Com o intuito de salvaguardar os interesses da banca global, o FMI e o Banco Mundial impuseram aos governos a obtenção de um excedente nas contas fiscais
O imobilismo do governo federal tem contribuído de forma significativa para o Brasil penetrar perigosamente no pântano da recessão econômica. Essa trajetória, que carrega consigo as marcas do triste e do trágico, encontra sua explicação na submissão que acometeu a Presidente Dilma frente às conversas sedutoras proporcionadas pela turma do financismo.
Afinal, para quem acompanhou os debates e as polêmicas travadas ao longo do mês de outubro do ano passado, imaginava-se que a vitória da candidata de coração valente significaria a retomada segura do projeto desenvolvimentista e a busca de caminhos para dar continuidade ao processo de superação das desigualdades e de consolidação de um país efetivamente justo e democrático.
No entanto, a surpresa teve início logo após o anúncio dos resultados oficiais, com a confirmação de sua recondução ao Palácio do Planalto. Em busca de pacificação com os setores mais conservadores de nossa sociedade, a Presidenta fez muito mais do que a nomeação de adversários históricos do povo e dos trabalhadores para a composição de seu ministério, a exemplo de Katia Motosserra Abreu, Gilberto Kassab, Guilherme Afif Domingues, Armando Monteiro, entre outros.
A submissão ao conservadorismo
O aspecto mais surpreendente foi a conversão da mandatária ao diagnóstico apresentado pelos donos das finanças a respeito da situação econômica e que pressupunha um conjunto de políticas para a economia que representavam uma negação de tudo aquilo que fora prometido na campanha e nos palanques. O coroamento de todo esse transformismo deu-se com a efetivação do candidato indicado pelo presidente do Bradesco para ocupar a pasta da Fazenda.
No mês de novembro, um documento articulado por importantes representantes do pensamento econômico progressista já alertava:
“A campanha eleitoral robusteceu a democracia brasileira através do debate franco sobre os rumos da Nação. Dois projetos disputaram o segundo turno da eleição presidencial. Venceu a proposta que uniu partidos e movimentos sociais favoráveis ao desenvolvimento econômico com redistribuição de renda e inclusão social. A maioria da população brasileira rejeitou o retrocesso às políticas que afetam negativamente a vida dos trabalhadores e seus direitos sociais.”
Junto com Levy e sua equipe, instalou-se no interior do núcleo duro do governo uma abordagem conservadora da conjuntura econômica e a solução que passou a ser vocalizada se resumia ao tema da situação fiscal, alardeada aos quatro ventos como sendo catastrófica. Os meios de comunicação se encarregavam de amplificar, de forma articulada e disciplinada, essa voz única do já surrado discurso de que “não existem alternativas”. Em pouco tempo foram desenhados os primeiros rascunhos do austericídio. O governo preparava o terreno para ampliar os efeitos dos primeiros sinais da recessão das atividades econômicas, das falências e do desemprego. Aliás, acelerava na contramão de todos os avisos lançados por economistas como Maria Conceição Tavares, Luiz Gonzaga Belluzzo, Marcio Pochmann e outros:
“Subscrevemos que este tipo de austeridade é inócuo para retomar o crescimento e para combater a inflação em uma economia que sofre a ameaça de recessão prolongada e não a expectativa de sobreaquecimento.
O reforço da austeridade fiscal e monetária deprimiria o consumo das famílias e os investimentos privados, levando a um círculo vicioso de desaceleração ou mesmo queda na arrecadação tributária, menor crescimento econômico e maior carga da dívida pública líquida na renda nacional.”
Para além dessa verdadeira arapuca representada pela insistência em focar apenas na necessidade de rigor na condução da política fiscal, mantinha-se um outro conceito igualmente sensível para a implementação do conjunto das medidas de política econômica. Refiro-me ao artifício do “superávit primário” como meta a ser perseguida pelo governo, em uma reverência explícita aos desejos e necessidades do financismo.
As origens do superávit primário.
Ora, não existe nenhuma regra legal que obrigue o governo brasileiro a operar com essa metodologia muito malandra de cálculo da performance no tratamento das contas públicas de nosso país. Afinal, não imaginamos que exista algum especialista em finanças governamentais que não considere a necessidade de se buscar, a todo e qualquer instante, algum tipo de equilíbrio entre receitas e despesas na condução estratégica de uma nação. O debate todo se dá na discussão a respeito de como se deve proceder para alcançar tal objetivo.
Essa inovação na forma de apuração do resultado fiscal vem da década de 1980, quando tem início uma série de processos de renegociação de dívidas dos países do chamado Terceiro Mundo junto aos grandes credores internacionais. Com o intuito de salvaguardar os interesses da banca global, o FMI e o Banco Mundial impuseram aos governos a obrigação de balizar a política econômica de seus países tendo por meta a obtenção de um excedente nas contas fiscais, de forma a garantir o pagamento de juros e serviços das dívidas que estavam sendo negociadas.
A essa nova metodologia de cálculo conferem a alcunha de “superávit primário”. Assim, a preocupação passa a não ser mais simplesmente buscar um equilíbrio na dinâmica entre receitas e despesas públicas. De acordo com essa nova esperteza patrocinada pelo financismo, as despesas de natureza financeira ficam de fora do procedimento. Com isso, o pagamento de juros e serviços da dívida pública não deve ser objeto de análise quando se fala em contenção de despesas. Pelo contrário! Todo o esforço deve ser realizado no chamado lado real da economia pública, para assegurar um saldo superavitário que será gentilmente oferecido aos detentores dos títulos da dívida estatal.
A tarefa que se impõe, portanto, para as forças progressistas é romper com essa armadilha da lógica do superávit primário. Se a intenção é demonstrar eficiência na condução da política fiscal, então que sejam levadas em conta todas as rubricas pelo lado das despesas e das receitas. Assim, saímos do debate que se restringe à necessidade de cortar, cortar e cortar nas contas de saúde, educação, previdência, assistência social, direitos trabalhistas, funcionalismo, infraestrutura, investimentos e as demais que sempre são listadas na melodia monocórdica do austericídio de uma nota só.
Cortar as despesas financeiras
Os “especialistas em finanças” sempre ouvidos pela imprensa quando o assunto vem à tona não se cansam de repisar que o governo precisa atacar as contas mais deficitárias, para que seja alcançado o equilíbrio orçamentário. E dá-lhe deitar falação, por exemplo, a respeito dos supostos “rombos” nas contas do regime previdenciário. Com a aura da farsa da “neutralidade técnica”, seu discurso quase nunca é contraditado por visões alternativas do fenômeno. Ora, se o governo quer mesmo ser eficaz nessa tarefa de buscar o ajuste, então que sejam enfrentadas as contas de maior déficit estrutural e que podem oferecer melhores contribuições para o equilíbrio fiscal.
É o caso da conta que apresenta o maior déficit estrutural: a rubrica de pagamento de juros. De acordo com os últimos dados oferecidos pelo Banco Central, entre setembro de 2014 e agosto de 2015 foram gastos mais de R$ 484 bilhões do orçamento federal para esse fim. Além disso, podemos agregar as despesas de natureza financeira que foram realizadas para assegurar que os agentes do mercado de câmbio e demais especuladores do sistema financeiro não incorressem em perdas com a variação da taxa de câmbio. Pois bem, ao longo dos últimos 12 meses essa conta dos chamados swaps cambiais apresenta um déficit estrutural de R$ 112 bilhões. Ou seja, estamos diante de quase R$ 600 bi que se oferecem a ser tesourados em nome da boa prática do ajuste fiscal. Mas contra eles ninguém arrisca um “ai” e eles se mantêm bilionariamente intocáveis.
À medida que o governo permanece refém dessa armadilha imposta pelo superávit primário, essas alternativas de redução das despesas não são levadas em conta. E os pacotes de maldades são periodicamente renovados, introduzindo novas surpresas na retirada de direitos sociais e comprometimento de investimento público estratégico, sempre em nome da responsabilidade fiscal. Um verdadeiro absurdo! Na verdade, tal conduta simboliza uma opção política marcada pela redução irresponsável de conquistas históricas do povo brasileiro e que reflete um descompromisso com a construção de uma sociedade que seja marcada pela inclusão, pela justiça e pela igualdade.
Para escapar da lógica de captura do financismo é essencial que seja rompida a armadilha do superávit primário. As despesas das rubricas financeiras não podem continuar a ser ignoradas quando se trata de redução dos gastos públicos federais.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
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