A crise do Pacto Federativo Brasileiro é provocada pela ação de três mecanismos – Dívidas Públicas Estaduais, Lei Kandir e Lei de Responsabilidade Fiscal – que atuam de maneira simultânea ao desestabilizar a relação entre União, estados e municípios, criando uma situação de obstrução das prerrogativas constitucionais dos dois últimos em favor dos compromissos e a discricionariedade da primeira.
As Dívidas Públicas Estaduais, a Lei Kandir e a Lei de Responsabilidade Fiscal funcionam como as três cabeças da criatura mitológica que guardaria a porta do inferno, um cão chamado Cérbero. Este seria dócil com as almas que entram no vale dos mortos, mas cruel com quem tentasse sair. A metáfora parece apropriada para visualizar os impactos destes mecanismos no aprofundamento da crise federativa em curso. A nação entrou facilmente no inferno, mas o monstro tricéfalo não deixará que ela saía da mesma forma.
No primeiro artigo da série sobre a crise do pacto federativo brasileiro, tratei da questão da dívida pública estadual como mecanismo de interdição do sistema federativo brasileiro. Agora apresento o segundo mecanismo, a segunda cabeça da criatura infernal, a Lei Complementar 87/1996, mais conhecida como Lei Kandir.
A valorização da moeda promovida pelo Plano Real teve como efeito colateral o déficit na balança comercial pós-1994. Com o real valorizado, o valor das importações ultrapassou o das exportações, levando o país a uma situação deficitária frente ao exterior. A solução escolhida pelo governo foi aprofundar a condição primário-exportadora do país, ou seja, apostou na ultra-especialização na atividade primária e abandonou qualquer possibilidade de retomada da industrialização.
Um dos mecanismos para equilibrar a balança comercial e com isso produzir superávit foi a isenção do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), imposto de competência estadual, para produtos primários e semi-elaborados, que ganhou formato legal com a aprovação da Lei Kandir.
A tática foi diminuir o preço das commodities, via isenção do imposto estadual, e com isso ampliar a chamada “competitividade” dos produtos no mercado internacional. Porém, com esta medida, a economia se especializou ainda mais nas atividades de baixa tecnologia comprometendo o desenvolvimento econômico, o emprego, o meio ambiente, e a arrecadação dos estados e municípios. Nada mais importa, senão a exportação e o superávit de baixo perfil da balança comercial.
Para conter a revolta dos estados e municípios, os principais impactados pela Lei Kandir, o governo assegurou a compensação por perdas dela decorrentes, por meio da Lei Complementar 115/2002, que fixa a transferência dos valores paras as unidades federadas nos exercícios financeiros de 2003 a 2006.
As compensações voltaram a ser tratadas na Emenda Constitucional n° 42/2003, que adiciona o Art. 91 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) a dá redação que garante o repasse de 75% para os estados e 25% para os municípios relativo ao montante de suas perdas com a isenção do ICMS sobre produtos in natura e semi-elaborados e indica a regulamentação do mesmo por lei complementar.
Porém nem os valores devidos foram repassados integralmente até 2006, existindo divergência sobre os mesmos, nem a Lei Complementar indicada pela EMC n°42 foi aprovada. Por isso continuou ocorrendo o repasse para alguns estados, por pressão dos governadores em meio a medidas judiciais. O sistema de repasse é precário, pois é negociado anualmente no escopo da discussão do Orçamento da União, utilizando-se ainda dos dispositivos da LC 115/2002.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 25, foi julgada procedente pelo STF e indicava o prazo de 12 meses para a aprovação da Lei Complementar sobre o tema, ou, caso não ocorresse, indicava que o Tribunal de Contas da União (TCU) como responsável provisório pelos cálculos dos repasses devidos às unidades federadas. O tempo se esgotou ano passado, o TCU e a Câmara batem as cabeças, e o impasse permanece.
Desde de 1996, a União acumulou uma dívida com os estados e municípios em um montante de R$ 548,7 bilhões.
A Lei Kandir foi uma invasão flagrante sobre a competência tributária dos estados dentro de um sistema federativo. A atividade primário-exportadora é uma fonte estratégica de recursos para os cofres estaduais e municipais. Estes dependem dos recursos das atividades primárias para a formação do fundo público e financiamento de serviços fundamentais como educação, segurança, saúde, bem como em programas de apoio à diversificação produtiva.
Além de não repassar o valor devido aos estados e municípios a título de compensação, a União condena os demais entes a reprodução eterna da dependência das atividades primário-exportadoras. Sem recursos para investimentos públicos, não há condições de fomento a atividades industriais no nível local e a ruptura com o círculo vicioso da produção de matérias-primas para a indústria dos países centrais.
A manutenção da compensação, por sua vez, mesmo que resolva emergencialmente os problemas dos entes federados, penaliza a população em geral, porque obriga a União a retirar de outras fontes de receita recursos e transferi-los para estados e municípios. Este tipo de operação beneficia apenas as empresas dedicadas à atividade primário-exportadora, pois não cria uma fonte de tributação que permita utilizar a exportação como instrumento para o desenvolvimento nacional.
Os que advogam pela manutenção da isenção indicam a compensação como instrumento de mediação apoiados no art. 153, II da CF que o Imposto de Exportação é de competência exclusiva da União e teria uma função regulatória que disciplinaria o fluxo de exportação. Porém, se este tipo de disciplina regulatória existente agride a sustentação dos demais entes federativos, ele precisa ser debatido e pactuado de maneira mais ampla, caso contrário a crise da federação se torna insolúvel.
Neste sentido, a solução sustentável é a revogação completa da Lei Kandir, uma discussão estratégica sobre o papel do setor primário-exportador no desenvolvimento nacional e assim a criação de um dispositivo legal de caráter federativo que indique as parcelas do imposto das exportações primárias que corresponde a cada ente, permitindo que este use do aumento ou da diminuição de sua parte de maneira ajustada aos seus interesses arrecadatórios, e com isso ampliar sua capacidade de garantir o financiamento dos serviços públicos e de atividades de diversificação produtiva, saindo do círculo vicioso mencionado anteriormente.
A base do governo Bolsonaro será colocada a prova na discussão sobre a Lei Kandir. Os governadores pressionam o presidente da Câmara para assumir o compromisso com a elaboração da Lei Complementar e normatizar os repasses de caráter compensatório. No senado, o Projeto de Lei Complementar 511/2018 (PLC) tramita no mesmo sentido e encontra-se pronto para entrar na pauta do Plenário. Resta saber qual será a postura dos congressistas da base do governo neste tema.
Estados como Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul encontram-se em dificuldades tão dramáticas, que não possuem recursos para honrar com a folha de pagamento do funcionalismo público. Os governadores destes três estados apoiaram aberta ou tacitamente a candidatura de Bolsonaro no 2° turno, e possuem a difícil tarefa de governar sem recursos. Continuarão dóceis ao executivo federal ao mesmo tempo, que com isso, colocam em risco a própria viabilidade do seu governo?
O bolsonarismo irá às urnas nas eleições municipais de 2020. Qual será o discurso? Como lidar com a situação de indigência dos cofres dos municípios?
São questionamentos que irão aparecer, tendo, inclusive, como difusores trabalhadores dos serviços públicos que contribuíram com a vitória de Bolsonaro, como o da segurança pública que hoje tem seus salários parcelados em alguns estados. Estados e municípios serão palco de greves e mobilizações cuja as reivindicações não terão resposta pelos seus governos dentro do estrangulamento orçamentário que vários destes entes se encontram.
Cabe a nós, setores empenhados na resistência popular e democrática do país enfrentarmos o debate sobre a crise do pacto federativo, não como um exercício meramente parlamentar, mas como um pedagogia de massas conectada diretamente às necessidades concretas do povo. Demonstrar que o projeto instalado no governo federal aprofunda as contradições históricas de nosso modelo federativo e impede por diversos mecanismos a efetivação dos direitos fundamentais básicos.
A discussão sobre um novo pacto federativo e a luta pelos direitos são caminho para unir o que foi dividido nas últimas eleições. É a luta da nação, do povo, das suas organizações representativas e das lideranças estaduais e municipais, que, em unidade, devem enfrentar o monstro de três cabeças, o cão Cérbero, que impede que a federação seja reconduzida ao mundo dos vivos.
Pedro Otoni é Mestre em Ciência Política, especialista em Economia Política, bacharel em Direito e colaborador da Fundação Lauro Campos
Fonte: Fundação Lauro Capor e Marielle Franco
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