Quem já sofreu com a mordaça nas escolas?
A visibilidade adquirida pelo movimento Escola sem Partido (EsP) está diretamente vinculada ao fortalecimento de uma ideologia conservadora na sociedade brasileira. Embora exista desde 2004, foi somente a partir de 2015 que o EsP começou a protagonizar discussões em nível nacional sobre o que denomina “doutrinação ideológica” nas instituições de ensino. Os idealizadores do movimento defendem que professores e livros didáticos adotariam posições orientadas à esquerda, sendo necessário modificar a Lei n. 9.493/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a LDB) para extirpar do currículo escolar temas que seriam responsabilidade exclusiva da família: política e desigualdade social, mas também questões de gênero, sexualidade, raça e direitos humanos, que na concepção do EsP também constituiriam agendas das esquerdas. A verdadeira intenção do movimento é impedir que diferentes interpretações e compreensões do mundo sejam debatidas nas instituições de ensino, interditando o dissenso que caracteriza sociedades e regimes democráticos.
Expor a hipocrisia do EsP – pois não há nada mais “ideológico” do que demonizar a ideologia – tem sido uma importante forma de resistência dos professores da educação básica e superior, dos sindicatos de trabalhadores da educação e das entidades científicas, que têm se posicionado na defesa de dois princípios constitucionais que fundamentam a educação no Brasil: a liberdade de ensinar e aprender (Art. 206, II) e o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas nas instituições de ensino (Art. 206, III). Embora a interrupção da tramitação no Senado do Projeto de Lei n. 193/2016, que propunha incluir o EsP no texto da LDB, seja uma vitória dos cidadãos e instituições contrários ao movimento, a luta continua nas escolas, nas instituições de ensino superior, no sistema de justiça e nas casas legislativas de estados e municípios onde ainda tramitam projetos de lei fundados na ideologia do EsP e flagrantemente inconstitucionais.
Visando organizar um conjunto de orientações político-pedagógicas e jurídicas para que escolas e professores possam exercer suas funções com base nos princípios expressos na Constituição Federal e na LDB, a Ação Educativa, a Rede Escola Pública e Universidade, o coletivo de comunicação QuatroV, o Instituto Pólis, o Coletivo de Advogad@s de Direitos Humanos (CADHu) lançaram uma campanha de crowdfunding para a produção de um Manual de defesa para professores contra a censura, com previsão de lançamento para junho de 2018.
O início da divulgação da campanha nas redes sociais provocou algum frissonentre os integrantes do EsP, a ponto de seu coordenador, o procurador paulista Miguel Nagib, ter gastado algumas horas na timeline da revista Nova Escola vociferando contra a iniciativa do Manual. As postagens do advogado são uma amostra do que apresenta a página do EsP: uma enxurrada sensacionalista de áudios e vídeos de professores exibindo posições políticas de esquerda, supostamente gravados em escolas, e imagens de livros escolares com conteúdos relacionados à sexualidade.
No mundo simplório do EsP, um punhado de gravações é suficiente para concluir que os 2,2 milhões de professores que atuam na educação básica no país são doutrinadores de crianças e jovens. No mundo real, o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. É o país que mais mata travestis e transexuais. Na cidade de São Paulo, a cada 12 horas é registrado um ataque de ódio contra negros, gays, imigrantes ou por motivações religiosas. Dado que a relação entre alunos e professores no Brasil é mais antiga do que a própria instituição da educação formal no país, tudo indica que a “doutrinação” denunciada pelo EsP é uma projeção de suas próprias veleidades doutrinadoras. Onde existe liberdade de cátedra não é fácil doutrinar. Em face dessa obviedade, afirmar que todo mundo é doutrinador é, no fundo, uma forma de ser contrário à liberdade de ensinar e de aprender. O EsP deseja uma escola com um único partido: o seu.
Impelidas por esse pensamento autoritário, são várias as diligências para cercear a liberdade de ensinar e educar nas escolas e universidades. As tentativas de assédio mais rumorosas são certamente as que envolvem cidadãos que ocupam cargos ou representação pública, como o caso recente do Ministro da Educação, Mendonça Filho (DEM), que questionou a oferta da disciplina “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil” no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, num claro desrespeito à autonomia universitária, outro princípio constitucional (Art. 207). Em 2016, foi bastante comentado o caso do vereador paulistano Ricardo Nunes (MDB), que encaminhou notificação à Escola Municipal Desembargador Amorim Lima exigindo a suspensão das atividades da “Semana de Gênero” organizada pela comunidade escolar. Nesses dois casos de repercussão, diversas ações de resistência foram articuladas. A Emef Amorim Lima não abriu mão de suas atividades, e a conduta do ministro da Educação está sendo investigada pela Comissão de Ética Pública da Presidência da República.
No entanto, não se tem a clara dimensão das ações de censura, intimidação e perseguição individual a professores no país. Quantos professores no Brasil já receberam ameaças na forma de notificações extrajudiciais, sem saber que elas não têm qualquer efeito judicial? Quantos replanejam as suas aulas de Ciências para não ter “problemas” com as crenças religiosas das famílias de seus alunos? Quantos já deixaram de chamar as coisas pelos seus nomes: ditadura, tortura, racismo, preconceito de classe, LGBTfobia, machismo, lutas sociais? O Manual foi pensado para combater essa perseguição, que explora a fragilidade individual dos professores para infundir um clima de medo e autocensura nas escolas – para calar a nossa boca. Os efeitos mais perversos do delírio chamado Escola sem Partido infelizmente não aparecem nos jornais.
Não existe neutralidade na atividade educativa. Quando um professor discute determinado conteúdo com os estudantes, estão implícitas na discussão as suas concepções de mundo. Todavia, é um equívoco pensar que a escola, nos moldes republicanos, pode definir sozinha, sob a forma de doutrinação, os posicionamentos ideológicos dos estudantes. Primeiro porque nela convivem diferentes formas de pensar e compreender o mundo; segundo porque muitos outros espaços contribuem para a construção de eventuais ideologias e posicionamentos políticos dos estudantes: a família, o grupo social, a mídia, as redes sociais etc. Assim, quando os estudantes leem um texto ou participam de uma aula, o fazem baseados em formas de pensar o mundo influenciadas por muito mais do que seus professores e livros didáticos.
As instituições educativas não têm e não devem ter partidos, no sentido de comungarem um único posicionamento político e ideológico. É papel das escolas formar pessoas capazes de apreender o mundo de maneira complexa, e daí a importância de lutarmos pela garantia do “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas” que ampara a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber”, e o “respeito à liberdade e apreço à tolerância”, princípios consagrados na LDB. A produção de um Manual de defesa contra a censura nas escolas que seja claro e acessível aos professores é a nossa contribuição para conter a escalada do pensamento autoritário que toma a docência como degenerescência e que tenta empurrar a educação brasileira para muito abaixo da linha da mediocridade.
Para contribuir com o Manual e conhecer outros detalhes, você pode acessar esse link.
*Fernando Cássio é professor da UFABC e membro da Rede Escola Pública e Universidade; e Márcia Jacomini é professora da Unifesp (campus Guarulhos) e membro da Rede Escola Pública e Universidade.
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
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