida pela equipe médica treinada e designada para trabalhar com a temática. Mas Maria ainda está insegura sobre sua decisão, pois se sente culpada e, por isso, pede a ajuda de um psicólogo. A consulta é marcada e o profissional a ajuda a expressar seus sentimentos e conflitos em torno da gravidez e do aborto, sem direcionar sua decisão. Maria sai da clínica e, passados alguns dias, marca o dia do procedimento. No dia, toma o remédio indicado pela clínica e espera o efeito em casa – poderia ficar na clínica, mas achou melhor estar com alguém de seu círculo afetivo. Feito o aborto, novas consultas para controle são marcadas. A ela, é oferecido também acompanhamento psicológico pós-aborto. Fim.
As duas histórias acima são fictícias, mas baseadas em fatos reais. Elas mostram dois momentos distintos da história recente da Suécia: o antes e o depois da legalização do aborto no país. A lei, que devolveu às mulheres suecas o direito de decidir sobre seus próprios corpos, completou 40 anos em janeiro, e foi comemorada como uma das conquistas de direitos humanos e igualdade mais importantes de todos os tempos no país. Até mesmo um grande festival de música, organizado pela organização de direitos sexuais e reprodutivos RSFU (Riksförbundet för sexuell upplysning), foi realizado para comemorar a data. Entre o público havia famílias inteiras com crianças pequenas.
Mas voltemos ao “antes” sueco, assustadoramente semelhante ao “hoje” brasileiro. Também por aqui, salvo em casos excepcionais como estupro, incesto e risco para a vida da mãe, o aborto era crime há 40 anos e, portanto, passível de tribunal. Essa situação levava ao cenário tão conhecido quanto previsível. Até a década de 1970, milhares de mulheres suecas morriam todos os anos em decorrência de procedimentos mal feitos em clínicas ilegais localizadas em pontos escondidos de Estocolmo e no interior, ou em suas próprias casas. Às que sobreviviam, mas tinham sua verdade revelada, o destino era o julgamento, moral e legal.
Em entrevista para a edição de janeiro da revista Situation Stockholm, a “Ocas” sueca, Marc Bygdeman, professor emérito em obstetrícia e ginecologia do Instituto Karolinska e ativista pelo direito ao aborto livre há 50 anos, conta mais detalhes deste tempo. “Existia uma lei de aborto extremamente restritiva, que aprovava somente cerca de 3 mil abortos legais por ano. Enquanto isso, eram registrados cerca de 15 mil abortos ilegais acompanhados de complicações e mortes. Se uma mulher quisesse solicitar aborto em Estocolmo, ela era obrigada a ir até clínica de saúde mental, que cuidava dos pedidos. Qual era a mensagem? Que uma mulher que desejasse abortar era doente mental?”, conta.
A restrição era tamanha que as mulheres suecas passaram a pagar por abortos em países onde o procedimento era legalizado, com destaque para a Polônia comunista. O mercado de abortos no estrangeiro, um verdadeiro escândalo para uma Suécia que se considerava liberal, veio a público em 1965. Em uma operação batizada de “Negócio da Polônia” (livre tradução), a polícia invadiu a casa e prendeu o ativista Hans Nestius, que ajudava mulheres a viajar para o país vizinho. Era o estopim de um intenso debate nacional em torno da legalização do aborto e encabeçado, na época, pelos jornais Expressen e Aftonbladet. Neste mesmo ano, pressionado pela opinião pública, intelectuais e setores da classe médica, o governo arquivou o processo contra Nestius e assumiu os trabalhos em torno de uma eventual liberalização da lei.
Motivados pelos ventos favoráveis demonstrados pela abertura do governo ao debate, estudantes, liberais, socialdemocratas, e o novo movimento organizado de mulheres liderado pelo chamado Grupp 8 — coletivo feminista fundado em 1972 por oito suecas pioneiras — se uniram aos grupos que já vinham lutando pelo direito ao aborto desde a década de 1930: esquerda organizada, RFSU, médicos simpatizantes e intelectuais feministas da “antiga”. Como resultado, entre 1965 e 1974, fase mais intensa do movimento pró-aborto sueco, os diversos grupos realizaram centenas de debates, protestos reunindo milhares de pessoas, publicações em veículos simpatizantes da causa e incursões junto aos partidos com cadeiras no Parlamento. Os novos tempos mostravam que, definitivamente, não havia mais espaço para o questionamento do direito ao aborto. As mulheres exigiam mudanças, e não toleravam mais esperar.
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