Confira o parecer-protesto elaborado pelo núcleo jurídico das Brigadas Populares contra os despejos administrativos realizados pela Prefeitura de Belo Horizonte. As Brigadas Populares opinam pela imoralidade, ilegalidade e inconstitucionalidade dessa prática!
Objeto: Análise acerca da ilegalidade e inconstitucionalidade das ações higienistas praticadas pela Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), Minas Gerais, com especial enfoque para os despejos administrativos, mormente aquele realizado em 28/06/2017, em desfavor da dignidade, do direito à moradia e do direito à cidade de mais de 30 (trinta) famílias, que há mais de 20 (vinte) anos, ocupavam o Viaduto Amazonas, localizado na Avenida Silva Lobo, na capital mineira. E, ainda, relatos sobre os despejos administrativos realizados no Zilah Spósito, na ocupação Maria Guerreira e a ameaça iminente na Vila Cemig.
Ao longo dos meses de junho e julho de 2017, a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), por via da Secretaria Municipal de Serviços Urbanos, a Secretaria Municipal de Políticas Sociais, a Secretaria Municipal Adjunta de Fiscalização (SMAFIS) e a Guarda Municipal, tem colocado em prática diversas ações de cunho higienista, direcionadas a grupos historicamente considerados marginalizados, a exemplo de trabalhadoras e trabalhadores informais, de moradoras e moradores em situação de rua e dos sem-tetos.
Entre outras formas, tais ações são concretizadas por meio de condutas violentas e unilaterais de recolhimento de mercadorias e de instrumentos de trabalho, de “batidas” e averiguações preconceituosas, visando coibir a permanência e frequência dos indivíduos socialmente excluídos em certos locais da cidade e, ainda, por despejos administrativos flagrantemente ilegais.
A esta última “modalidade” de prática higienista, pertence o episódio ao qual o presente parecer-protesto irá se deter. Qual seja, o despejo sem negociação, sem reassentamento e sem ordem judicial, executado contra famílias que edificaram de boa-fé, suas moradias.
As famílias que moravam no Viaduto Amazonas, na Avenida Silva Lobo, no dia 21/06/2017, foram abordadas pela SMAFIS e notificadas a saírem do local e a demolirem suas casas, no prazo de dois dias, sob pena de multa de R$ 1.585,05 (!). Sem qualquer condição e/ou alternativa para cumprimento da autuação, os ocupantes foram surpreendidos, na manhã do dia 28/06/2017, com grande aparato policial e caminhões do executivo municipal, que deram início às demolições e ao despejo. A comunidade não conseguiu resistir. Veja-se:
Frisa-se, tal ação foi realizada mesmo na pendência de julgamento de liminar em Ação Civil Pública interposta pela Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais (DPE-MG) – processo número 5087553-95.2017.8.13.0024. Além disso, havia recurso administrativo a ser apreciado pelo Poder Público Municipal.
A ocupação do Viaduto Amazonas era formada por diversas famílias, que perfaziam um total aproximado de 30 pessoas, dentre as quais trabalhadoras e trabalhadores, crianças e idosos, que frequentavam a Unidade Municipal de Educação Infantil-UMEI, Vila Calafate, e eram atendidas pelo Posto de Saúde da região, conformando um plexo de relações sociais e acesso à direitos naquele território.
Após o despejo ilegal e forçado, algumas famílias foram acolhidas nos Abrigos Pompéia e São Paulo, os quais, diga-se, não consistem em alternativa de moradia, em virtude da provisoriedade do abrigamento, da incapacidade de os mesmos receberem crianças, animais (de estimação e/ou de meio de trabalho), bem como pela taxa de lotação. Outros moradores preferiram permanecer nas redondezas, na condição de população de rua.
Além desse caso recente já ocorreram em Belo Horizonte outros despejos administrativos como os que serão relatos nesse parecer envolvendo uma comunidade no bairro Zilah Spósito, em 2011, e a ocupação Maria Guerreira que teve casas destruídas no ano de 2015.
É a síntese. Passa-se à análise jurídica do caso.
Importante relembrar o enorme déficit habitacional do estado de Minas Gerais, de 493.504 moradias, segundo dados da Fundação João Pinheiro[1]. Da mesma forma, ocorre no Município de Belo Horizonte, o qual não implementou política habitacional nesse período pós Programa Minha Casa, Minha Vida, que apresente uma alternativa de moradia para aquelas pessoas que compõem esse déficit.
Sobre o direito à moradia, este começou a ser tutelado pelo ordenamento jurídico após reflexos das reivindicações sociais de cidadão; não se sustentava mais a ideia de igualdade formal, mas não material.
Tal direito assenta-se no próprio direito internacional, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos Humanos e do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que consideram o referido direito como básico e elementar de cada indivíduo e dos quais o Brasil figura como signatário.
O Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Interamericana de Direitos Humanos) prevê, no art. 11-2, que ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em seu domicílio e, no art. 22-1, que todo aquele que se encontre legalmente em território de um Estado em direito de nele livremente residir.
Merece destaque o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – PIDESC, promulgado na ordem jurídica brasileira, por meio do Decreto 591 de 1992, pelo qual, em seu art. 11º, os Estados signatários reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive à moradia adequada, assim como a uma melhoria contínua de suas condições de vida, bem como se comprometem a tomar medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito.
Dando maior concretude ao PIDESC foram editados os Comentários Gerais nº 4 e 7 do Comitês de Direitos Econômicos Sociais e Culturais pelos quais:
Ora, existem inúmeros outros tratados internacionais que asseguram o direito à moradia como um direito essencial e inviolável do ser humano, sendo certo que grande parte desses foi ratificado pelo Brasil. Nunca é demais relembrar que os tratados internacionais dessa natureza possuem tratamento privilegiado no direito brasileiro, alçados ao status de emenda constitucional ou, ao menos, de norma supralegal, conforme art. 5º, §§ 2º e 3º, da CF/88 e entendimento consolidado do STF.[4]
Veja-se que até mesmo o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA já reconheceu a importância de se considerar os tratados internacionais em casos envolvendo questões de moradia. É o que se pode observar do seguinte julgado:
[1] Nota técnica sobre o déficit habitacional no Brasil: http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/docman/cei/deficit-habitacional/596-nota-tecnica-deficit-habitacional-2013normalizadarevisada/file. Acesso em 20 de julho de 2017.
[2] BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Direito à Moradia Adequada, p. 34-35. Disponível em: <http://www.sdh.gov.br/assuntos/bibliotecavirtual/promocao-e-defesa/publicacoes-2013/pdfs/direito-a-moradia-adequada> Acesso em: 24 jul. 2017.
[3] Ibidem, p. 14.
[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 466.343-SP. Relator: Min. Cesar Peluso. Dje: 05/06/2009.
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. OCUPAÇÃO DO ISIDORO. CUMPRIMENTO DE ORDEM DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. PRETENSÃO DE OBSERVÂNCIA DE DIRETRIZES E NORMAS ATINENTES AOS DIREITOS HUMANOS. EFEITOS NATURAIS DA DECISÃO DE DEMANDA INDIVIDUAL SOBRE TERCEIROS. POSSIBILIDADE. ILEGITIMIDADE ATIVA AFASTADA. INCOMPETÊNCIA DO ÓRGÃO PROLATOR. NULIDADE DO ACÓRDÃO. CORRETA INDICAÇÃO DO GOVERNADOR DO ESTADO E DO COMANDANTE-GERAL DA PMMG COMO AUTORIDADES SUPOSTAMENTE COATORAS. INTERESSE PROCESSUAL. EXISTÊNCIA. INDEFERIMENTO DA EXORDIAL PELA CORTE DE ORIGEM. TEORIA DA CAUSA MADURA. INAPLICABILIDADE.(…) 2. É o que ocorre no mandamus em análise. Embora impetrado por apenas quatro moradores da comunidade de 30.000 (trinta mil) pessoas, sobre a qual recai uma ordem de reintegração de posse, a segurança pretendida – exigir do Estado o cumprimento de determinadas normas e diretrizes atinentes aos direitos humanos, no procedimento de remoção – surtirá efeitos naturais sobre toda aquela coletividade.(…)
No âmbito interno, a Constituição da República de 1988 trouxe, em seu art. 1º, III, princípio extremamente fundamental, o da dignidade da pessoa humana. Sendo um dos fundamentos de nossa República, é dever não só do Estado, mas de todos os cidadãos, a proteção ao referido princípio.
Não há como negar que para se viver dignamente é necessário um teto onde se possa exercer as atividades do dia a dia, bem como onde se possa buscar a proteção, segurança, intimidade, privacidade. Tudo isso são elementos essenciais para uma existência digna.
Fica claro, portanto, que quando de sua instituição originária, a Constituição da República de 1988, ao insculpir em seu texto o princípio da dignidade da pessoa humana, quis se referir ao resguardo de todos os elementos necessários à sua efetivação, sendo obviamente a moradia um deles.
E, ainda que assim não se entenda, é de se destacar que a Constituição tratou especificamente do direito à moradia na Emenda Constitucional nº. 26, de 14/02/2000, que o incluiu o artigo 6º no rol dos direitos fundamentais sociais, dispondo que:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 64, de 2010).
Ressalte-se que, antes mesmo da referida emenda, a Constituição de 1988, além do art. 1º, III, havia tratado da moradia no art. 7º, IV, Carta Magna. Confira-se:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
(…)
IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;
Portanto, de qualquer ângulo que se observe, o direito à moradia é tutelado por nossa Carta Constitucional, seja ao prever o princípio da dignidade da pessoa humana, seja ao determinar que o trabalhador deva ter um salário digno que lhe possa proporcionar o acesso à moradia, seja ao prever referido direito expressamente no rol dos direitos sociais.
Importante ressaltar que, ainda que se entenda que o direito à moradia esteja incluído entre o rol dos direitos sociais, e, portanto, sujeito à capacidade econômica do Estado para sua efetivação, em se tratando do mínimo existencial, vale dizer, quando se trata de alguns bens que pela sua natureza são essenciais à vida humana o próprio Supremo Tribunal Federal já entendeu que o Poder Público não pode eximir de protegê-los invocando opor exemplo o princípio da reserva do possível.
Ora, é impossível não reconhecer a essencialidade do direito à moradia, pois como bem acentua Ingo Wolfgang Sarlet sem “um espaço essencial para viver com um mínimo de saúde e bem-estar; certamente a pessoa não terá assegurada a sua dignidade, aliás por vezes, não terá sequer assegurado o direito à própria existência física, e portanto, seu direito à vida”.
É de se destacar que, com a consagração do direito social à moradia, e os deveres dos Poderes Públicos para com sua concretização, conforme art. 6º; 7º, V; 23, IX, da CF/88, os quais são dotados de aplicabilidade imediata, na forma do art. 5º, §1º, deve-se reconhecer duas dimensões de tal direito. “com efeito, a posição subjetiva (direito subjetivo) negativa tem por objeto imediato a resistência a uma intervenção, portanto, uma exigência de não intervenção, ao passo que o direito subjetivo positivo tem por objeto direto uma exigência de atuação, de prestação fática ou normativa”.[1]
Dessa forma, não se pode admitir que o Estado se furte de sua obrigação constitucional de promover uma eficiente política habitacional e ainda vise a prática de atos que afrontem o direito à moradia consolidado pelos próprios esforços de dezenas famílias em situação de vulnerabilidade. Admitir tais condutas estatais significa chancelar uma dupla inconstitucionalidade: a primeira por omissão quanto à política habitacional e a segunda por ação tendente à remoção forçada de inúmeras famílias de baixa renda.
Muito embora se possa controverter a respeito do modo e intensidade desta vinculação (seja em relação aos órgãos estatais, seja em relação aos particulares), assim como das possíveis consequências jurídicas a serem extraídas a partir de cada manifestação do direito à moradia, o que importa por ora e para efeitos deste estudo, é que cientes da dupla dimensão negativa e positiva dos direitos fundamentais em geral (e não apenas dos assim designados direitos sociais), tal circunstância não altera o fato (e nem as consequências que disso se pode e se deve extrair!) de que na sua condição de direito (subjetivo) de defesa o direito à moradia tem por objeto em primeira linha a sua não-afetação por parte do Estado, ao passo que na sua condição de direito a prestações, o direito à moradia terá por objeto a criação e estruturação de órgãos, a edição de normas que estabeleçam procedimentos de tutela e promoção dos direitos, o fornecimento de bens e serviços ou outras ações comissivas.[2]
Resta claro, portanto a essencialidade do direito à moradia, mormente para famílias em situação de vulnerabilidade social, porque a efetivação desse implica na efetivação de outros direitos, por exemplo, do direito à privacidade, segurança, intimidade, dignidade da pessoa humana e o próprio direito à vida.
Diante do alarmante déficit habitacional, os dados demonstram serem os maiores afetados a população afrodescendente, fato que configura nítida violação a tratados internacionais os quais o Brasil e signatário. A Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial afirma que a dignidade inerente e a igualdade de todos os membros da família humana são princípios básicos. Ao assinar o tratado, o Brasil assume o firme compromisso na erradicação total e incondicional do racismo na convicção de que essas atitudes discriminatórias representam a negação dos valores universais e dos direitos inalienáveis e invioláveis da pessoa humana, tal qual o direito à moradia.
Nesse sentido é de se reconhecer o dever de se adotarem medidas nacionais e regionais para promover e proteger os grupos afrodescendentes que foram vítimas do maior crime contra humanidade legitimado pelo estado que. não reparados, continuam a alimentar números da pobreza e do déficit de habitacional, à espera de políticas públicas.
A Convenção afirma que os princípios da igualdade e da não discriminação entre os seres humanos são conceitos democráticos dinâmicos que propiciam a promoção da igualdade jurídica efetiva e pressupõem uma obrigação por parte dos entes locais promover e adotar medidas especiais para proteger os direitos de indivíduos ou grupos marginalizados em qualquer esfera de atividade, judicial e administrativa.
A afirmação de que os maiores afetados pelo déficit de moradia digna são afrosdecendentes se dá por uma combinação de fatores como raça, cor, ascendência, origem socioeconômica e outras apontadas na Convenção, consciente de que o fenômeno do racismo demonstra uma capacidade dinâmica de renovação que lhe permite assumir novas formas pelas quais se dissemina e é expressa política em todas as suas manifestações individuais, estruturais e institucionais. Nesse sentido veja-se artigo do Decreto que promulga a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial:
Nesta Convenção, a expressão “discriminação racial” significará qualquer distinção, exclusão restrição ou preferência baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou etnica que tem por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano,( em igualdade de condição), de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de vida pública.
Uma sociedade pluralista e democrática deve criar condições para proteger o projeto de vida de indivíduos e comunidades em risco de exclusão e marginalização, a fim de que se consolide no Brasil o conteúdo democrático dos princípios da igualdade jurídica e da não discriminação esculpido na Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial:
De conformidade com as obrigações fundamentais enunciadas no artigo 2, Os Estados Partes comprometem-se a proibir e a eliminar a discriminação racial em todas suas formas e a garantir o direito de cada uma à igualdade perante a lei sem distinção de raça , de cor ou de origem nacional ou étnica, principalmente no gozo dos seguintes direitos:
(…)
(…)
iii) direito à habitação;
É forçoso reconhecer, portanto, que o Brasil se compromete a adotar medidas corretivas sobre medidas de ordem legislativa, judiciária e administrativa que, no caso em tela, deveriam combater os despejos administrativos em conformidade com os princípios e objetivos da Convenção referida.
Nessa mesma linha de intelecção a Lei 10.741/03, conhecida como Estatuto do Idoso, foi um avanço como medida corretiva, mas também não foi observado no caso do ato administrativo da PBH ao desconsiderar completamente a situação de vulnerabilidade de idosos que sofreram a violência de um despejo forçado. O Estatuto dispõe no art. 10 que constitui obrigação do Estado e da sociedade assegurar ao idoso a liberdade, o respeito e a dignidade. Da mesma forma, devem zelar pela sua dignidade, colocando-o a salvo de qualquer tipo de tratamento desumano. Sendo assim, o despejo de pessoas idosas, sem lhes resguardar qualquer forma de amparo, consiste em colocá-las em situação desumana e degradante, o que é vedado expressamente pela legislação protetiva do idoso.
Merece destaque o que diz o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) que não se pode diferenciar as crianças e adolescentes. Não pode haver discriminação por nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem.
No art. 4° do ECA encontra-se as garantias de prioridade da criança e do adolescente, afetas principalmente ao Poder Público, como a primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias, a precedência no atendimento dos serviços públicos, a preferência na formulação e na execução de políticas sociais públicas e a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude. Veja-se:
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
Conforme já narrado, os moradores ocupantes do Viaduto Amazonas, na Avenida Silva Lobo, foram notificados, no dia 21/06/2017, a desocuparem e demolirem suas casas, em dois dias, sob pena de multa de mais de R$ 1.500,00.
Nos termos da Notificação, os ocupantes cometeram o ato de “invadir o logradouro público ou imóvel público com edificação provisória”, o que infringiria o art. 318, I, e §1o, I, da Lei Municipal no. 8616/03 (Código de Posturas) e art. 161, §2o, do Decreto 14060/10.
Referidos dispositivos assim preveem:
Art. 318 – A demolição, total ou parcial, será imposta quando se tratar de:
I – construção não licenciada em logradouro público ou em imóvel público municipal;
II – fechamento de logradouro público mediante construção de muro, cerca ou elemento construtivo de natureza similar;
III – estrutura não licenciada de fixação, sustentação ou acréscimo de mobiliário urbano;
IV – passeio construído fora das normas estabelecidas neste Código.
I – sendo edificação com utilização comercial, edificação em andamento, ou edificação provisória, antes de iniciada a demolição, o invasor será notificado para desocupá-la e demoli-la no prazo de 48 (quarenta e oito) horas;”
“Art. 161 – Constituem infração a ação ou a omissão que resultem em inobservância às regras do Código de Posturas ou deste Decreto.
Entretanto, conforme pode ser facilmente comprovado, por testemunhas, fotos e registros da própria Administração Municipal, as edificações construídas sob o viaduto eram consolidadas, uma vez que ali estavam desde a década de 1990, ou seja, há mais de 20 anos.
O fato de serem edificações simples, típicas das populações excluídas da sociedade, que não possuem lugar no mercado imobiliário, não significa que eram provisórias, temporárias. Antes pelo contrário, se considerarmos que mesmo estruturalmente frágeis, os moradores mantiveram suas casas por mais de duas décadas, vinculando-se à vizinhança e aos serviços públicos da região, fatos estes que demonstram o ânimo de permanecerem indeterminadamente.
O enquadramento, das casas construídas sob o Viaduto Amazonas, como “edificações provisórias” foi ardilosamente forjado pela Prefeitura de Belo Horizonte, a fim de dar celeridade ao despejo das famílias. Sobretudo porque, o inciso II do §1o e o §3o, do mesmo art. 318, da Lei Municipal no. 8616/03, impõe trâmite mais cuidadoso para que ocorra a retirada de moradias consolidadas. Confira-se:
Art. 318 – A demolição, total ou parcial, será imposta quando se tratar de:
I – construção não licenciada em logradouro público ou em imóvel público municipal;
II – fechamento de logradouro público mediante construção de muro, cerca ou elemento construtivo de natureza similar;
III – estrutura não licenciada de fixação, sustentação ou acréscimo de mobiliário urbano;
IV – passeio construído fora das normas estabelecidas neste Código.
I – sendo edificação com utilização comercial, edificação em andamento, ou edificação provisória, antes de iniciada a demolição, o invasor será notificado para desocupá-la e demoli-la no prazo de 48 (quarenta e oito) horas;”
II – sendo construção utilizada para moradia e com característica de permanência definitiva (invasão consumada), antes de serem iniciados os procedimentos para a demolição, o invasor deverá ser notificado para desocupá-la e demoli-la no prazo de 30 (trinta) dias.
Assim, vê-se que mesmo em último caso, admitindo-se a aplicação do Código de Posturas (Lei Municipal nº. no. 8616/03) para a discussão acerca da ocupação do Viaduto Amazonas, a conduta da Prefeitura de Belo Horizonte, materializada nos Autos de Notificação e na execução dos mesmos, é total e flagrantemente ilegal. Pois, consoante os dispositivos supramencionados, em se tratando de construção para fim de moradia, a legislação municipal prevê que aos moradores deve ser dado prazo de 30 dias para procederem à desocupação.
E, caso esta não se concretize, o Executivo fica obrigado a propor ação demolitória. Essa era a solução prevista no Código de Posturas para o despejo em análise. Mas que não foi cumprida, certamente porque as casas construídas sob o viaduto não se encaixam no padrão de moradia dos Srs. Gestores Municipais.
Portanto, da leitura dos incisos e parágrafos do art. 318, da Lei Municipal no. 8616/03, não é possível outra conclusão senão a de que a Prefeitura agiu de forma contrária à lei, além de negligente e irresponsável. O Município adotou os trâmites inerentes às “edificações provisórias” (art. 318, §1O,I) ao invés de aplicar o procedimento adequado (art. 318, §1O,II e §3o ), na medida que se tratavam de moradias consolidadas.
A regra que se extrai do art. 318, §1O,II e §3o, do Código de Posturas de Belo Horizonte é clara. Moradias definitivas, edificadas em logradouro ou imóvel público, só podem ser demolidas, e as famílias despejadas, mediante ordem judicial.
O legislador municipal, entendendo a gravidade da circunstância de se expulsar famílias de suas respectivas casas e demoli-las, previu a necessidade de instauração prévia de ação demolitória.
Isso porque, ao menos perante o juízo, as famílias poderiam exercer o direito do contraditório e da ampla defesa, poderiam ter a oportunidade de serem acompanhadas pelo Ministério Público (devido a presença de incapazes e pelo interesse público e social) e pela Defensoria Pública, além de terem a chance de negociar com o Município alternativas dignas de habitação.
Não é da alçada do Executivo Municipal decidir, de forma arbitrária e conforme seu próprio juízo de oportunidade e conveniência, quais os cidadãos estão fadados a perderem seus lares, da noite para o dia. Frisa-se, o §3o do art. 318, acima exposto, não deixa margem à discricionariedade.
O princípio do contraditório e da ampla defesa são a garantia de que ninguém pode sofrer os efeitos de um ato administrativo ou ato judicial que possa lhe causar graves danos sem ter a possibilidade de influir na decisão, sem a possibilidade de efetivamente participar da formação da decisão expondo suas razões de fato e de direito.
A Constituição da República de 1988 traz a garantia do devido processo legal expressa no seu Artigo 5º, incisos LIV e o inciso LV :
Art. 5º – (…)
LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.
LV – aos litigantes em processo judicial e administrativo, e aos acusados em geral, serão assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios de recurso a ela inerentes.
O devido processo legal funciona, no caso em tela, como limite ao arbítrio do Poder Executivo Municipal. O ato administrativo praticado por autoridade pública, para ser considerado válido, eficaz e completo, deve seguir todas as etapas previstas em lei e os princípios e garantias estabelecidos na Constituição da República.
Assim, os despejos administrativos que estão sendo engendrados pela Prefeitura de Belo Horizonte, aqui ilustrado pelo despejo das pessoas que ocupavam o Viaduto Amazonas, constituem grave violação não só à dignidade das famílias, mas também ao Direito, consubstanciado na norma municipal que prevê: desocupação e demolição de moradias, somente após instauração de ação demolitória e com ordem judicial. E, ainda, violação do devido processo legal e do exercício do contraditório e ampla defesa.
Cumpre resgatar à memória, o despejo administrativo que ocorreu no dia 21 de outubro de 2011, no Conjunto Zilah Spósito, região Norte de Belo Horizonte. Na ocasião, fiscais, gerentes e guardas municipais da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), juntamente com a tropa de Choque da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG) cometeram uma grande arbitrariedade na capital mineira: sem mandado judicial, com forte aparato bélico, usando spray de pimenta e terrorismo psicológico, destruíram dezenas de casas de alvenaria, barracos de lona e casas que estavam em início de construção.
A ação foi coordenada pelo gerente da regional norte da PBH à época, Lauro Lopes, juntamente com o tenente coronel Fabiano, comandante na ocasião do 13° batalhão da PMMG. Esta ocupação urbana estava localizada em um terreno da PBH que alegou que a ação do despejo estava em consonância com o Código de Posturas do Município. Ocorre que as famílias já estavam estabelecidas ali há mais de um ano na época da ação, fato que descaracteriza o flagrante.
As pessoas que presenciaram a ação ficaram indignadas com a violência praticada pelos ditos agentes públicos, como dito, a resistência do povo foi reprimida inclusive com spray de pimenta, chegando atingir crianças.[1] Os policiais militares chegaram a agir contra a liberdade de imprensa ao tomar as câmaras de pessoas que filmavam a ação ilegal e destruir os cartões de memória da máquina. Assim, várias fotos com os rostos e identificação de muitos policiais, dos guardas municipais, das placas das viaturas e das demolições foram sumariamente apagadas sob ameaças das mais diversas.
Várias casas foram derrubadas de forma ilegal e inconstitucional e o despejo completo da comunidade só não foi totalmente concluído graças à mobilização imediata de uma rede de apoio que contou com militantes das Brigadas Populares, moradores da comunidade Dandara, Comissão Pastoral da Terra (CPT-MG) e à obtenção de uma liminar requerida pela Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais (DPE-MG) que determinou a suspensão do despejo.
Outro caso que, igualmente, deve ser registrado, ocorreu no dia 7 de maio de 2015, quando os moradores da ocupação Maria Guerreira, no bairro Copacabana, na regional Venda nova em Belo Horizonte, resistiram a mais um despejo ilegal realizado pela PBH. Fiscais do município e PMMG que destruíram 17 (dezessete) casas, sem mandado judicial e também com fundamento no Código de Posturas do Município. O despejo foi interrompido quando chegaram militantes e advogados das Brigadas Populares que denunciaram a ilegalidade da ação.
Dezenas de famílias ocuparam de forma espontânea uma área abandonada, sem cumprir a função social da propriedade, por necessidade. A maioria foi impelida a ocupar em função do Programa Vila Viva realizado no bairro, que despejou sem garantia de moradia os locatários das casas e elevou o valor dos aluguéis na região.
Vejam-se fotos do despejo administrativo na ocupação Maria Guerreira:
[1] SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia e Efetividade do Direito à Moradia na sua Dimensão Negativa (Defensiva): Análise Crítica à Luz de alguns Exemplos, p. 1034. In: NETO, Cláudio Pereira de Souza; SARMENTO, Daniel (Org.). Direitos Sociais: Fundamentos, Judicialização e Direitos Sociais em Espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
[2] Ibidem. p. 1033.
[3] Welington – Despejo no Zilah Sposito com spray de pimenta – 21 10- 2011_xvid.avi. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4YxpjiTvT1o. Acesso em 25 de julho de 2017.
No último mês, 66 (sessenta e seis) famílias que moram na Rua Pavão, número 00, Beco Seis, na Vila Cemig, em Belo Horizonte, foram notificadas pela Secretaria Regional Barreiro da PBH, por “invadir imóvel público municipal com construção utilizada para moradia e características de permanência definitiva (invasão consumada).” As notificações interpelam as famílias para saírem de suas casas em 30 (trinta) dias e estabelecem multa que chegam a alcançar o importe de mais de R$ 4.500,00 (quatro mil e quinhentos reais). O fundamento das notificações é o já referido Código de Posturas do Município.
Ressalta-se, as famílias construíram suas casas há mais de quinze anos e formaram uma comunidade que hoje está consolidada, conforme se depreende das fotos abaixo. Há um projeto do Vila Viva que deveria realizar reassentamentos dignos, mas este foi interrompido, e as famílias autorizadas a permanecerem em suas casas. Chama-se atenção para esse caso pelo risco que essas famílias estão sofrendo, de um despejo forçado a ser feito pela via administrativa, na forma dos casos narrados acima.
Por meio de uma sequência de atos covardes, a Prefeitura de Belo Horizonte retirou cerca de 30 famílias, dentre as quais crianças e idosos, em sua maioria negros e negras, alvos da política higienista e racista, que ocupavam o Viaduto Amazonas, para fins de moradia, há mais de 20 anos. A ação se consumou no lapso de uma semana, tendo em vista que as notificações se deram no dia 21 de junho de 2017, e o despejo forçado se consumou no dia 28 de junho de 2017.
Tratavam-se de moradias consolidadas, diante das quais os gestores públicos não tinham outra alternativa legal senão a de dialogar com os ocupantes, oferecer política de habitação aos mesmos e, em último grau, propor ação demolitória, propiciando aos moradores direito à ampla defesa e ao contraditório, conforme determinado no próprio Código de Posturas de Belo Horizonte (Lei Municipal no. 8616/03), a saber, no inciso II do §1o e o §3o, do seu art. 318.
Ao invés disso, a administração municipal agiu ardilosamente, movendo aparato policial para, em uma manhã, retirar as famílias compulsoriamente, negando-lhes o devido processo legal e solução efetiva de moradia, o que viola, também, as normas internacionais e constitucionais que elevam o direito à moradia como fundamental e essencial à vida digna dos cidadãos.
Para nós, fica demonstrado, mais uma vez, que a política urbana da Prefeitura de Belo Horizonte tem se pautado no higienismo social e no descumprimento de tratados internacionais e diplomas legais internos como fica claro nos casos citados nesse parecer. E, se não houver resistência, as condutas arbitrárias se consolidarão contra a população oprimida e discriminada que mora nas ruas, nas ocupações e que trabalha informalmente.
Diante de todo o exposto, por meio do presente parecer-protesto, as Brigadas Populares opinam pela imoralidade, ilegalidade e inconstitucionalidade dos despejos administrativos, sem que haja direito de defesa e sem que haja alternativa de moradia digna para as famílias.
É o parecer. S.M.J.
Belo Horizonte/MG, 31 de julho de 2017.
JOVIANO GABRIEL MAIA MAYER
OAB/MG nº 129.033
LUIZ FERNANDO VASCONCELOS DE FREITAS
OAB/MG nº 129.463
AILTON COSTA MATIAS
OAB/MG nº 134.708
ANDREA DE JESUS SILVA
OAB/MG nº 156.294
SARAH ALVES LANÇA
OAB/MG 164.410
STEPHANIE OLIVEIRA BASTOS
OAB/MG nº 169.219
ISABELLA GONÇALVES MIRANDA
Pesquisadora e cientista política
THAÍS FERREIRA CONSOLE
Bacharela em Direito
DANIELA FERNANDA CARDOSO DE REZENDE
Bacharela em Direito
Fonte: Brigadas Populares
INTERSINDICAL – Central da Classe Trabalhadora
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