Presidente da Fenaj diz que ações contra jornalistas da Gazeta do Povo vão além da defesa corporativa e configuram ataque à democracia
Depois de publicar reportagens sobre os “supersalários” recebidos por juízes e promotores do Paraná, jornalistas da Gazeta do Povo tornaram-se alvo de uma enxurrada de processos. As ações, movidas por magistrados e representantes do Ministério Público em ao menos 19 cidades, obrigam os profissionais a uma rotina de peregrinação pelo Estado.
Como os processos foram protocolados em Juizados Especiais, isso os obriga a comparecer a todas as audiências de conciliação para não serem condenados à revelia. Em sua argumentação, os magistrados afirmam que foram “ridicularizados” pelo jornal.
Até agora foram protocoladas 48 ações, que pedem mais de 1,6 milhão de reais em indenizações por danos morais.
Trata-se de um caso fora da curva em meio a uma série de ataques judiciais ao jornalismo. De acordo com os relatórios anuais Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) registrou 44 casos de cerceamento à liberdade de expressão por meio de ações judiciais nos últimos cinco anos, das quais ao menos 17 foram movidas por juízes, promotores, procuradores ou delegados. Grande parte dos casos, no entanto, não chega à entidade.
A ofensiva no Paraná se destaca por sua organização. As ações começaram a aparecer tão logo a primeira reportagem foi publicada, na noite de 15 de fevereiro. Em um áudio gravado pelo WhatsApp naquele dia, o presidente da Associação dos Magistrados do Paraná (Amapar), Frederico Mendes Junior, afirma estar sendo preparado “um modelo de ação individual feito a muitas mãos”, “com viabilidade de êxito”.
O cerceamento à liberdade de imprensa por meio de ações movidas pelos próprios magistrados não é novidade, mas, segundo Celso Schröder, presidente da Fenaj, o episódio no Paraná é uma “ação autoritária inédita”.
Para Schröder, o fato de o Judiciário não ter passado por um efetivo processo de democratização após o fim da ditadura conferiu “poder exacerbado” aos seus representantes.
“O País se democratizou, mas deixou para trás o Judiciário, que não se submeteu a reformas. Isso produziu uma casta privilegiada, o que nos parece insustentável do ponto de vista da democracia”, diz Schröder. “Não é exclusivamente uma defesa corporativa. É um segmento que deliberadamente se volta contra uma atividade, a atividade jornalística”, continua.
Maria Tereza Aina Sadek, professora da Universidade de São Paulo e diretora de pesquisas do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais, afirma que o comportamento corporativista de uma classe não pode prejudicar todo o restante da sociedade.
“O corporativismo pode incentivar ações que são muito prejudiciais à qualidade de democracia. A ideia de defesa de um grupo é benéfica, mas essa defesa não pode implicar um comportamento contra todos os demais”, diz. “Toda vez que você fala de corporativismo, você está falando de privilégios, e não de igualdade”, diz Sadek.
A Gazeta do Povo mostrou que, somados a indenizações, pagamentos retroativos e benefícios como auxílio-moradia, os valores recebidos em 2015 por juízes e promotores ultrapassaram o teto constitucional do funcionalismo.
De acordo com a reportagem, o teto salarial para membros do Judiciário e do Ministério Público é de R$ 30.471,10. “Considerando o 13º e o adicional de férias, isso representaria, em um ano, R$ 411,3 mil, em valores brutos. Mas, em média, cada magistrado paranaense recebeu R$ 527,5 mil (28% acima do teto), e cada membro do MP recebeu R$ 507 mil (23% acima)”, diz o texto.
A Amapar argumentou que todos os pagamentos seguiam a lei, visto que verbas indenizatórias decorrentes de férias, por exemplo, não estão sujeitas ao teto, e afirmou que o jornal prestava um “desserviço”.
Para a professora Sadek, em vez de judicializar a questão, os magistrados deveriam ir a público para explicar os valores recebidos. “Mais do que um atentado à liberdade de imprensa, [a ofensiva] é algo contra a transparência. A transparência é uma qualidade fundamental na democracia, e o jornal nada mais fez do que expor os dados que estavam ali. Tão importante quanto um juiz ser imparcial e honesto é ele parecer como tal”, diz.
“O que fundamenta o meu argumento é: se eles poderiam explicar isso, por que judicializaram? O que para mim está claro é que, com direito ou sem direito, esse tipo de ação teve um impacto muito negativo na imagem do Judiciário”, continua Sadek.
A Fenaj pediu providências ao Ministério da Justiça, ao Ministério Público Federal e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) contra o que chamou de “assédio judicial”.
“O poder que tem a obrigação de garantir direitos no País exerce exatamente o contrário”, diz Schröder. “Isso acontece na esteira do crescimento da inviabilização da atividade jornalística no País. As grandes empresas abandonaram o jornalismo como princípio do seu negócio, algumas às vezes até se comportam como partidos. Isso compromete o jornalismo e expõe os jornalistas à violência.”
Fonte: Carta Capital / Débora Melo
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