Não se faz reforma alguma sem estudos e cálculos profundos e firmemente embasados. A proposta que está em pauta apresenta atropelos matemáticos que podem ser desastrosos no futuro. O trabalhador que constrói o país não pode perder seus direitos e merece um sistema justo e que funcione.
Há algumas questões que parecem nunca sair da pauta de reformas constitucionais e legislativas, como a reforma “tributária”[1] e a do sistema previdenciário.
Nos últimos meses a chamada “reforma previdenciária” tem ocupado a atenção do Congresso Nacional, que colocou importantes medidas a ela relacionadas em pauta de votação, como a PEC 287/2016. O debate sobre o tema está na mídia e nas ruas, como se viu nas manifestações ocorridas no último dia 28.
É interessante notar como um tema de tamanha relevância para a vida das pessoas e do país é tão pouco estudado, sendo escassos os trabalhos que abordam o tema com profundidade – embora isso não venha a ser novidade no âmbito do Direito Financeiro, em que fatos como esse chegam a ser corriqueiros. Essa é uma falha que os estudiosos não podem continuar a cometer. E o momento é mais do que oportuno para se dedicarem ao tema e suprirem esta inexplicável lacuna, trazendo elementos que possam esclarecer a todos, qualificar o debate, e não deixar que se cometam erros em um assunto que afeta as gerações presente e futura.
Para isso é importante que se conheçam algumas informações básicas que formam a estrutura jurídico-financeira do sistema previdenciário brasileiro.
De início, há que se destacar ser de tal forma relevante esse sistema, que a lei orçamentária anual dos entes da federação brasileira, nos expressos termos do art. 165 da Constituição, comporta uma subdivisão em três partes, a saber: a) o orçamento fiscal, referente aos Poderes do ente federado, seus fundos, órgãos e entidades da administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo poder público; b) o orçamento de investimento das empresas controladas pelo o ente da federação; e c) o orçamento da seguridade social, que abrange “todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direta ou indireta, bem como os fundos e fundações instituídos e mantidos pelo poder público”.
Uma organização orçamentária que se mostra de todo conveniente, pois permite melhor administração, maior controle e transparência sobre os recursos da seguridade social, evitando que se dispersem por todo o orçamento, misturando receitas e despesas de diversas naturezas e impedindo que se conheça a estrutura financeira do que está entre os mais – se não o mais – importante sistema de proteção financeira dos direitos sociais.
Há que se destacar a relevância financeira do Orçamento da Seguridade Social, que, neste exercício financeiro de 2017, segundo a lei orçamentária federal vigente (Lei 13.414/2017), estima a receita total da União em mais de três trilhões de reais (R$ 3.505.458.268.409,00), e o Orçamento da Seguridade Social participa nesse montante com mais de R$ 600 bilhões (R$ 668.099.666.174,00).
Desde logo convém observar que previdência social, cuja reforma está em acalorada discussão, insere-se no contexto da seguridade social, que abrange saúde, assistência social e a previdência social. A Constituição trata do tema nos artigos 194 a 204 (Saúde, arts. 196 a 200; Previdência Social, arts. 201 e 202; e Assistência Social, arts. 203 e 204).
O artigo 195 prevê que a seguridade social será financiada por toda a sociedade, sendo fontes de receita da seguridade social (e não somente da previdência social), recursos dos orçamentos de todos os entes federados e também (mas não somente)[2] das seguintes contribuições sociais:
I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:
a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;
b) a receita ou o faturamento;
c) o lucro;
II – do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201;
III – sobre a receita de concursos de prognósticos.
IV – do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar.
A Lei 8212/91 detalha o financiamento da seguridade social (arts. 10 e seguintes), enumerando as diversas formas de obtenção de recursos especificamente destinados a compor o Orçamento da Seguridade Social, evidenciando, apenas no que tange a este aspecto, uma ampla gama de fontes que entram na composição das receitas do sistema.
Incomparavelmente mais complexa é a especificação do que deve ser incluído como despesa da seguridade social como um todo, incluindo a previdência social. Inúmeros exemplos poderiam ser citados evidenciando a dificuldade em delimitar quais sejam essas despesas, e também separar benefícios previdenciários de assistenciais. Em razão disso, o fato é que se constata não ser simples a verificação do desejável equilíbrio entre as receitas e despesas do sistema de previdência social, e apuração do eventual déficit existente, a fim de que seja possível, com segurança e transparência, promover alterações que efetivamente tragam uma solução para o problema, no curto e longo prazos, garantindo a sustentabilidade do sistema.
A esse já difícil detalhamento das receitas e despesas que compõem o sistema de previdência social, soma-se o “desenvolvimento e aprimoramento” da “contabilidade criativa”, que “evoluiu” muito nos últimos anos, e pouca segurança se consegue ter do que deve ou não estar no rol dos itens que a integram. Muitas das despesas alocadas no Orçamento da Seguridade Social são de discutível relação com suas finalidades, onerando-o indevidamente.[3]
Recentemente, mudanças na organização da administração pública federal intensificaram ainda mais a dificuldade no gerenciamento dos recursos da previdência social. O Ministério da Previdência Social, que concentrava a administração do sistema, já no governo da ex-presidente Dilma Roussef, foi incorporado ao Ministério do Trabalho e, mais recentemente, no atual governo, ao Ministério da Fazenda. De fato, tornaram-se ligados ao Ministério da Fazenda o Conselho Nacional de Previdência e a Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência (antes denominados de Conselho Nacional de Previdência Social e Dataprev, respectivamente). Da mesma forma a Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc), o Conselho Nacional de Previdência Complementar e a Câmara de Recursos da Previdência Complementar. O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e o Conselho de Recursos da Previdência Social passaram a compor, no entanto, o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário – mudança que parece ter surpreendido até o ministro da pasta.[4] Com isto, este Ministério é o órgão atualmente responsável pelo Programa 2061 (Previdência Social), o qual, no orçamento de 2016, situava-se no âmbito de competências do Ministério do Trabalho e Previdência Social.[5]
Com isso, os recursos relacionados à previdência social, sob o aspecto da classificação orçamentária institucional, ficaram bastante dispersos, dificultando a visualização, identificação e gerenciamento da atividade financeira relacionada à previdência social.
Não se pode esquecer também da Desvinculação de Receitas da União (DRU), que permite a desvinculação, até o final de 2023, de 30% da arrecadação da União em relação às contribuições sociais, contribuições de intervenção no domínio econômico e taxas. A desvinculação foi estendida ainda aos estados (artigo 76-A do ADCT) e aos Municípios (artigo 76-B), com as exceções ali elencadas. A este respeito, nota-se que desde o surgimento do Fundo Social de Emergência, fruto da Emenda Constitucional de Revisão 1 de 1994, desafetam-se parte das receitas das contribuições sociais já referidas, destinadas a financiar a seguridade social. Esta previsão reiterou-se, ainda, no Fundo de Estabilização Fiscal (ECs 10/1996 e 17/1997) e nas regras anteriores da DRU, pelas emendas 27/2000, 42/2003, 56/2007 e 68/2011, até chegar à forma atualmente vigente.
Excessos de renúncias fiscais, elevada sonegação de tributos e contribuições, e leniência na cobrança da dívida ativa, só agravam o quadro de incerteza sobre qual a é verdadeira situação das finanças públicas em matéria previdenciária, e dificultam aferir a existência e exata dimensão do alegado déficit, bem como suas reais causas.
Em face de tudo o que se pode constatar, vê-se que o Orçamento da Seguridade Social, como instrumento para dar transparência, garantir o equilíbrio financeiro e aperfeiçoar a gestão do sistema de seguridade social, e por consequência da previdência social, está com suas funções bastante prejudicadas, como destacou Élida Graziane Pinto neste espaço.[6]
Do exposto, não é de se espantar a diversidade de opiniões sobre o tema, com posições diametralmente opostas, e todas elas fundadas em dados financeiros e estatísticos, o que deixa atônitos não só o cidadão comum, como também os parlamentares que estão com a responsabilidade de decidir esse tema crucial para o presente e o futuro do país.
Há uma quase unanimidade em reconhecer existir uma insustentabilidade do sistema previdenciário no longo prazo, o que exigiria uma reforma o quanto antes para evitar este problema futuro, e nesse sentido é de se louvar a firme atuação dos governantes. Um raro exemplo de preocupação com as próximas gerações, o que é bastante inusitado, verdadeira exceção à regra infelizmente vigente, de pensar somente no presente e agir como bombeiro, apagando incêndios e consertando erros cometidos no passado. Mas a questão é por demais relevante e há que se agir com cautela.
Esse espaço é por demais exíguo para discorrer sobre o tema com um mínimo de profundidade. Há ainda a tormentosa questão da previdência dos servidores públicos e a situação dos estados e municípios. Mas penso ser importante chamar a atenção para a enorme complexidade e dimensão do problema. E a evidente necessidade de que sejam feitos estudos mais claros, transparentes e compreensíveis, que permitam tomar decisões acertadas. A sociedade tem pressa, as reformas urgem, e o tempo está passando. Mas o provérbio “a pressa é inimiga da perfeição” aplica-se com perfeição (com o perdão pela redundância) a essa situação. E a sabedoria popular manda nesses casos andar “devagar com o andor, que o santo é de barro”.
Os trabalhadores, que ontem comemoraram o seu dia, e são os responsáveis pela construção de um país melhor, merecem ter seus direitos respeitados e a segurança de um sistema justo que os proteja na saúde, doença e velhice, e para isso é preciso que se construa e mantenha um bem estruturado sistema de previdência social, o que não se faz sem estudos profundos, sérios e tecnicamente precisos, que devem ser analisados com cuidado e sem açodamento.
[1] Que prefiro colocar entre aspas porque defendo que as principais questões controvertidas estão muito mais no âmbito do direito financeiro do que tributário, sendo mais correto se a denominassem de “reforma financeira”.
[2] O art. 11 da Lei 8212/91 também é claro nesse sentido, ao dispor que, no âmbito federal, o orçamento da Seguridade Social é composto por receitas da União, das contribuições sociais e de outras fontes.
[3] Nesse sentido, veja-se Ricardo Calciolari, O Orçamento da Seguridade Social e a efetividade dos direitos sociais (Curitiba: Juruá, 2009), páginas 135-136, entre outros trechos.
[4] http://politica.estadao.com.br/blogs/coluna-do-estadao/inss-vai-para-desenvolvimento-social-e-agrario-e-ate-ministro-fica-surpreso-com-mudanca/
[5] Ver, a propósito, a Lei 13.414, de 10 de janeiro de 2017, que estabelece o orçamento para o exercício de 2017, em conjunto com a Lei 13.341, de 29 de setembro de 2016.
[6] Coluna Inconstitucionalização do réquiem para o Orçamento da Seguridade Social, publicada em 28.3.2017.
Fonte: Previdência: Mitos e Verdades / Por José Maurício Conti, no Conjur
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