EPSJV-Fiocruz / Maíra Mathias
Aprovação da entrada do capital estrangeiro na assistência à saúde coloca o governo em rota de colisão com a militância do SUS, que critica os argumentos oficiais
A ressaca já tinha sido grande quando, no dia 19 de janeiro, a presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei 13.079, que modifica a Lei Orgânica da Saúde e contraria a Constituição de 1988 para permitir a entrada do capital estrangeiro na assistência à saúde. Contudo, foi apenas nos dias seguintes à sanção que a atuação do governo federal no episódio foi ficando clara.
Atropelo do controle social e argumentos que não convencem: tudo isso dá a dimensão dos interesses por trás da medida que levou o Executivo a entrar em rota de colisão com as entidades da Reforma Sanitária e a militância do SUS. Nessa matéria, tentamos recuperar parte do processo para contrapor os argumentos oficiais às críticas, abordando ainda as perspectivas de ação legal e luta política que se abrem em ano de 15a Conferência Nacional de Saúde.
Tudo começou na Câmara dos Deputados, onde tramitava a Medida Provisória (MP) nº 656 de 2014, editada pela Presidenta da República, que tratava do reajuste da tabela do Imposto de Renda (que, afinal, seria vetado por Dilma Rousseff). Os parlamentares acharam por bem incorporar 32 temas estranhos à MP 656, que, acrescida de aproximadamente cem artigos, passou a tratar de assuntos tão diferentes quanto a construção de um aeroporto particular e o perdão da dívida de clubes de futebol com a União.
O texto, definido por muitos como uma “colcha de retalhos”, incluiu, por fim, a participação direta ou indireta do capital estrangeiro na saúde, abrindo a porteira para que empresas de fora do país atuem na assistência à saúde, adquirindo ou operando hospitais comerciais e filantrópicos, clínicas, laboratórios e outros serviços, como o planejamento familiar. Aprovada no dia 17 de dezembro, a MP se transformou no Projeto de Lei de Conversão nº 18 e seguiu para sanção presidencial, que deveria ocorrer em no máximo 15 dias. Em uma corrida contra o tempo, nove entidades do Movimento da Reforma Sanitária se mobilizaram em torno da campanha “Veta Dilma!”.
No dia 18 de janeiro, o ministro da Saúde solicitou uma reunião com representantes dessas entidades. Em meio à intensa campanha de mobilização, elas esperavam que o encontro fosse uma oportunidade de debate. Contudo, a decisão do governo já estava tomada. “A manifestação do ministro era favorável à sanção. Na ocasião, ele nos disse que ninguém da Esplanada iria pedir o veto. Para ele, a permissão à presença do capital estrangeiro iria ‘legalizar’ uma situação que, de fato, já vem ocorrendo e, uma vez legalizada a situação, poderia haver uma regulação clara por parte do governo”, conta a presidente do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes), Ana Maria Costa.
Ministro da Saúde, Arthur Chioro. Foto: Reprodução
Na ocasião, as entidades argumentaram que a regulação deveria ter como ponto de partida a Constituição e a Lei Orgânica da Saúde e não o atropelo de uma e de outra. “Ressaltamos que a base legal da regulação está clara e que, se vêm ocorrendo fatos que burlam a lei, eles deveriam ser apurados e punidos. Não seria caso para investigação por parte da Polícia Federal? Por que não vêm ocorrendo punição e interdição à ação do capital estrangeiro em serviços de assistência à saúde se há indícios de que empresas nacionais são, de fato, operadas por recursos estrangeiros?”, relembra a presidente do Cebes. A posição firme das entidades não agradou Chioro, que taxou-as de “atrasadas”.
Maior instância de controle social no SUS, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) foi o primeiro a advertir que a abertura do capital estrangeiro significaria um risco à soberania sanitária brasileira, ao Sistema Único e à própria Constituição. Em nota publicada em 18 de dezembro, a mesa diretora do CNS frisou que o parlamento tomou a decisão “ao apagar das luzes do ano legislativo e sem debate”. Foi justamente a primeira reunião do ano do CNS, no dia 27 de janeiro, a ocasião escolhida pelo ministro da Saúde para externar suas críticas às vozes críticas. Segundo Chioro, aqueles que se posicionaram contra a medida sofrem de um “antagonismo político inadequado”. Ainda segundo o ministro, lhes “falta capacidade de análise a fundo da matéria”.
Essa avaliação, contudo, não impediu que no dia 29 de janeiro o ministro se reunisse com as mesmas entidades que criticou na véspera, buscando retomar um canal de diálogo com o Movimento da Reforma Sanitária. Na reunião, Arthur Chioro voltou a expor os argumentos do governo, na tentativa de envolver as entidades na elaboração de um termo de referência para a criação de um grupo de trabalho para apoiar a pasta no tema da regulação.
“Como a lei não prevê nenhuma regulação – e isso está muito claro – o ministro convidou as entidades para estudar mecanismos de regulação do setor privado. Mas é uma proposta que parte da admissão de que a lei já está aprovada. E nós confiamos que será declarada inconstitucional”, afirma Luis Eugenio Portela, presidente da Associação Brasileira da Saúde Coletiva (Abrasco).
Sobre a posição do Executivo no episódio, Ana Maria Costa lamenta: “Saímos das reuniões com a sensação de um diálogo entre estranhos morais, ou seja, os argumentos do Movimento da Reforma Sanitária não repercutiram e nem sensibilizaram as posições aparentemente firmes e convictas do ministro”, resume.
Argumentos do ministro
As posições firmes do Governo Federal foram apresentados em relato divulgado pela Abrasco. Nele, a vice-presidente da entidade, Eli Iola Gurgel, destaca os argumentos apresentados por Arthur Chioro na reunião do dia 29 de janeiro: “Ele afirmou que a proposta de inserção das medidas na MP 656 foi de iniciativa da ‘base do governo’. Analisa que passados 27 anos da criação do SUS o mundo mudou muito… Ao longo desse período ocorreu um processo ‘lento e gradual’ de abertura para o capital estrangeiro”. Ainda de acordo com o relato, o titular da Saúde teria dito que a Constituição de 1988 prevê um sistema de saúde público, mas não estatal, e que, hoje, não seria possível ignorar o fato de 52 milhões de pessoas terem planos de saúde.
Ainda segundo o relato, o ministro afirmou que ao longo do processo de expansão do mercado privado, houve escapes que permitiram a entrada do capital estrangeiro, em referência à lei 9.656 sancionada em 1998 no governo Fernando Henrique Cardoso. Sem a lei, a Amil não poderia ter sido vendida por R$ 10 bilhões para a United Health, nem a Intermédica para o grupo de investimentos Bain Capital por quase R$ 2 bilhões.
De acordo com o ministro, o caso explicita a assimetria criada no mercado prestador privado, uma vez que o capital estrangeiro demonstrou mais interesse em comprar operadoras de planos de saúde que tinham rede assistencial própria, ou mesmo comprou operadoras para depois adquirir serviços de assistência à saúde. Por fim, Eli Iola destaca que Chioro “admitiu que já estava acontecendo, no governo, uma movimentação para aprimoramento da regulação do mercado privado (o BNDES, por exemplo, abriu linha de empréstimo/investimento para filantrópicos), mas usou a expressão ‘atropelados’ para se referir à condução da alteração na medida provisória 656”.
Economista Carlos Octávio Ocké-Reis, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Foto: Cebes
Manobra retórica
Na análise do economista Carlos Octávio Ocké-Reis, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os argumentos do ministro encobrem um conjunto de fatos relevantes para a compreensão dos efeitos da abertura do capital estrangeiro no SUS e na própria dinâmica do mercado privado nacional. “Do ponto de vista retórico, o argumento dele é de um regulador que tem que prezar pela competição dos mercados.Chioro está dizendo que há relações assimétricas porque alguns agentes econômicos tiveram vantagens em função de um determinado arranjo institucional relativo aos planos de saúde. Então, é importante ter um arranjo institucional que também contemple os hospitais, permitindo uma simetria na competição entre eles”, afirma, completando: “Só que o ministro se esquece de dizer que não é uma competição no sentido de favorecer o consumidor, de tornar os preços mais baratos, de ter uma sinergia com o SUS”.
Para identificar as lacunas da argumentação oficial, é preciso, no entanto, olhar melhor para o cenário a que ela se refere. “Resumindo, o objetivo das empresas é crescer, ou seja, ganhar novos mercados e abocanhar uma fatia cada vez maior dos usuários saudáveis. Alguns mercados são mais relevantes do que outros. É o caso de metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro, onde a população tem nível mais alto de renda e há maior concentração de médicos, insumos e serviços. As empresas, portanto, competem entre si para obter fatias maiores desses mercados. A isso se chama market share ou cota de mercado”, explica Ocké. A partir disso, o economista resume as três tendências que regem o mercado da saúde hoje: centralização, concentração e internacionalização.
A centralização (também chamada de verticalização) ocorre na medida em que a empresa que opera planos de saúde também é dona de hospitais, clínicas e laboratórios. Como o plano de saúde é o grande intermediário na relação entre os clientes e os serviços de saúde privados, as operadoras mais centralizadas ficam à frente da concorrência pois tem maior poder de barganha e ganham na escala. Já a concentração é esse grupo econômico ter cada vez um número maior de usuários no total de usuários desse mercado. “O mercado de planos de saúde hoje é extremamente concentrado, é um oligopólio. Ou seja, são poucos os planos de saúde cobrindo a maior parte do contingente consumidor desses mercados relevantes”, descreve Carlos.
No setor hospitalar, a lógica é a mesma e o diagnóstico também. “O setor hospitalar privado de primeira linha é oligopolista, quase monopolista. São poucos agentes econômicos nesse mercado. Por isso tem uma briga de cachorro grande dos grandes hospitais com os planos de saúde. Os grandes hospitais são oligopolizados e os planos de saúde também. Uns tem uma relação de compra, outros uma relação de venda”, explica Ocké-Reis. A diferença entre as operadoras e planos se resumia à terceira tendência mencionada pelo economista: a internacionalização, ou seja, a injeção de capital estrangeiro nas operações. Agora, a diferença não existe mais. E, segundo o ministro, agora começa a regulação.
“A regulação pragmática seria aquela que, ao verificar um processo de concentração e centralização em determinados setores, ao invés de coibir o processo, o usa como justificativa para liberar geral. Ou seja, não se trata de regular tendo como objetivo o redesenho ou a reestruturação de um mercado à luz de determinados princípios e orientações do Ministério da Saúde, mas algo que acontece a reboque dos interesses desse mercado. Como existe uma relação público-privada deletéria para o público no Brasil – seja no que se refere à utilização, seja no que diz respeito ao financiamento –, fortalecer a hegemonia do mercado é, na prática, fragilizar o SUS”, entende Ocké.
O presidente da Abrasco também rebate outros pontos da argumentação do ministro, como a justificativa de que o Executivo teria sido atropelado por sua base parlamentar. “Esse projeto entrou sorrateiramente no meio de uma medida provisória mas não foi um raio em céu azul. Ele já havia transitado por diversas áreas de governo com pareceres que permitiram que fosse adiante. Então, não foi uma surpresa. Pelo menos para o governo”. A afirmação de que, finalmente, o Estado atuará na regulação do capital estrangeiro segundo Portela é “falaciosa”, pois não dá a real dimensão dos problemas que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) enfrenta junto às empresas nacionais.
“Temos assistido uma regulação extremamente falha do ponto de vista dos interesses do SUS. Nem mesmo o ressarcimento está sendo feito plenamente. Sem falar da porta giratória. Os diretores da ANS saem para assumir cargos nas operadoras e vice-versa. Ou seja, o órgão regulador está dirigido por membros do setor regulado. É uma situação de captura”, critica.
Antes e depois da sanção, notícias de negociações da compra de hospitais pipocaram na mídia comercial. No dia 23 de janeiro, a Folha de S. Paulo anunciou que a Rede D´Or, maior empresa de hospitais do país (com 27 unidades), estava em negociações com o fundo estadunidense Carlyle. Contudo, a avaliação geral é de que os investidores estrangeiros não devem entrar no país para construir hospitais e, sim, comprar os já existentes. Tampouco o capital estrangeiro vem para suprir lacunas assistenciais da rede privada, como pediatria, mas para investir em filões que dão lucro, como neurocirurgia, ortopedia, cardiologia e oncologia.
SUS: mais longe
Segundo o presidente da Abrasco, a medida reforça um processo de segmentação do sistema de saúde e de abdução do sentido constitucional do direito à saúde. “Há uma ação muito bem articulada dos atores interessados na mercantilização da saúde. Esses interesses são bem representados no parlamento, inclusive por meio do financiamento de campanhas de vários deputados, senadores, e também de candidatos ao Executivo. Objetivamente, a situação é muito difícil do ponto de vista da manutenção de um Sistema Único de Saúde”, avalia.
Para Ana Costa, já pode se falar em uma rede anti-SUS, eficaz na defesa dos interesses privados das empresas que financiam campanhas eleitorais. “Não podemos esquecer que recentemente o SUS foi derrotado na votação da PEC [Proposta de Emenda à Constituição] 358 sobre o Orçamento Impositivo, apoiada pelo governo. A medida mudou as bases do repasse federal e impôs subtração de cerca de R$ 10 bilhões para o orçamento da União na saúde. Do conjunto dos deputados, apenas 44 deles votaram contra. Entre aqueles que votaram a favor, estão deputados das ‘fileiras do movimento sanitário’. Se vamos ao financiamento das campanhas, essa rede perversa anti-SUS fica ainda mais evidente: operadoras de planos, seguradoras, indústria farmacêutica investem muito nas eleições destes ‘representantes do povo’ que, naturalmente conduzem seus mandatos em favor de seus financiadores”.
Luis Eugenio observa que, no discurso, nenhum desses atores se posiciona claramente contra o Sistema Único. “O SUS enquanto complemento, sistema de resseguro, que paga os procedimentos de alto custo, que garante uma atenção básica razoável para as pessoas que não podem pagar planos; esse SUS é muito interessante. Agora, o SUS enquanto sistema único de igualdade, qualidade para todos, esse SUS está cada vez mais longe”, diz.
Batalha legal
Depois de serem atropeladas pelo Legislativo e Executivo, as entidades concentram esforços para barrar a lei no Judiciário. Por terem caráter científico, contudo, não podem recorrer diretamente ao Supremo Tribunal Federal (STF). A estratégia adotada é oferecer assessoria técnica a partidos, sindicatos, confederações e outras entidades de classe que queiram apoiar a luta. A primeira parceira do movimento foi a Confederação Nacional dos Trabalhadores Liberais Universitários Regulamentados (CNTU) que encaminhou ao Supremo a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.239 no dia 13 de fevereiro. A ADI engloba dois pedidos. No curto-prazo, pede a suspensão liminar do artigo 142, impedindo a lei de entrar em vigor até que seja julgada pelos magistrados, que vão examinar se a lei fere ou não a Constituição. Julgamentos assim podem demorar até dez anos.
Nesse sentido, há um precedente importante aberto por um órgão do próprio Executivo. No dia 3 de fevereiro, o jornal O Estado de S. Paulo divulgou trechos de parecer sigiloso da Advocacia Geral da União (AGU) sobre o tema. O documento foi encaminhado à Presidência da República no dia 15, portanto quatro dias antes da sanção e, segundo publicou o jornal, argumentava que “o dispositivo constitucional prevê, de fato, vedação expressa à participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País. A ressalva aos casos previstos em lei deve portanto ser entendida como alusão a casos excepcionais, que justifiquem objetivamente a abertura ao capital estrangeiro das ações e serviços de saúde previstos constitucionalmente”.
Luta política
Enquanto os argumentos jurídicos contrários à entrada do capital estrangeiro na assistência à saúde têm peso, o mesmo não se pode dizer da atuação política das entidades e da militância do SUS, frente a uma correlação de forças desfavorável. Na avaliação de Carlos Ocké-Reis, o movimento sofre de uma lacuna teórica e estratégica. “A construção do SUS universal, integral e equitativo é um objetivo estratégico do Movimento da Reforma Sanitária. Se esse objetivo é consensual, ele sozinho não permite homogeneizar a caracterização da conjuntura, nem organizar ações táticas, tampouco articular diferentes expectativas das entidades do movimento em relação aos meios para atingir os pressupostos constitucionais do SUS”, aponta.
A presidente do Cebes admite que a entidade possa “atualizar estratégias e rumos” sem abandonar os princípios do SUS. “O Cebes está preparando uma tese para contribuir com o debate. Conclamamos todas as entidades, movimentos e demais setores da sociedade a fazer o mesmo: mobilizar, debater e retomar, com a força e o poder popular, os rumos da Reforma Sanitária brasileira”.
Também Luis Eugenio aposta no fortalecimento dos vínculos da Reforma Sanitária com os movimentos sociais em ascensão na sociedade brasileira. “Estamos vivendo, desde 2013, um processo de acirramento das tensões sociais. De crescimento dos movimentos sociais. Nós tendemos a ter uma polarização, uma radicalização da luta política e a ideia do SUS enquanto sistema universal, igualitário e integral não vai morrer. É preciso dizer que os próprios movimentos sindicais que durante muito tempo pleitearam junto a seus empregadores planos privados de saúde já perceberam a armadilha em que caíram. Esses planos não têm garantido a assistência que eles imaginavam que teriam. E eles se engajaram, como o Movimento Saúde + 10 demonstrou, na defesa do SUS universal. Então, o que se coloca é o acirramento das disputas dentro da sociedade no âmbito do Congresso Nacional, no âmbito do poder Executivo mas, sobretudo, dentro dos movimentos sociais”.
Em ano de 15a Conferência Nacional de Saúde (CNS), as entidades se preparam para tensionar o maior espaço de controle social do SUS. “A Conferência será o que conseguirmos fazer dela. Pode ser muito ou nada. O tema escolhido esteriliza a real situação e, inclusive, é perigoso pois fala de saúde pública e não de SUS. O apelo à qualidade da atenção, mesmo que seja uma pauta fundamental, é muito pouco quando o que está em risco é a sobrevivência dos princípios constitucionais do direito à saúde e do SUS, público, universal e integral”, diz Ana Costa.
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