Por Pedro Otoni
Um espectro ronda o Brasil, o “marxismo cultural”. Dos partidos de oposição aos blogueiros democráticos, da Carta Capital à redação da Folha de S. Paulo, da educação básica às universidades; todos levam a pecha de estarem, discretamente, a implantar o comunismo por meio da cultura, da ciência e da comunicação.
Não é segredo que, em uma guerra, o caráter do inimigo é inventado e imaginado de forma a legitimar o tipo de ataque que se pretende consumar. Acusar de comunista alguém, alguma instituição ou periódico, no caso brasileiro, é lavrar uma licença para agir de maneira extrajudicial. Tentam forjar no senso comum que comunista não é gente.
O olavismo-bolsonarista sabe bem o papel do senso comum na construção do inimigo. A ausência do argumento é força, e não fraqueza da narrativa fascista.
O indivíduo pensa que sabe o significado, porque preencheu o significante a sua maneira, mobilizando os seus preconceitos, frustrações, recalques e ódio. O obscurantismo tem força, não pode ser subestimado.
O caso prático são os cortes de verbas da educação, a bola da vez da cruzada contra o “marxismo cultural”. Claro que o ataque à educação pública tem relação com o compromisso do governo com os bancos. Mas, sendo a educação uma pauta acolhida positivamente pela sociedade, como atacá-la? A resposta foi transformar os profissionais da educação e estudantes em inimigos. Aqueles que transformam o espaço educativo em um treinamento de comunistas. A filosofia e a sociologia seriam a porta de entrada da esquerda para a cabeça da juventude.
Como a maioria do povo, devido ainda às dificuldades de acesso à educação, não sabe muito bem do que se trata a universidade, a filosofia e a sociologia, uma parcela compra a ideia que as escolas e universidade são fábricas de militantes. Daí o senso comum e o “significante vazio” cumprem seu papel. Preenchem aquilo que não era conhecido com algo que parece ser plausível, mesmo que materialmente insustentável.
Neste ponto, cabe também uma observação, em especial em relação à universidade. O fato de ainda cumprir um papel muito tímido na integração com a sociedade – papel que poderia ser desempenhado com, por exemplo, no fortalecimento da extensão universitária- acarretou na impossibilidade dos não acadêmicos conhecerem melhor seu propósito. Para uma parte da sociedade, o que ocorre dentro da universidade é obscuro, e é sobre este setor que recai a aposta do governo.
O senso comum, décadas atrás, indicava a universidade como um local de estudo para formação de doutores (uma elite), o que era tomado como algo positivo, uma estratégia de melhoria da vida. A popularização do ensino superior e a atual ausência de perspectiva de emprego para os recém formados gerou frustração não apenas nestes, mas em amplas camadas sociais, como a pequena classe média.
O objetivo é, a partir da frustração, promover o caldo de cultura para a deslegitimação da universidade. Dispositivo psico-político semelhante foi utilizado no “Bücherverbrennung”, a campanha de queima de livros produzida pelos nazistas em 1933. Na Alemanha, os livros foram incinerados em nome da pureza da literatura alemã conservadora. Já no Brasil, o olavismo-bolsonarista ameaça demolir as universidades para combater o “marxismo cultural”.
O declarado e o real são dimensões diferentes da disputa política. O declarado é a cruzada contra o marxismo cultural; o real é colapsar a universidade pública e satisfazer os bancos e as empresas privadas de ensino. A consequência óbvia será aprofundar a dependência em relação à produção científica dos países centrais. Sim, soberania nacional tem conexão com capacidade de desenvolvimento científico e a existência de centros de pesquisa públicos. Como exemplo, verifica-se que, entre as cem melhores instituições universitárias do mundo, dois terços são públicas. O desenvolvimento científico é também um ambiente de disputa geopolítica.
O que surgiu primeiro, a luta de classes ou o marxismo? É óbvio que são as contradições do mundo que criam condições para o desenvolvimento de interpretações diversas, entre elas o marxismo, como um pensamento particular entre tantos outros. Se o marxismo sobrevive a tantas críticas e ao anúncio de sua morte, é de responsabilidade das interpretações rivais, que não alcançaram uma formulação à altura, promover a sua superação. Mas o engano principal é indicar o marxismo como produto exclusivamente acadêmico, como se sua vigência e aperfeiçoamento dependesse exclusivamente da cátedra. O que se ignora é o papel da situação concreta de vida das massas e sua consequente crítica na vitalidade da teoria marxista.
Para ilustrar esta tese, peço licença para narrar uma experiência pessoal. A primeira vez que entrei em uma universidade, foi em meados da década de 1980. Era uma criança na cabine de uma caminhonete Rural Willys, caindo aos pedaços, que pertencia ao meu pai. Ele queria ampliar a criação de porcos e a plantação de milho que tínhamos não suportava alimentar uma criação comercial. Era preciso uma outra fonte de alimento para os animais. A alternativa foi conseguir a doação dos restos do restaurante universitário, que ficava a aproximadamente 50 km do sítio onde vivíamos.
Isso pode parecer absurdo hoje, mas era comum na década de 1980 – e em alguns lugares do país ainda é – não haver uma fiscalização sanitária rigorosa e ter contatos pessoais em lugares estratégicos, como na cozinha do restaurante universitário, era uma oportunidade de permanecer no campo, já em crise. Aproveitar uma oportunidade como essa significava a diferença entre sustentar a família ou não. Depois de um tempo, a criação de porcos se tornou inviável. Quase 15 anos depois, fui aprovado no vestibular e me matriculei no curso de Direito daquela mesma universidade que tinha conhecido anos antes, a Universidade Federal de Minas Gerais.
Então, o que veio antes, o mundo real ou a universidade? O que motiva as pessoas a reagirem contra as desigualdades? É evidente que a universidade foi importante para mim. Tive professores muito bons. E, quando falo bons, não me refiro àqueles que concordavam com o que eu pensava à época ou agora, mas que tinham um compromisso muito profundo com a profissão. Por outro lado, minha formação e minha posição política não foram moldados pelas aulas, mas pela própria realidade, de uma maneira integral. Foi o fato de precisar entrar com meu pai pela porta dos fundos de uma universidade, que à época era para poucos, que formou minha posição política. Meu contato com os restos do restaurante universitário quando criança despertou mais críticas do que as salas de aula da instituição anos depois.
Na dimensão acadêmica, tive contato com diferentes vertentes teóricas (liberais, conservadoras, reacionárias, pós-modernas etc.), porém, as que despertavam maior conexão foram justamente as que de alguma maneira procuravam questionar e não legitimar a situação objetiva na qual eu estava inserido por nascimento. Aquelas que de alguma maneira estavam preocupadas com a situação de uma família ter que entrar pelas portas dos fundos de uma universidade, não para estudar, mas para sobreviver.
Foi a situação de classe que me fez ter contato com a militância. Foi na luta por direitos que fui impelido, por necessidade, a me engajar. Lá, encontrei com meus iguais, e posteriormente com o marxismo. Agora, não mais como uma teoria livresca, mas como um pensamento mobilizador para a ação. Creio que são as vivências que nos preenchem. O diálogo com as pessoas faz com que estas experiências ganhem sentido, inclusive teórico.
Enganam-se aqueles que pensam que poderão extinguir o marxismo simplesmente proibindo seu estudo nas escolas e perseguindo professores. Como dizia o tão atacado Paulo Freire, “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo.” Enquanto o mundo for o palco das desigualdades, será um tabuleiro de disputa de projetos distintos, em que homens e mulheres estarão aprendendo coletivamente a interpretá-los e a resistir.
A escola não forma militantes. Ela contribuiu na aprendizagem de alguns saberes e introduz em massa a juventude ao pensamento científico, o que contribui para termos um raciocínio sistemático, livrando-nos de uma visão mágica e supersticiosa do mundo. A Educação Básica e o Ensino Superior são instrumentos de elevação da capacidade produtiva, cultural e criativa de um povo. É uma oportunidade de estabelecer um patamar mais elevado de bem estar coletivo, ao interpretar as demandas sociais das amplas camadas sociais e produzir soluções adequadas às mesmas.
Mas a luta pela educação, como a que vivemos no dia 15 de maio, no qual milhões de estudantes, trabalhadores da educação e de diversas outras categorias saíram às ruas contra o corte de recursos, essa sim, gera militantes.
Esta revolta, em potencial, pode contribuir para a ampliação do marxismo militante. Quanto a isso, não há formas de interdição por parte do núcleo olavista do governo, nem mesmo com a extinção do direito à educação ou a radicalização do degenerado projeto de “Escola Sem partido”. Ao agudizar as contradições, por efeito, intensifica-se a revolta, que pode ganhar um contorno marxista, ou de outra teoria de conteúdo contestatório.
O ataque ao suposto “marxismo cultural” na universidade é, na realidade, uma tentativa de desmonte da cultura, da ciência e da educação produzida por instituições públicas. Tem menos a ver com o marxismo e mais com o plano de privatização. Como é difícil sustentar a ideia de mercantilização das escolas e das universidades se inventa a ameaça do comunismo educacional. Ao que tudo indica, a estratégia deu errado. O próprio Olavo de Carvalho já declarou que pretende tirar o time de campo em relação a política brasileira. A vanguarda olavista, agora órfã, se isola na irracionalidade completa. A população não comprou suas sandices em relação à educação pública. O 15M é prova disso.
Fonte: Carta Capital
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