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Diap: “reforma” administrativa de Bolsonaro desmonta serviço público

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O pacote fiscal e a economia discursiva do corte de gastos

“Mais Brasil” ou austericídio? A economia discursiva do corte de gastos [1]*

É preciso desnaturalizar as categorias do discurso hegemônico para o qual o serviço público é apenas um objeto a ser reduzido.

Por Bruno Moretti*

Concluída a reforma da Previdência, o governo Bolsonaro/Guedes já aponta para mais uma agenda de corte de despesas, agora denominada “Reforma Administrativa”. Curiosamente, as 2 pautas são nomeadas como “reformas”, no entanto, nos termos em que são apresentadas pelo discurso oficial e pela grande mídia, não passam de alterações constitucionais centradas na redução dos gastos públicos.

Há uma espécie de encadeamento hegemônico na definição dos problemas públicos, sob o discurso econômico conservador, em que a crise econômica é reduzida metonimicamente a descontrole dos gastos públicos e o ajuste fiscal se torna o centro quase exclusivo da agenda. Estabelecida discursivamente a centralidade da austeridade, o interesse público é achatado numa pauta de reformas que se circunscrevem a reduzir o tamanho do Estado.

Para tanto, as regras fiscais — resultado primário, “regra de ouro” e teto de gastos — cumprem papel decisivo, fazendo a despesa pública aparecer como excesso e criando senso difuso de que o “país vai quebrar”, embora a restrição nada tenha a ver com a efetiva disponibilidade financeira, sendo antes produzida pelo arranjo fiscal vigente.

Especialmente, a Emenda Constitucional 95/16, que congela despesas públicas por até 20 anos (teto de gastos), foi aprovada sob o argumento de que a economia só se recuperaria mediante ajuste fiscal que retomaria a confiança dos investidores. Já são 5 anos de austeridade (melhor seria dizer: austericídio!) sem que a atividade econômica tenha retornado aos níveis pré-crise.

A ênfase exclusiva na despesa omite o fato de que, após a crise econômica que ainda assola o Brasil, a redução das receitas foi muito mais intensa do que a expansão das despesas primárias. Ademais, a elevação da dívida bruta do governo geral não teve na queda do resultado primário seu principal fator explicativo, mas na evolução dos juros nominais, inclusive, respondendo a questões que não são de ordem estritamente fiscal, como a desvalorização cambial e as operações compromissadas. Convém lembrar que países com endividamento maior e risco soberano próximo ao brasileiro gastam em juros valores em relação ao PIB menores do que os aqui despendidos.

De todo modo, o ponto não é apenas desmistificar a relação entre atividade econômica e gasto público, mas compreender como os indicadores fiscais criam configuração em que os dados são dispostos de maneira a tornar a despesa primária (excluídos os juros, portanto) variável de ajuste às restrições produzidas pelas regras de gasto. No caso do teto, que passa a ser tomado como dado inexorável, constituindo uma fronteira a partir da qual o gasto primário é classificado como irregular e deslocando automaticamente a discussão fiscal para o plano dos ajustes necessários ao cumprimento do limite imposto por até 2 décadas.

A reforma da Previdência foi presidida justamente pela lógica acima esboçada. Não por outra razão, seus principais pontos são a restrição de acesso (idade mínima, regras de transição rígidas e aumento da carência para homens que ingressarem no sistema após a promulgação da PEC) e a redução expressiva de valor dos benefícios, que sequer conta com transição. O resultado deverá ser a diminuição imediata em até 40% do valor dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) (considerando os acima do salário mínimo), cujo valor médio é, atualmente, R$ 1,3 mil. Não há, na reforma aprovada, dispositivos pelo lado da receita voltados a promover a sustentabilidade previdenciária, como a inclusão de fontes de financiamento da Seguridade Social para além da folha salarial e da contribuição dos empregados, mesmo diante de sistema tributário regressivo e de mercado de trabalho formal em encolhimento por motivos conjunturais e estruturais.

A peça aprovada pelo Parlamento não trata, pois, de reforma previdenciária, mas de conjunto de medidas para conter a despesa, que deve se ajustar ao teto de gastos. A reforma, no entanto, apenas estabilizará a despesa do RGPS em relação ao PIB até 2026. Para manter o teto, será necessário reduzir a despesa primária, fora o RGPS, em cerca de 4 p.p. de PIB até o 10º ano de vigência da EC 95. Então, seguindo a lógica aqui já referida, a regra fiscal cria a restrição que faz o gasto público aparecer como excesso, de modo a impor a redução da despesa primária como algo inevitável.

É sob o ângulo do ajuste fiscal que a despesa de pessoal passa a incorporar a agenda de “reformas”. Não haverá propriamente uma reforma administrativa proposta pelo governo, pensada como mecanismo para o aperfeiçoamento da administração pública em seus múltiplos desafios, diante de uma sociedade na qual persistem velhos problemas (notoriamente, as desigualdades), combinados a novos, a exemplo das mudanças etárias e da transição para um novo paradigma produtivo. O que há, novamente, é a agenda pública tragada pelo fiscalismo, este mantra estéril e inconsequente.

Em função das regras fiscais restritivas, a redução da despesa de pessoal aparece no discurso oficial como medida urgente e indispensável. Portanto, a proposta deve girar em torno de novas regras para as carreiras públicas (ingresso, promoção, vencimentos, estabilidade, entre outros) que permitam reduzir a despesa de pessoal. Ademais, está sendo defendida a criação de gatilhos, ativados na hipótese de descumprimento das regras fiscais. A partir daí, ficaria autorizada a redução da folha salarial de todos os entes, de modo que a restrição fiscal induz a reestruturação do Estado.

Em última instância, este modelo de Estado fomenta uma lógica competitiva e individual que, na falta de serviços públicos pensados e executados sob o prisma da solidariedade (por exemplo, em razão da já ventilada flexibilização dos pisos de educação e saúde, mas também da possível redução do quantitativo de agentes envolvidos na prestação dos serviços públicos), deve produzir sujeitos que se tornam gestores de suas próprias necessidades, ficando entregues a sua própria sorte ou dependentes da caridade, nos termos da política social pré-Constituição de 1988.

Vale lembrar que a despesa de pessoal e encargos no governo federal foi de 4,4% do PIB em 2018, abaixo dos valores de 2009 (4,6% do PIB), segundo dados do Tesouro Nacional. Pode-se perceber, entre 2000 e 2018, relativa estabilidade da despesa de pessoal em relação ao PIB. Portanto, a tese da explosão dos gastos de pessoal na União não encontra amparo nas estatísticas.

Ademais, é interessante notar como funciona a categorização oficial, que opõe a despesa obrigatória (especialmente, Previdência e pessoal) à discricionária (principalmente o investimento), salientando-se, usualmente, que a dinâmica de crescimento dos gastos obrigatórios implica a redução dos investimentos públicos. Observada a evolução em termos reais dos 2 grupos de despesas em um mesmo gráfico, visualiza-se que as despesas de pessoal crescem e os investimentos recuam nos últimos anos, sugerindo-se causalidade que, todavia, é apenas padrão empírico derivado das regras fiscais.

Afinal, caso fossem retirados do teto de gastos e do cômputo do resultado primário, tendo em vista seu papel em sustentar o crescimento da economia e gerar emprego e receitas públicas, os investimentos federais poderiam ser estimulados, sobretudo, em momentos de crise. Por conseguinte, novamente, estamos diante dos sentidos produzidos por certo encadeamento dos dados, que transforma o gasto obrigatório em algo a ser ajustado por uma administração pública presidida por categorias fiscais jamais problematizadas.

O resultado é que, em 2020, a proposta orçamentária traz investimentos num patamar inferior a R$ 20 bilhões, menos de 30% do previsto em 2014, contribuindo para manter a economia com elevado desemprego. Em 2019, o PIB per capita deve ficar estagnado e o desemprego alcança 12,5 milhões de pessoas, além da perpetuação do déficit primário, tendo em vista a baixa arrecadação.

Ainda no campo das dicotomias criadas pelo par gasto obrigatório x discricionário, é curioso notar que o último polo é tomado como a despesa nobre, aquela que deve ser preservada para que o Estado seja capaz de prestar serviços públicos de qualidade. No entanto, os serviços públicos mais demandados pela população, como segurança, educação e saúde, são intensivos em pessoal, relativizando-se a dualidade gasto finalístico versus folha salarial. Afinal, ela serve apenas para construir artificialmente a oposição entre interesse público e funcionalismo, que se torna o mais novo alvo do ajuste fiscal sem fim, vale dizer: sem fim = sem término; sem fim = sem finalidade, a não ser o próprio desmonte das instituições estatais, configurando uma espécie de “reforma antiadministrativa”.

Enfim, o que se passa no discurso econômico conservador é um sistema que dispõe os dados de forma que o teto de gastos aparece como limite e a despesa primária, como fator de ajuste. Sob essa chave explicativa, como não se pode deixar de executar despesas obrigatórias, os gastos discricionários acabam sendo penalizados. Daí se depreende que o problema residiria no gasto obrigatório e, em particular, de pessoal, e não na regra fiscal restritiva que implica redução de gastos quando há frustração da receita (resultado primário) ou mesmo como percentual do PIB (teto de gastos), independentemente da arrecadação. Importa assinalar que, no caso do teto de gastos, não há paralelo no resto do mundo de regra fiscal constitucional que combine congelamento de despesa, vigência por até 20 anos e quase ausência de cláusulas de escape.

O problema não é apenas desvelar a realidade dos dados (a despesa de pessoal não cresce de forma explosiva e não pode ser pensada em oposição à prestação de serviços), mas desarticular uma visão cuja eficácia radica no fato de que essa se manifesta como regra objetiva, racional e impessoal. Eis aí o ponto central: o arranjo fiscal no Brasil transforma o normativo em descritivo; o juízo de valor da austeridade se converte em objetividade fática, na medida em que os indicadores fiscais fazem ver um Estado a ser contido, movimento reforçado pelo imaginário fomentado da corrupção como fenômeno exclusivamente de Estado que singularizaria o Brasil e explicaria todas as nossas mazelas.

Portanto, o que está em questão é a gramática das reformas, pensadas predominantemente como contenção de gastos e do Estado. O Estado não é uma negatividade que obsta o desenvolvimento e a iniciativa privada. Pelo contrário, são fartos os exemplos de êxito do setor público, ainda que em condições institucionais muito aquém das ideais, em termos de regras de financiamento, seleção, controle, contratação, entre outras.

Para citar alguns poucos e relevantes casos, não haveria descoberta do pré-sal sem a Petrobras. É verdade que as alterações posteriores no marco legal do regime de partilha estimularam modelo de exploração do pré-sal aberto às petroleiras estrangeiras, movidas a benefícios fiscais escandalosos e à diminuição dos índices de conteúdo local, em prejuízo das finanças públicas de todos os entes, do desenvolvimento da cadeia produtiva de petróleo e gás e da geração de empregos em território nacional. No entanto, é sabido que as petroleiras privadas não correram riscos que exigiam investimentos vultosos, tal como fez a Petrobras, diante de sua elevada capacidade técnica, viabilizando as descobertas na província do pré-sal. O exemplo é paradigmático para mostrar a diferença entre a lógica de retorno financeiro no curto prazo e a de empresa comprometida com o desenvolvimento do país.

O SUS, outro caso ilustrativo, coleciona enormes avanços, expressos na queda de indicadores como a mortalidade infantil. O Brasil é o único país no mundo com sistema universal e no qual o gasto privado é superior ao público. Em média, cada brasileiro contribui com cerca de R$ 3,50 por dia para financiar o SUS e ter acesso a procedimentos que vão da vacina ao transplante. Os desafios para o sistema são enormes, sobretudo diante dos vazios assistenciais e da transição epidemiológica, nutricional e demográfica em curso, mas seus resultados são inúmeros, mesmo com o subfinanciamento, que já se torna desfinanciamento em razão do congelamento do piso de aplicação do setor pela EC 95 e do condicionamento do orçamento de saúde à “regra de ouro” do gasto público, segundo a qual não pode haver emissão de dívida acima do montante das despesas de capital, a não ser por autorização específica do Congresso Nacional.

Os benefícios da Seguridade Social são outro bom exemplo. Em razão de sua elevada cobertura (superior a 80%), a taxa de pobreza entre idosos é residual no Brasil. Inclusive, a renda previdenciária ampliou sua participação na renda domiciliar desde o início da crise, mostrando seu papel em garantir proteção social, no contexto de queda da renda do trabalho. Além disso, os gastos sociais são fundamentais para reduzir as desigualdades de renda. Estudo da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) mostra que os gastos das aposentadorias, saúde e educação diminuem em quase 17 p.p. o Coeficiente de Gini no Brasil.

Os exemplos citados não esgotam toda a abrangência da ação estatal, mas ilustram o papel do setor público no desenvolvimento e no bem-estar social do país. Por outro lado, é preciso responder aos desafios de uma sociedade ainda muito desigual e vivendo a retomada econômica mais lenta de sua história com projeto de Estado capaz de garantir a prestação de serviços públicos de qualidade voltados a todos os segmentos sociais. Neste contexto, as carreiras públicas não podem ser reduzidas a despesas obrigatórias que pressionam as regras fiscais, devendo ser pensadas como instrumentos de elaboração e implementação da ação de um Estado do qual a população espera cada vez mais efetividade.

O contexto atual é de ataque a parte substantiva do que se acumulou em termos de capacidade estatal no Brasil. Para fazer frente ao desafio que temos diante de nós, é preciso denunciar o desmonte em curso, mas também propor novas formas de atuação pelas quais o Estado brasileiro se torna apto a processar os pleitos sociais crescentes.

Para tanto, deve haver esforço de inscrever a questão da organização do serviço público em novo léxico, de modo que a reforma já não apareceria associada à mera redução de despesas, e sim ao aperfeiçoamento e à democratização de um Estado que deve ser cada vez mais plural e aberto à vontade popular. É preciso desnaturalizar as categorias do discurso hegemônico para o qual o serviço público é apenas um objeto a ser reduzido.

(*) Economista pela UFF. Mestre em economia pela UFRJ. Doutor e pós-doutor em Sociologia pela UnB. Analista de Planejamento e Orçamento, atualmente cedido para o Senado Federal. Título original

______________________
NOTA

[1] Este texto é uma versão ligeiramente modificada de outro do mesmo autor e título, presente como Prefácio do livro Desmonte do Estado e Subdesenvolvimento: riscos e desafios às organizações e às políticas públicas, organizado e editado por J. Celso Cardoso Jr. (TPP – Ipea) e publicado pela Afipea-Sindical em parceria com a Articulação de Carreiras Públicas para o Desenvolvimento Sustentável (Arca), 2019, no prelo.

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