Por Hugo Cavalcanti Melo Filho
A decisão do Supremo Tribunal Federal, de 4 de abril de 2018, que abriu a oportunidade para a prisão do ex-presidente Lula da Silva, apenas três dias depois, foi comemorada por muitos e duramente criticada por outros, especialmente por haver representado uma capitulação da Corte – ou de parte dela -, às exigências militares. Roberto Romano, professor de Ética e Filosofia da Unicamp, declarou ao UOL que as mensagens do comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, e dos chefes militares que o secundaram, um dia antes da sessão do STF, tinham por destinatária a ministra Rosa Weber. Segundo Romano, o recado foi recebido e entendido por Rosa Weber, que teria, assim, acatado a determinação castrense de negar o habeas corpus ao ex-presidente Lula: “Para mim foi muito claro o que aconteceu, o recado do general tinha alvo certo”. “Ela entendeu e acatou (…)” [59].
Sobre as mensagens do comandante do Exército, afirmou:
“Liberdade de expressão sobre conjuntura política e decisão judicial para comandante de qualquer poder da nação não existe, ele não poderia ter feito o que fez e mostra uma orientação autoritária inaceitável em uma democracia”.
“Além de ser explicitamente contra a lei brasileira, é contra as boas práticas democráticas estabelecidas no mundo todo, não existe precedente bom para isso, mas é essa a situação na qual nos encontramos.”
O professor viu no voto da ministra uma capitulação diante da ameaça de intervenção militar:
“O que é uma pena e rebaixou mais ainda a autoridade do STF”.
“Quando uma ministra do Supremo, depois de ter sido pressionada da forma que foi, capitula em suas convicções para acomodar interesses alheios à lei e ao direito, que foi o que ela fez e tentou explicar no seu voto, temos uma Corte que não é suprema de si mesma, e as pessoas percebem isso. Era obrigação do Supremo afirmar sua competência sobre o assunto, independentemente da opinião de qualquer autoridade da República.” “Como que ela diz que é contra a prisão em segunda instância e vota a favor dela em um caso concreto? Imagine a seguinte situação: ela é juíza na Alemanha nazista e acredita que a cassação dos direitos civis dos judeus seja errado. Ela votaria a favor só para ir com a maioria que nem ela fez?”
“Foi ainda mais grave porque nem maioria havia”
“A Corte estava rachada, ela não foi com maioria nenhuma. O voto de minerva foi da presidente Cármen Lúcia” [60].
As críticas à ministra Rosa Weber se avolumaram quando a imprensa passou a divulgar que, quinze dias antes de negar o habeas corpus ao ex-presidente Lula, alegando seguir uma decisão colegiada do Supremo Tribunal Federal sobre execução de pena a partir da 2ª instância, a ministra decidira em sentido diametralmente oposto, em sede de recurso especial eleitoral interposto em face de acórdão do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte. As matérias transcreviam a seguinte passagem de uma decisão monocrática da ministra [61]:
“Às fls. 3.056-62, o Ministério Público Eleitoral requereu o imediato cumprimento do início da pena, com a expedição da respectiva guia de execução, pelo que determinei fosse aguardado o desfecho da controvérsia no Supremo Tribunal Federal, diante do ajuizamento das ações declaratórias de constitucionalidade 43 e 44, sem prejuízo da regular tramitação do recurso no TSE. É o relatório. Decido.”
Como se percebe, trata-se de trecho do relatório da decisão de 20 de março de 2018, no qual a ministra faz referência a despacho anterior. Com efeito, nos autos do RESPE Nº 0012486-27.2009.6.20.0000, em 20 de setembro de 2016, Rosa Weber exarara o seguinte despacho [62]:
O Vice-Procurador-Geral Eleitoral, com base no art. 637 do Código de Processo Penal, requer seja determinado “à respectiva Zona Eleitoral de Natal/RN a adoção das providências necessárias ao imediato início do cumprimento das sanções estabelecidas no Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte, com a expedição da devida guia de execução”.
Consigna que os recorrentes foram condenados à pena restritiva de liberdade, pela prática dos crimes previstos no art. 299 do Código Eleitoral e no art. 313-A do Código Penal.
Assenta-se o pedido na compreensão adotada pela Suprema Corte ao exame do HC 126.292 (“A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência […]” ).
Verifico que tal matéria se encontra novamente em análise no âmbito do STF, precisamente no bojo das ações diretas de constitucionalidade 43 e 44, suspenso o julgamento iniciado em 1º.9.2016.
Ante o exposto, determino a juntada da petição e o aguardo do desfecho da controvérsia junto ao Supremo Tribunal Federal, sem prejuízo da regular tramitação do feito em epígrafe nesta Corte Superior.
A decisão, então, não fora de março de 2018 e sim de setembro de 2016. O mais importante, entretanto, é que a ministra, no referido recurso especial eleitoral, indeferira a pretensão do Ministério Público Eleitoral de imediata prisão de políticos potiguares pela prática dos crimes previstos no art. 299 do Código Eleitoral e no art. 313-A do Código Penal, pedido que fora formulado com fulcro na novel jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, firmada no exame do HC 126.292, no sentido de admitir a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, antes do trânsito em julgado. Expressamente determinara que se aguardasse a decisão da Suprema Corte nas Ações Declaratórias de Constitucionalidades 43 e 44. Então, se as referidas ações ainda não haviam sido julgadas em 4 de abril de 2018, por que razão acompanhou o relator do HC 152752, para denegar a ordem de habeas corpus requerida e autorizar a prisão do ex-presidente Lula? E mais: na decisão de 20 de março de 2018, a ministra Rosa Weber, a despeito de haver negado seguimento ao recurso especial eleitoral, desautorizou a execução provisória das penas, determinando que se aguardasse o encerramento da jurisdição do Tribunal Superior Eleitoral para o início do cumprimento das penas impostas aos réus, o que ainda não aconteceu.
Sobre a participação da ministra Rosa Weber no julgamento do HC 15752, o Professor Lenio Streck, em artigo de 9/4/18, publicado no Conjur [63], para além de registrar a contradição entre o voto proferido no STF e a decisão no caso do recurso especial eleitoral, obtempera que a evocação da colegialidade foi em tudo equivocada, porque caberia à Turma do STF o julgamento do habeas corpus e a afetação do Plenário demonstrou que a Corte ainda não tinha posição fixada. Por isso, o habeas corpus somente poderia ser apreciado após a votação da questão constitucional constante nas duas ADCs.
Segundo Streck, foi um erro “decidir contra a concessão do habeas preventivo, sob a fundamentação de que ‘decido assim, pois é como o Tribunal disse que deve ser, embora bem saiba que o Tribunal está errado’. Tudo em nome do ‘princípio [sic] da colegialidade’. Uma grave afronta à integridade do Direito e ao próprio conceito de princípio”. E prossegue: “colegialidade — no modo como está sendo tratada — não passa de álibi retórico para sustentar consensos ad hoc. Esperamos que a ministra nos mostre o contrário. Porque toda a comunidade jurídica tem certeza de que o HC somente foi negado por causa de uma colegialidade que não era colegialidade” [64].
Se toda a comunidade jurídica sabia disso, naturalmente – e com mais razão – a ministra Rosa também sabia. Então, o que a levou a tal posição no julgamento de 4 de abril? A forte impressão que restou do episódio foi aquela apontada pelo Professor Roberto Romano, registrada acima: capitulação diante da ameaça de intervenção militar que, de fato, existiu e foi confirmada pelo Comandante do Exército.
Em novembro de 2011, o general Villas Bôas, em entrevista ao jornalista Igor Gielow, confirmou o que já se sabia sobre a interferência no julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula pelo Supremo Tribunal Federal [65]:
“Eu reconheço que houve um episódio em que nós estivemos realmente no limite, que foi aquele tuíte da véspera do votação no Supremo da questão do Lula. Ali, nós conscientemente trabalhamos sabendo que estávamos no limite. Mas sentimos que a coisa poderia fugir ao nosso controle se eu não me expressasse. Porque outras pessoas, militares da reserva e civis identificados conosco, estavam se pronunciando de maneira mais enfática. Me lembro, a gente soltou [o post no Twitter] 20h20, no fim do Jornal Nacional, o William Bonner leu a nossa nota”
[Houve críticas] “do pessoal de sempre, mas a relação custo-benefício foi positiva. Alguns me acusaram… de os militares estarem interferindo numa área que não lhes dizia respeito. Mas aí temos a preocupação com a estabilidade, porque o agravamento da situação depois cai no nosso colo. É melhor prevenir do que remediar”.
Os caminhos do ex-presidente Lula e da ministra Rosa Weber voltariam a se cruzar, meses depois. No dia 14 de agosto de 2018, ela tomou posse como presidente do Tribunal Superior Eleitoral, para comandar as eleições presidenciais, em substituição ao ministro Luiz Fux, que presidira a Corte nos seis meses anteriores.
Durante o seu curto mandato Fux já gerara polêmicas. Por exemplo, em 1 de agosto de 2018, afirmou que havia uma “inelegibilidade chapada” do ex-presidente Lula, antecipando, assim, a análise de matéria que seria, em pouco tempo, submetida ao tribunal que presidia. [66]
Antes dos tuítes de Villas Bôas, o general Mourão já afirmara que Lula não poderia ser candidato, mesmo que o STF lhe concedesse o habeas corpus: “terão que distorcer também a lei da Ficha Limpa” [67]. Ao Tribunal Superior Eleitoral caberia o exame dessa questão e lá o ex-presidente Lula não teria melhor sorte.
Poucos dias após a posse, em 31 de agosto, a ministra Rosa Weber presidiu a sessão em que foi apreciado o pedido de registro da chapa encabeçada pelo ex-presidente Lula, que foi rejeitado, por 6 votos a 1. O TSE, na verdade, antecipou a sessão sobre o registro da candidatura, deixando de observar prazos maiores previstos pela lei eleitoral, com o que evitou que o ex-presidente aparecesse como candidato na propaganda de rádio e TV que se iniciaria no dia 1 de setembro.
Na ocasião, o Tribunal ignorou recomendação do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU) no sentido de se garantir a participação de Lula no pleito. Sozinho, ficou vencido o ministro Edson Fachin, que acolhia a recomendação e propunha uma autorização provisória para Lula concorrer, ainda que o considerasse inelegível, porque o descumprimento da decisão do Comitê “pode violar o dever de boa-fé, uma vez que, na prática, o que estamos a fazer é esvaziar a competência do comitê prevista em regras do qual o Brasil é parte”. Rosa Weber acompanhou o relator, no sentido da rejeição do registro, argumentando que a recomendação da ONU não vinculava a Corte. [68]
Meses depois, a presidente deparou-se com denúncias de disseminação orquestrada de notícias falsas nas redes sociais, financiada por empresários apoiadores de Jair Bolsonaro. A fim de dar uma resposta à sociedade, Rosa Weber convocou uma entrevista coletiva, em um domingo, dia 21 de outubro de 2018. Surpreendentemente, a ministra Weber convidou para a coletiva, além da OAB e do Ministério Público, representantes do governo: o ministro Raul Jungmann, da Segurança Pública, e o general Sérgio Etchegoyen, do Gabinete de Segurança Institucional.
A presidente minimizou os efeitos da estratégia da campanha de Bolsonaro e a suspeita de financiamento ilegal da campanha via caixa 2 e focou a defesa da lisura das urnas eletrônicas e da imparcialidade da Justiça. De acordo com Carta Capital, “o general Etchegoyen falou tanto quanto a ministra durante a entrevista. Enquanto a presidente do TSE escapava dos pontos centrais das perguntas sobre a denúncia da disseminação de notícias falsas contra o PT e as dúvidas sobre seus efeitos nos resultados do primeiro turno e nas tendências apontadas pelas pesquisas no segundo, o general fazia questão de atenuar os efeitos da denúncia”. Além disso “criticou os ‘arautos’ do Apocalipse, sempre dispostos a apontar riscos à democracia, celebrou a capacidade de ‘discernimento’ do eleitor, negou interferências externas nas eleições e afirmou que as notícias falsas são a mais inofensiva das intervenções que poderiam acontecer na disputa deste ano”. Etchegoyen “atuou como garoto-propaganda do WhatsApp. A rede social, disse, tem grande utilidade para a sociedade e o poder público, inclusive na segurança pública, e “não é a vilã dessa história”. [69]
Por essas e por outras é que, sobre aquele período, o El país afirmou: “pela primeira vez em 30 anos o Brasil vive uma campanha eleitoral sob a desconfortável sombra dos militares, que se tornaram, novamente, protagonistas na esfera pública”. Como já foi aqui registrado, o comandante Villas Bôas se tornara protagonista do processo eleitoral, ao publicar os tuítes da véspera de o Supremo Tribunal julgar o habeas corpus do ex-presidente Lula. “Poucos meses depois, convidou todos os candidatos à Presidência para uma conversa incomum sobre questões nacionais, em um momento de dificuldades e cortes orçamentários, mesmo nas Forças Armadas” para “discutir o tema Defesa Nacional, atinentes ao Exército Brasileiro, e ressaltar a importância da adoção de políticas que garantam o avanço indispensável dos programas estratégicos da Força”. [70]
Em reconhecimento, na solenidade de transmissão do cargo de Ministro da Defesa, Jair Bolsonaro declarou, no dia 2 de janeiro de 2019: “General Villas Bôas, o que já conversamos ficará entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui” [71]. À solenidade de posse do general Fernando de Azevedo e Silva, seu ex-assessor, compareceu o Presidente do Supremo Tribunal Federal, em mais uma manifestação de elevado apreço às Forças Armadas.
Talvez as primeiras pessoas a ouvirem o então vice-presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, afirmar que não houve golpe militar ou revolução, em 1964, e sim um movimento militar, tenham sido os juízes do trabalho participantes do XIX CONAMAT – Congresso Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, ocorrido entre 2 e 5 de maio de 2018, em Belo Horizonte. A palestra do futuro presidente do STF deveria ser o ponto alto do evento, que reuniu centenas de juízes, os quais, ao final, deixaram o plenário atônitos com a investida revisionista do ministro Toffoli.
Tratando-se de tema já sedimentado nos registros da história nacional, qual seria o propósito do palestrante em querer rever os acontecimentos de 1964, para descaracterizar o golpe de Estado então perpetrado? Quereria o ministro negar a ditadura militar que sufocou o país por vinte anos? A estranheza foi esquecida com o fim do Congresso, a festa de encerramento e a confraternização de praxe, para ressurgir, meses depois, com a posse de Toffoli na presidência do STF.
No mesmo dia em que tomou posse, 13 de setembro de 2018, Toffoli nomeou assessor especial da presidência, por indicação do general Eduardo Villas Bôas, o general da reserva Fernando de Azevedo e Silva, que até duas semanas antes fora chefe do Estado Maior do Exército, segundo posto na hierarquia da Arma. A escolha configurou fato sem precedente na história da presidência do STF.
De acordo com o El País, a decisão de Toffoli teve por objetivo “blindar-se de qualquer tentativa de interferência por parte dos militares no Judiciário e de se cercar de profissionais que, em sua avaliação, são preparados, têm espírito público, conhecem a máquina brasileira, assim como a capilaridade em todo o território nacional”, mas a aproximação com as Forças Armadas teria chocado parte dos meios de comunicação. O texto opinava no sentido de que este fato somado a outros anteriores revelava que a maior influência dos militares ocorre no Judiciário. [72]
O general Fernando Azevedo e Silva deixou a assessoria especial da presidência do STF para assumir o Ministério da Defesa. Na solenidade de posse, na presença de Toffoli, Azevedo e Silva afirmou que o presidente da Suprema Corte, Dias Toffoli, e a Procuradora-geral da República, Raquel Dodge, “sinalizavam a disposição de atuar como catalisadores da estabilidade institucional de que o país tanto precisa”. Na mesma linha, Sérgio Moro, ao tomar posse como Ministro da Justiça e da Segurança Pública, também atribuiu às Forças Armadas e ao STF papel central na estabilidade democrática, nos últimos anos. [73]
No dia 17 de setembro de 2018, em sua primeira coletiva de imprensa como presidente do Supremo Tribunal Federal, o ministro Toffoli disse que não pautaria “casos polêmicos” em 2018 e deu como exemplos as ações declaratórias de constitucionalidade que tratam da execução de pena antes do trânsito em julgado, que interessavam diretamente ao ex-presidente Lula.
Em 1 de outubro de 2018, durante discurso em seminário sobre os 30 anos da Constituição de 1988, em evento na Faculdade de Direito da USP, o presidente do STF voltou a afirmar que preferia se referir ao golpe de 1964 como movimento militar. O discurso repercutiu em toda a imprensa e foi noticiado por O Globo, Isto é, Veja, Folha de São Paulo, Carta Capital, entre outro veículos.
Quando o TSE já havia rejeitado o registro da candidatura de Lula à presidência da República, a Folha de São Paulo e o jornalista Florestan Fernandes apresentaram reclamação ao Supremo Tribunal Federal, com o fito de entrevistarem o ex-presidente Lula, em Curitiba. Em 28 de setembro de 2018, o ministro Ricardo Lewandowski, invocando a “plena liberdade de imprensa como categoria jurídica proibitiva de qualquer tipo de censura prévia”, acolheu a pretensão, indicando que a decisão da 12ª Vara Federal de Curitiba, ao não permitir as entrevistas, violara frontalmente o que já foi decidido pela Corte na ADPF 130/DF. No mesmo dia, o vice-presidente do STF, ministro Luiz Fux, concedeu a liminar requerida pelo Partido Novo, determinando que o ex-presidente Lula se abstivesse “de realizar entrevista ou declaração a qualquer meio de comunicação, seja a imprensa ou outro veículo destinado à transmissão de informação para o público em geral” e, para o caso de já haver sido realizada a entrevista, proibindo a “divulgação do seu conteúdo por qualquer forma, sob pena da configuração de crime de desobediência”. Para Fux, havia “elevado risco de que a divulgação de entrevista com o requerido Luiz Inácio Lula da Silva, que teve seu registro de candidatura indeferido, cause desinformação na véspera do sufrágio, considerando a proximidade do primeiro turno das eleições presidenciais”. [74]
A decisão se baseou no artigo 4º da Lei 8.437/1992, que dispõe:
“Art. 4º Compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”.
Ocorre que o Partido Novo não é pessoa jurídica de direito público, não havia grave lesão à ordem e, de acordo com o dispositivo acima transcrito, o presidente de um tribunal não pode suspender liminar de um de seus pares, pois não há hierarquia entre os membros de uma corte. Isso foi ignorado pelo ministro Fux.
No dia 1º de outubro, Lewandowski reiterou a autorização das entrevistas, sob o argumento de que Fux incorrera em vícios gravíssimos e que a decisão dele era “absolutamente inapta a produzir qualquer efeito no ordenamento legal”. Ato contínuo, o presidente Dias Toffoli suspendeu a decisão de Lewandowski, determinando que se cumprisse, “em toda a sua extensão, a decisão liminar proferida, em 28/9/18, pelo vice-presidente da Corte, ministro Luiz Fux, no exercício da Presidência, nos termos regimentais, até posterior deliberação do Plenário” [75]. O presidente, assim, arvorou-se em revisor das decisões dos seus colegas de bancada e instituiu uma hierarquia interna no STF, a supremacia do presidente.
As decisões de Fux e Toffoli representaram fato inédito. Nunca antes uma liminar concedida por membro do STF fora cassada pelo presidente da Corte. Mais que isso, fixaram um perigoso precedente.
Em 27 de novembro de 2018, o general de divisão da reserva Ajax Porto Pinheiro foi confirmado como novo assessor especial do presidente do STF, indicado pelo comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, para substituir o general Fernando Azevedo e Silva, anunciado por Jair Bolsonaro como futuro ministro da Defesa.
Em 19 de dezembro de 2018, véspera do início do recesso forense, o ministro Marco Aurélio proferiu decisão determinando a suspensão de execução de pena antes do trânsito em julgado da condenação, bem como a libertação daqueles que tenham sido presos em tais condições.
A decisão de Marco Aurélio veio em resposta à postergação para 10 de abril de 2019, pelo presidente do STF, do julgamento das ADCs que tratam da matéria, que ele liberara em 10 de abril de 2018, porque se está “diante de quadro a exigir pronta atuação, em razão da urgência da causa de pedir lançada pelo requerente na petição inicial desta ação e o risco decorrente da persistência do estado de insegurança em torno da constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal”, e acrescentou [76]:
“Sob a óptica do perigo da demora, há de ter-se presente a prisão ou efetivo recolhimento, antes da preclusão maior da sentença condenatória, não apenas dos condenados em segunda instância por corrupção – pelo denominado crime do colarinho branco –, mas de milhares de cidadãos acusados de haver cometido outros delitos. Se essa temática não for urgente, desconheço outra que o seja.“
Na decisão, o ministro abordou a natureza circunstancial e não vinculativa da decisão anterior do STF sobre a matéria e ressaltou a necessidade de prevalência da Constituição e não de maiorias efêmeras:
“O julgamento virtual, a discrepar do que ocorre em Colegiado, no verdadeiro Plenário, o foi por 6 votos a 4, e o seria, presumo, por 6 votos a 5, houvesse votado a ministra Rosa Weber, fato a revelar encontrar-se o Tribunal dividido. A minoria reafirmou a óptica anterior – eu próprio e os ministros Celso de Mello, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli. Tempos estranhos os vivenciados nesta sofrida República! Que cada qual faça a sua parte, com desassombro, com pureza d’alma, segundo ciência e consciência possuídas, presente a busca da segurança jurídica. Esta pressupõe a supremacia não de maioria eventual – conforme a composição do Tribunal –, mas da Constituição Federal, que a todos, indistintamente, submete, inclusive o Supremo, seu guarda maior. Em época de crise, impõe-se observar princípios, impõe-se a resistência democrática, a resistência republicana. “
“A Constituição Federal consagrou a excepcionalidade da custódia no sistema penal brasileiro, sobretudo no tocante à supressão da liberdade anterior ao trânsito em julgado da decisão condenatória. A regra é apurar para, em virtude de título judicial condenatório precluso na via da recorribilidade, prender, em execução da pena, que não admite a forma provisória.”
“A execução da pena fixada mediante sentença condenatória pressupõe a configuração do crime, ou seja, a verificação da tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. É dizer, o implemento da sanção não deve ocorrer enquanto não assentada a prática do delito. Raciocínio em sentido contrário implica negar os avanços do constitucionalismo próprio ao Estado Democrático de Direito.(…)
Não se pode antecipar a culpa para além dos limites expressos na Lei Maior, quando o próprio processo criminal é afastado do controle do Supremo. Em resumo, suprime-se, simultaneamente, a garantia de recorrer, solto, às instâncias superiores e o direito de vê-la tutelada, a qualquer tempo, por este Tribunal.”.
Em pouco tempo, a hashtag “UmCaboEumSoldado” se tornou um dos assuntos mais comentados do mundo no Twitter. A expressão fora dita pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) em evento ocorrido em julho de 2018, que veio a público em outubro. Na ocasião, o deputado falou sobre uma hipotética intervenção do Exército no Supremo Tribunal Federal: “Cara, se quiser fechar o STF, sabe o que você faz? Você não manda nem um jipe. Manda um soldado e um cabo. Não é querer desmerecer o soldado e o cabo, não”. [77]
A imprensa noticiou que, assim como ocorrera no dia 4 de abril, data do julgamento do habeas corpus de Lula, após a decisão de Marco Aurélio, o Alto Comando do Exército se reuniu em videoconferência para discutir as possíveis consequências da decisão que beneficiaria, entre outros presos, o ex-presidente.
Um oficial ligado ao Alto Comando disse ao UOL “que a reunião não tem caráter reativo, mas sim proativo. Ou seja, o Exército discute possíveis cenários que podem ser gerados no país pela decisão – inclusive eventuais manifestações ou distúrbios populares”. E outros dois generais ligados à cúpula do Exército disseram ao mesmo veículo que o momento era de observação e que acreditam que a medida poderia ser derrubada no mesmo dia ou durante o plantão pelos ministros Dias Toffoli e Luiz Fux. [78]
Um general ouvido pelo Broadcast Político disse que certos ministros do STF agem irresponsavelmente e que “precisam parar de agir dessa maneira, de brincar com o sistema jurídico do País”, pois “este tipo de ação acaba criando uma instabilidade no País, inadmissível”. Outro general entrevistado considerou a medida de Marco Aurélio uma “molecagem” porque criou um constrangimento para o presidente do STF e o obrigou a suspender a liminar, para “evitar incendiar” o país, às vésperas da posse de Bolsonaro. [79]
O General Paulo Chagas fez duras críticas ao ministro Marco Aurélio:
“Repito! MINISTRO que solta CRIMINOSO condenado não é ministro É COMPARSA! MARCO AURELIO MELLO demonstra ao Brasil e ao mundo que é conivente com o crime! O respeito ao STF depende da atitude dos demais ministros.”
“QUADRILHA!!! O tempo decorrido entre a difusão da liminar do Sr Marco Aurélio e o pedido de soltura de Lula por seus advogados sugere a existência do agravante de conluio.”
“Dias Toffoli tem a melhor oportunidade da vida dele para justificar a sua nomeação para a mais alta corte da magistratura brasileira, mesmo sem ter tido mérito para integrar a sua primeira instância”. [80]
No mesmo diapasão foi a declaração do General Girão Monteiro, deputado federal eleito pelo PSL:
“Ordens absurdas não serão cumpridas. Essa decisão monocrática ABSURDA do ainda Ministro Marco Aurélio não irá muito longe. A instabilidade jurídica gerada por decisões dessa natureza explicam o que é o Brasil hoje. E também o porque da nossa eleição.” [81]
Poucas horas depois, o presidente Toffolli suspendeu a decisão do ministro Marco Aurélio, alegando a necessidade de prestigiar a decisão colegiada do STF. Mais uma vez, a suspensão teve por fundamento o art. 4.º da Lei 8.437/1992. Desta feita, embora o pedido de suspensão tenha sido apresentado pelo Ministério Público, restavam presentes os demais fatores de inaplicabilidade do dispositivo, com o agravante de que o STF já pacificara o entendimento de não ser cabível o pedido de suspensão de liminar em processos de controle abstrato de constitucionalidade.
Nos primeiro fim de semana de dezembro de 2018, o ministro Toffoli participou de evento realizado na casa de praia do Prof. Tércio Sampaio Ferraz Júnior, no litoral de São Paulo. Ali, proferiu palestra, comentada pela Folha de São Paulo, que pinçou os seguintes trechos:
“A judicialização da política ė um dado da realidade. O Judiciário se transformou, seu papel mudou. Suas decisões se espraiaram para além dos casos concretos e passaram a se irradiar para toda a sociedade”.
“A realidade nos obrigou a isso [dar perspectivas para a sociedade], e acho que não faltamos à sociedade. O produto final foi positivo. O Supremo foi o fio condutor da estabilidade.”
“É hora de o Judiciário se recolher [passada a eleição]. É preciso que a política volte a liderar o desenvolvimento do país e as perspectivas de ação”. [82]
Na terça-feira subsequente, dia 4 de dezembro de 2018, em sessão da Segunda Turma do STF, na qual se julgava novo pedido de liberdade para o ex-presidente Lula, o ministro Edson Fachin fez afirmação reveladora: “Não deixo de anotar que houve procedimentos heterodoxos, mesmo que para finalidade legítima”. [83]
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“Por que aqueles que detêm as armas iriam obedecer àqueles que não as têm?”. Com esta pergunta, Adam Przeworski inicia o prefácio do livro Rumor de Sabres, de Jorge Zaverucha. É uma excelente pergunta. Zaverucha afirma que numa situação de tutela, civis e militares desenvolvem um tipo de relação na qual a democracia sai prejudicada. “A natureza da tutela consiste numa aliança tácita: os militares não tentam dar um golpe de Estado e defendem o status quo se os civis garantirem a intocabilidade da autonomia militar dentro do aparelho de Estado”. [84]
Ocorre que “os civis que optam pela tutela em vez do controle civil, no entanto, também correm riscos. Ao deixar que os militares se comportem de maneira autônoma, os civis abrem a possibilidade de que eles possam vir a agir contra os interesses civis caso as condições políticas se alterem. Sem salvaguardas institucionais democráticas, os militares podem, mais facilmente, mudar seus compromissos anteriores” [85] e, “caso os civis procurem consolidar a democracia, é de se esperar que os militares reajam”. Em uma palavra, os civis ficam reféns dos militares. Será diferente no Supremo Tribunal Federal?
Em outubro de 2018, a Revista Época [86] afirmou que “o presidente do STF, Dias Toffoli, passou a adular os militares e chamou de movimento o golpe de 1964. Antes visto como petista pelos generais, passou a ser elogiado na caserna”. Em longa matéria, a revista procura explicar os motivos de Toffoli. Afirma que o presidente do STF e o ministro Luís Roberto Barroso, em conversas sociais, concordaram em que havia risco de medias polêmicas em eventual governo de Bolsonaro, nomeadamente nos campos da economia e dos costumes. Daí, a necessidade de o STF ficar próximo dos militares, “para conter eventuais medidas inconstitucionais ou que representem afronta a princípios da democracia”. Acrescenta que Toffoli defende a tese de que “ao longo da história da República brasileira, o Supremo e as Forças Armadas se revezaram na função de Poder Moderador antes exercido pelo imperador”, o que inclui evitar julgar temas que contrariem as propostas do governo, que possam por o STF em conflito com o Palácio do Planalto. A revista considera que Toffoli “tem exagerado nas mesuras aos militares” no propósito de atenuar conflitos potenciais e se aproximar das Forças Armadas e que “as tentativas de Toffoli de cortejar os militares são cada vez mais óbvias”, mas reconhece que “a adulação dos militares tem servido para Toffoli melhorar sua imagem perante o Alto-Comando do Exército: “Além da decisão de colocar um militar em seu gabinete, os generais gostaram do adiamento para 2019 de um novo julgamento sobre as prisões em segunda instância, que poderá tirar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva da cadeia, e da ratificação do veto à entrevista do petista antes do primeiro turno das eleições”.
Época examina o convite que Toffoli fez ao general Fernando Azevedo – que tem vínculos estreitos com Bolsonaro, Mourão, Heleno, Villas Bôas, Osvaldo Ferreira, Silva e Luna e a cúpula do Exército – para ser assessor para assuntos militares da presidência do STF, por indicação do comandante do Exército, “num momento em que os militares estão abandonando o recolhimento dos últimos anos e voltaram a ganhar protagonismo” e pensando na “simbologia do gesto de convidar um general para sua equipe e assim reforçar a interlocução com as Forças Armadas”. Conclui registrando que os integrantes das Forças Armadas “têm, agora, um general para chamar de seu dentro do gabinete do presidente do STF e esperam uma atuação do colega de farda junto ao ministro que lidera a Suprema Corte”.
Todas essas informações são gravíssimas, se considerado o papel constitucional do Supremo Tribunal Federal e o do presidente da Corte, chefe do Poder Judiciário. Mas estão longe de serem as mais escandalosas. Há publicações que falam em co-presidência Toffoli-Azevedo e, depois, Toffoli-Ajax. Outras afirmam que Toffoli foi forçado pelos militares a suspender a decisão do ministro Marco Aurélio, de 19 de dezembro. Mais recentemente, a imprensa noticiou que o general Mourão, no exercício da Presidência da República, teria autorizado fosse dada permissão ao ex-presidente Lula para ir ao velório do irmão, mas que, mesmo assim, alguns militares ficaram perplexos com a decisão de Tofolli, proferida minutos antes do sepultamento, que autorizou a ida de Lula a uma instalação militar em São Bernardo do Campo, para onde os parentes poderiam levar o corpo, sem a presença de jornalistas e de público. Por que levar o defunto a uma instalação militar, se o direito é o de assistir ao sepultamento? A repercussão da decisão do presidente do STF, após a recusa de autorização pela Polícia Federal, pela juíza Lebbos e pelo desembargador Paulsen, foi a pior possível, especialmente no exterior. Tofolli é qualificado como servil ao militares em algumas publicações, que chegam a afirmar que o general Ajax Porto Pinheiro foi colocado no posto para controlar os passos do ministro na Suprema Corte, com o objetivo de que suas decisões atendam a determinados interesses.
Mas as gentilezas de Toffoli não têm assegurado reciprocidade. Como já registrado neste texto, militares destinam ao STF e aos seus membros os piores comentários: “ministro criminoso”, “comparsa de bandido”, “conivente com o crime”, “quadrilha”, “salafrária”, além de ameaças escancaradas de descumprimento das decisões da Corte e de intervenção. Em quase todos os casos, o presidente do STF silenciou.
Em outra de suas edições, Época informa que, quando o coronel da reserva Carlos Alves chamou de “salafrária” a ministra Rosa Weber, “Toffoli não se pronunciou sobre o caso e considerou exagerada a reação dos colegas, que usaram as sessões da Corte para repreender publicamente o comportamento do coronel”. E só reagiu aos ataques do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-RJ), após a divulgação do vídeo em que o parlamentar cogita fechar o STF, depois de aconselhado pelo general Fernando Azevedo e Silva. [87]
Em 11 de outubro de 2018, o general Girão Monteiro, eleito deputado federal pelo PSL, defendeu em sua conta no Twitter o impeachment e a prisão de “vários ministros” do STF. O Poder 360 publicou, em 5 de janeiro de 2019, que o sonho de alguns membros no governo Bolsonaro é aprovar o processo de impeachment contra ministros do STF. “Na mira bolsonarista, estão, pela ordem, os ministros Edson Fachin, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Luiz Fux. Muitos aliados mais radicais do presidente eleito querem emparedar o STF logo no início do governo em 2019”. [88]
A história nos mostra que os juízes podem terminar reféns dos regimes autoritários. Interessante reportagem da Gazeta do Povo, sobre a nossa última experiência autoritária, registra:
“Ao fim do governo do marechal Artur da Costa e Silva, o segundo presidente da ditadura militar, em agosto de 1969, só havia sobrado um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) da turma que ocupava o posto no momento do golpe, em 1º abril de 1964. Todos os demais haviam sido afastados, de uma forma ou outra. Em novembro de 1965, o Ato Institucional Número 2 havia aumentado o número de ministros, de 11 para 16 – e obviamente os cinco novos postos foram ocupados por magistrados alinhados ao regime. Ainda assim, o STF tentava manter alguma independência. Mas as mudanças se aceleraram a partir da sexta-feira 13 de dezembro de 1968, com a edição do AI-5.” [89]
De acordo com o Relatório Mundial de Direitos Humanos 2019, divulgado em 17 de janeiro, o Brasil passou a figurar na lista do Observatório de Direitos Humanos (HRW) de países governados por líderes autocráticos com a posse de Jair Bolsonaro na Presidência da República. [90]
***
A presença de um oficial da mais alta patente na assessoria do presidente do Supremo Tribunal Federal, ainda que não tenha sido imposta pelas Forças Armadas, certamente foi por elas estimulada, porque, desse modo, podem controlar mais facilmente determinadas ações. Quando menos, constitui símbolo poderoso de interferência militar na mais alta Corte do país.
O que leva à adoção desse arranjo institucional que, a rigor, opera em favor dos interesses das Forças Armadas, como instituição? Em artigo publicado na Revista Dados, no ano de 2004, procuramos explicar [91]:
“O caráter híbrido da democracia brasileira (…) precisa ser explicado. Por que não avançamos rumo a uma democracia plena nem retrocedemos ao autoritarismo? Como explicar essa instabilidade que se vem mantendo ao longo de duas décadas?
Sugerimos introduzir a variável “risco político” (…). Quando os conservadores acham que a esquerda ainda é, mesmo que parcialmente, revolucionária e que sua adesão à democracia é instrumental, procuram manter um relacionamento privilegiado com os militares (Alexander, 2002). Vínculo estreito que possa se reverter em apoio, quando necessário.
(…)
[Determinados fatos] induzem desconfiança nos segmentos conservadores, prontos a se insurgirem contra qualquer risco de desmanche da economia de mercado, base da democracia liberal. Nesse contexto, a cultura do medo trabalha contra a democratização, pois induz desconfiança entre os atores políticos, em vez de cooperação. Quem tem medo tende a procurar segurança, como a propiciada pelo poder armado.
[O medo] impele os atores políticos de direita a concordarem com a manutenção de espaços políticos significativos sob o controle militar, na expectativa de que tais arenas concorrerão, naturalmente, para a preservação dos seus interesses.
(…)
Em síntese, a direita cuida de manter um bom relacionamento com as instituições coercitivas para que possam reprimir possíveis insubordinações populares e, no limite, golpear a frágil democracia existente. Os militares entendem a natureza do jogo e cristalizam a estratégia de manter o seu protagonismo em arenas políticas não militares.”
Pouco antes da publicação do texto transcrito parcialmente acima, em julho de 2003, um dos proprietários da Folha de S. Paulo, em face da onda de ocupações de propriedades rurais e urbanas pelo MST e pelo MTST, alertou para a possibilidade de o presidente Lula ser derrubado [92]. O líder do PSDB no Senado, Arthur Virgílio, comparou Lula ao ex-presidente Goulart [93]. A mesma Folha de S. Paulo, na edição de 29 de julho de 2003, publicou afirmação do senador do PFL Romeu Tuma de que, se a situação ficasse incontrolável, pediria a intervenção militar. Em junho de 2004, o senador Antônio Carlos Magalhães defendia com vigor, na tribuna do Senado, o aumento dos vencimentos dos militares. Alertou ele o governo Lula de que “essa defasagem salarial deve ser corrigida até para que, na hipótese de insubordinações populares, as Forças Armadas estejam prontas para defender as instituições” [94]. O senador voltaria ao tema dias depois, para afirmar que os militares são “o sustentáculo da democracia” [95].
Passados quinze anos, o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, no discurso que fez em homenagem ao general Eduardo Villas Bôas, no dia em que deixou o comando do Exército, afirmou: “Seu grande feito não pode ser medido com olhos rasos. A maior entrega desse comandante foi o que ele conseguiu evitar. Foram tempos que colocaram à prova a postura do Exército como organismo de estado, isento da política e obediente ao regramento democrático” [96]. Na solenidade de posse como Ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sérgio Moro afirmou que o Exército e o STF foram fiadores da estabilidade nos últimos anos. Declarações no mesmo sentido foram feitas por Jair Bolsonaro e pelo presidente do STF. Este considera que as Forças Armadas e o Supremo se revezam, historicamente, na função de Poder Moderador. Imagina o ministro Toffoli que agora é a vez do STF? Parece ser o inverso.
Com efeito, a presença militar no Supremo Tribunal Federal é percebida por todos, aceita e comemorada por muitos e vem sendo naturalizada, para o estarrecimento de alguns. Essa interferência faz com que o STF extrapole os limites de ação do órgão de cúpula do Judiciário para se erigir como instrumento de controle de importantes aspectos da vida social, como braço jurídico dos interesses institucionais das Forças Armadas. Isto contribui para fortalecer, no Brasil, a existência de um governo pela lei (rule by law) em vez de um governo da lei (rule of law) [97], porque um dos indicadores de uma relação civil-militar democrática é a existência de clara linha institucional de separação entre as jurisdições civil e militar [98].
No artigo intitulado “O banquete dos vitoriosos, militares e juízes”, Luís Nassif afirma que “militares e juízes foram essenciais para a eleição de Bolsonaro, mantendo Lula fora do jogo: o desembargador João Pedro Gebran Neto, com a condenação em segunda instância; o general Villas Boas calando qualquer manifestação do STF com um mero Twitter (…)” [99].
A interferência dos militares, afrontosa à Constituição e aviltante para uma passiva Corte Suprema, evidencia o fato de as instituições civis – especialmente o Supremo Tribunal Federal- não terem se mobilizado para cumprir a Carta Magna e indica que as elites civis – especialmente os ministros do STF – não estiveram muito interessadas em sustentar um regime efetivamente democrático, ainda que ao custo do sacrifício da própria independência judicial.
A independência judicial pressupõe, além da necessária independência interna, a independência externa do magistrado. Para ser externamente independente, o magistrado não pode estar, no ato de julgar, sequer minimamente submetido ao Poder Político ou a pressões militares. Será tanto mais independente quanto menor for sua sujeição a interferências externas. Trata-se da independência política do juiz, a liberdade de exercer a jurisdição somente se subordinando às leis constitucionalmente válidas e à sua própria consciência. [100]
Antes de ser um privilégio dos juízes, a independência judicial constitui-se em valor de extrema importância para a democracia. Em qualquer lugar em que se assegure a total independência do Poder Judiciário é maior a probabilidade de um regular desenvolvimento do jogo democrático, com a efetiva proteção dos direitos fundamentais e o regular controle de todos os poderes públicos. Quanto menor a subordinação do Poder Judiciário ao Poder Político e, mais ainda, aos militares, maior é o equilíbrio institucional e democrático. [101]
É imprescindível que a imparcialidade permeie a atuação jurisdicional para que, por ela, se encontre a justa solução para os conflitos de interesses que lhes são submetidos, sobretudo os que nascem do antagonismo entre o Estado e o cidadão. E a independência judicial é pressuposto da imparcialidade. A irrestrita independência e a imparcialidade estão na base da divisão dos poderes. Se a função do Judiciário é controlar os demais poderes e assegurar o exercício dos direitos fundamentais dos cidadãos, enquanto o Poder Político ou os militares mantiverem qualquer tipo de ingerência nas decisões judiciais não se pode qualificar o Estado como democrático de Direito [102], porque o jogo democrático depende da existência de regras pré-estabelecidas e de um poder efetivamente autônomo para exigir o seu cumprimento.
Com efeito, onde houver relativização da independência judicial – da liberdade e da isenção no exercício da jurisdição-, a democracia será precária, ou, no limite, provavelmente deixará de existir. Daí a gravidade de mitigação da liberdade judicial dos membros da mais alta corte do país, o absurdo que representa a aparente tutela militar do Supremo Tribunal Federal.
É evidente que o STF não pode se submeter ao poder de Estado que está constitucionalmente chamado a controlar, a fim de garantir o funcionamento da República. Muito menos aos militares, os quais, constitucionalmente, estão sob o comando do chefe deste mesmo poder, especialmente na quadra histórica em que vivem os brasileiros.
O Brasil situa-se em uma zona política cinzenta onde não se avança, definitivamente, no sentido de uma democracia sólida, nem se faz um retorno à ditadura. A presença militar no STF, como vertente de ingerência castrense em área extramilitar — no caso, o Judiciário —, produz decisões eivadas de parcialidade, em um desvirtuamento de sua função jurisdicional, terminando por contribuir para postergar a consolidação da democracia no Brasil.
Há, portanto, extremo perigo na subordinação que se presume quando o presidente do Supremo Tribunal Federal nomeia como assessor especial um general da reserva que acabara de deixar a chefia do Estado Maior do Exército, indicado pelo comandante do Exército, depois nomeado ministro da Defesa e substituído por outro general, e passa a receber mensagens públicas de membros das Forças Armadas, em tom de ameaça, a respeito das expectativas quanto às decisões da Corte, que terminam, coincidentemente, atendidas.
Perigo que, ao que parece, vai perdurar. No momento em que concluo este texto, a agência Reuters noticia: “STF volta do recesso pressionado pela tutela militar-bolsonarista”. [103]
[60] ibidem
[61] Por todas, https://jornalggn.com.br/blog/saiba-mais/rosa-weber-negou-prisao-no-rn-em-caso-analogo-ao-de-lula-15-dias-antes
[62] http://www.tse.jus.br/servicos-judiciais/processos/acompanhamento-processual-push
[63] https://www.conjur.com.br/2018-abr-09/streck-stf-erros-destino-meu-prognostico-qual-discordo
[64] ibidem
[67] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/02/politica/1522697550_276313.html
[70] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/05/politica/1538696487_036568.html?id_externo_rsoc=whatsapp
[71]
[72] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/07/politica/1544213941_552202.html?id_externo_rsoc=FB_BR_CM
[73] ibidem
[75] https://www.conjur.com.br/2018-out-01/toffoli-suspende-liminar-autorizava-entrevista-lula
[76] https://www.migalhas.com.br/arquivos/2018/12/art20181219-10.pdf
[77] https://politica.estadao.com.br/ao-vivo/decisao-de-marco-aurelio-pode-soltar-lula
[79] https://politica.estadao.com.br/ao-vivo/decisao-de-marco-aurelio-pode-soltar-lula
[81] https://www.conversaafiada.com.br/brasil/toffoli-o-stf-e-o-condutor-da-estabilidade [82] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/01/e-hora-de-o-judiciario-se-recolher-afirma-dias-toffoli-em-casa-de-praia.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa
[84] ZAVERUCHA, Jorge (1994). Rumor de Sabres. São Paulo: Ed. Ática. p. 11.
[85] ZAVERUCHA, Jorge (1994). Rumor de Sabres. São Paulo: Ed. Ática. p. 12.
[86] https://epoca.globo.com/o-general-assessor-de-toffoli-que-faz-pontes-entre-stf-a-caserna-23168326
[90] https://veja.abril.com.br/mundo/brasil-entra-na-lista-do-hrw-dos-paises-com-governo-autocratico/
[91] ZAVERUCHA, Jorge et MELO FILHO, Hugo. Superior Tribunal Militar: entre o autoritarismo e a democracia. InRevista Dados, vol.47, nº.4, 2004, pp.763-797.
[92] (Frias Filho, 2003)
[93] (Dualibi, 2003)
[94] “ACM Alerta para os Baixos Salários das Forças Armadas”, Jornal do Senado, 17/6/2004, ênfases nossas.
[95]. “ACM Defende Reajuste dos Vencimentos dos Militares”, Jornal do Senado, 30/6/2004.
[96] https://www.oantagonista.com/brasil/maior-entrega-de-villas-boas/
[97] HOLMES, Stephen. (2003), “Lineages of Rule of Law”, in J.M. Maravall e A. Przeworski (eds.), Democracy and the Rule of Law. Cambridge, Cambridge University Press.
[98] RICE, Condoleezza. (1992), “The Military under Democracy”. Journal of Democracy, vol. 3, nº 2, abril, pp. 27-41.
[100] Nesse sentido, sobretudo, ZAFFARONI (1995), Eugenio Raúl. Poder Judiciário. Trad. Juarez Tavares. São Paulo: Revista dos Tribunais, e GOMES, Luiz Flavio (1993). A questão do controle externo do Poder Judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais.
[101] Na mesma linha, GOMES, Luiz Flavio (1997). A dimensão da magistratura no Estado Constitucional e Democrático de Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, p.39.
[102] Na mesma linha, idem, p. GOMES, Luiz Flavio (1997). A dimensão da magistratura no Estado Constitucional e Democrático de Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, p.38.
[103] https://www.brasil247.com/pt/247/brasilia/382390
Fonte: Democracia e Justiça
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Luiz Neto disse:
Para uma corte plenamente totalmente pela esquerda não poderia ter uma contrapartida mais acertada.