Há perigo que uma agenda de direitos tão justa sirva para esconder uma outra agenda que é a diferença de classe
Em debate promovido pela “Carta Capital”, Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai, recebeu uma questão da plateia. Uma mulher lhe perguntou sobre a luta das mulheres. Mujica falou do machismo do continente, da sua batalha pela implementação da lei que garante o aborto no Uruguai. Principalmente, salientou que são as mulheres mais pobres as mais prejudicadas. E lançou um alerta:
“Há perigo que essa agenda de direitos tão justa sirva para esconder a grande agenda que é a diferença de classe”.
Está aí um ponto de necessário debate. A batalha das mulheres é essencial, mas ela não pode ser dissociada de lutas mais amplas pela emancipação da sociedade, pela superação de injustiças, pelo rompimento de dominações.
Nas palavras de Ângela Davis, é preciso “reconhecer a interdependência e a interconectividade entre racismo, capitalismo e patriarcado. Nós não avançaremos em nenhuma de nossas lutas principais se não formos capazes de desafiar e finalmente desmantelar o capitalismo”, diz a filósofa norte-americana.
Da mesma forma, negros, índios, quilombolas, LGBTs e todos precisam refletir sobre como suas pautas específicas se interconectam com a situação dramática do país e os caminhos para superá-la.
Não são minorias. São, no conjunto, a maioria do povo brasileiro. Esses movimentos, junto com trabalhadores, sindicalistas, sem-terra, sem-teto, estudantes estão se levantando contra o golpe jurídico-parlamentar que completa um ano. Percebem que, para além de suas reivindicações específicas, é necessário derrubar o governo antipopular e antinacional.
Foi o que ficou evidente na expressiva greve geral de 28 de abril, na marcha das mulheres em 8 de março, nas manifestações de sem-terra, de indígenas, de sem-teto, de artistas, de professores e funcionários pelo país afora. Está claro que o golpe foi dado para derrubar conquistas sociais, direitos, a Previdência, mas igualmente para destruir a Petrobras, desnacionalizar a produção e estrangular a infraestrutura, a engenharia, a arte, a pesquisa, a ciência.
Direitos humanos estão sendo atacados; basta lembrar dos recentes massacres a agricultores e indígenas. Os mais pobres e mais vulneráveis são alvo de covardes. A sanha entreguista sequestra o futuro do país, abre a Amazônia a estrangeiros, menospreza o ambiente, tenciona liberar agrotóxicos banidos. Quer fazer o país retroceder ao início do século passado. Mais: propostas para o trabalho do campo lembram a escravidão.
O que ganham com isso? O poder de arbitrar negócios, obter vantagens econômicas privadas, receber um tapinha nas costas dos seus senhores do universo.
Mas não vai ser fácil seguir destruindo o país. A repulsa à situação atual está crescendo, como se viu em Curitiba. Os diversos movimentos, que conferem diversidade e multiplicidade à sociedade brasileira, há muito perceberam que não há como superar injustiças contra mulheres, negros, indígenas, LGBTs e tantos outros sem uma mudança profunda.
Não avançaremos sem construir um país renovado, com uma ideia de nação que inclua as diferenças e supere desigualdades seculares. Para isso, precisamos interconectar as diversas lutas e formular um projeto.
Foi com esse diagnóstico que cidadãos de diferentes posições políticas se reuniram para discutir o Projeto Brasil Nação, lançado em 27 de abril em São Paulo. O texto inaugural analisa o momento, esboça pilares gerais de reconstrução nacional e coloca foco na questão da economia. Já colheu mais de 10 mil assinaturas e segue recebendo apoios (www.bresserpereira.org.br).
Como esperado, recebeu críticas iradas à direita, sempre ocupada em preservar ganhos dos rentistas e entreguistas. A pregação de economistas neoliberais supõe que a economia deve servir apenas à acumulação privada; a população é apenas um efeito colateral a ser esmagado. As afirmações histéricas de certa elite contra o projeto revelam que ele toca no ponto essencial que os golpistas querem destruir: a própria ideia de nação.
Além disso, ao colocar pontos econômicos específicos, o manifesto aponta caminho alternativo. Sim, há saída para o país. E radicalmente diferente da demolição e do sufocamento impostos hoje. É possível construir desenvolvimento com inclusão.
Muitos dos apoiadores do manifesto, apartidário, sugerem que o projeto deveria se debruçar sobre outras questões. País absurdamente desigual, com história encharcada de escravidão, revolta e injustiça, o Brasil tem muito a debater, agregando diferentes grupos, posições, movimentos, sem exclusão. É uma elaboração complexa e necessária.
No lançamento, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, foram lembrados outros movimentos que por ali passaram, como o abolicionismo, a campanha “O Petróleo é Nosso” e as jornadas pela derrubada da ditadura militar e pela anistia.
Espaço histórico das lutas democráticas, as Arcadas rejeitaram Luiz Gama, mas acolheram personagens como Castro Alves e Joaquim Nabuco. Se a luta fundamental foi travada nos quilombos e com as rebeliões escravas, o abolicionismo contribuiu para disseminar apoios na sociedade e no parlamento para a derrubada do regime, cujas raízes ainda permanecem expostas na sociedade.
Primeiro movimento social do país, o abolicionismo recebeu adesões de estudantes, professores, artistas, como relata Angela Alonso em “Flores, Votos e Balas”. E conquistou também adeptos entusiasmados no Largo São Francisco. (A propósito, esta é a semana Luiz Gama, organizada pelo Centro Acadêmico XI de Agosto).
Em meados do século 20, estudantes daquela escola também foram militantes da campanha “O Petróleo é Nosso”, uma das maiores que o país viveu. Contrariando interesses estrangeiros, a população mobilizada foi fundamental para a nacionalização do petróleo e a criação da Petrobrás, como informa o jornalista Mario Victor em “A Batalha do Petróleo Brasileiro”.
Pelo Brasil inteiro foram criados comitês, formados por entidades sindicais, empresariais, parlamentares, militares, políticos. Organizaram debates, manifestações, intervenções políticas. É um equívoco considerar que a campanha girava só em torno de Monteiro Lobato.
Lobato, um nacionalista defensor da exploração de petróleo no Brasil – quando os estrangeiros diziam que não havia nada por aqui – , não queria a fundação da estatal Petrobras. Privatista, advogava a exploração do óleo por empresas de capital privado.
Há alguns anos, um grupo tentou tachar Lobato de racista. Recordo aqui das palavras de Beatriz Resende, professora de poética da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na apresentação de “Monteiro Lobato, Livro a Livro, Obra Adulta”. Ela trata do texto “Negrinha”, do autor:
“O momento do conto em que, diante de uma boneca, a menina sem nome se descobre criança como as outras é o libelo mais contundente que poderia ser escrito naquele momento contra as desigualdades raciais. Basta a leitura de ‘Negrinha’ para compreender toda a tolice que envolve as críticas feitas a momentos de sua literatura em que reproduz o linguajar racista de seus contemporâneos. As falas evidentemente irônicas da boneca Emília, por exemplo, são o eco da sociedade racista, classicista, escravocrata que atravessa o século 20 e chega até hoje convencida de espaços como as universidades não se devem abrir aos pobres, aos diferentes e vêm na ainda tímida política de cotas uma heresia e nas condenações penais por racismo um excesso”.
Portanto, tentar enquadrar a campanha que resultou na criação da Petrobras numa nuvem racista não faz qualquer sentido. É jogar na confusão e na dispersão.
Hoje, dado o tamanho da escalada de destruição em curso, temos muito a aprender com as mobilizações contra a escravidão e pela nacionalização do petróleo. Em seus tempos, elas foram capazes de aglutinar brasileiros. Foram vitais para a construção do país.
Nas últimas décadas, floresceram múltiplos movimentos no universo da centro-esquerda. Impulsionados na luta pelo fim da ditadura militar, trabalhadores, mulheres, negros, sem-terra, sem-teto, LGBTs, indígenas, quilombolas, afetados pela construção de barragens, pela mineração, defensores da saúde pública, da educação, dos direitos humanos e tantos outros reforçaram ou criaram grupos de ação e reflexão.
A Constituinte de 1988 _hoje alvo de ataque dos golpistas_ já foi fruto da atuação organizada da sociedade que se reinventava após décadas de sufocamento. Por isso, a Constituição busca a inclusão, o desenvolvimento com o bem-estar da população e com a autonomia tecnológica, como está no seu artigo 219.
A redemocratização enriqueceu o debate, ampliando pautas e mobilizando diversos setores. O sindicalismo e os movimentos sociais ganharam força e complexidade, indo muito além das raízes deixadas pelos movimentos contra a carestia e pela anistia, ainda no final dos anos 1970.
É preciso lembrar que toda essa dinâmica se deu em um mundo em que o neoliberalismo passou a exacerbar o individualismo, o consumismo, a chamada “meritocracia”. Assim, num clima de guerra de todos contra todos, histórias pessoais de ascensão social passaram a ser invejadas e a servir de pretenso modelo para os excluídos da feroz concentração de renda global.
O capitalismo financeiro, estrangulando a produção e exterminando empregos, captura a política, estraçalha laços de solidariedade e tenta solapar lutas por igualdade. Seu esforço é sempre no sentido de fracionar, compartimentalizar, dividir, conter cada grupo no seu escaninho, cada um no seu quadrado.
É preciso enfrentar essa predatória lógica neoliberal. Por isso, é urgente debater com todos, construir um projeto para o Brasil.
Como bem disse Mujica, não podemos perder de vista o que é o principal. Fragmentados não enfrentaremos golpistas, racistas e aristocratas que sonham com a volta da escravidão.
Fonte: Carta Capital
Tópicos relacionados
Comentários