A violência se tornou um princípio estruturante da sociedade norte-americana, que agora começa a revelar uma guerra contra si mesma.
Em fevereiro de 2008, eu escrevi o editorial de um jornal de Illinois intitulado “O que faz de alguém um assassino do campus?”. O comentário foi motivado pelas mortes na Northern Illinois University (NIU) de cinco pessoas e 21 feridos nas mãos de um ex-aluno armado.
Na época, eu me lembrei da visita que fiz ao campus de DeKalb, Illinois, nos dias após o episódio de violência. Por ter sido um estudante naquela universidade anos antes, eu conhecia muito bem Cole Hall, onde o tiroteio ocorreu. Lembro do tempestuoso e frígido inverno daquele dia, enquanto dirigia para a cidade. Senti o peso da tristeza, sensação devidamente adequada à nevasca de angústia que então varria o campus.
Mesmo que o incidente da NIU não tenha sido o primeiro tiroteio em escolas, havia a sensação de que algo completamente fora do comum tinha acabado de acontecer. Como poderia ser de outra forma? Por mais rotineira que seja a violência armada neste país, há algo especialmente grotesco sobre o ímpeto de um suicida que atira indiscriminadamente em pessoas inocentes, independente das queixas e aflições que motivam sua mente enferma.
As raizes da violência
Desde 2008 vem ocorrendo vários outros massacres igualmente deploráveis. Infelizmente, o que mais choca talvez não seja a particularidade desses assassinatos em massa, mas a sua regularidade. O que está na raiz desses espetáculos “insanos” de violência pública? A menos que nós acreditemos que um comportamento tão abominável e destrutivo seria de alguma forma inexplicável, como alguns moralistas religiosos poderiam concluir, há sempre uma explicação.
Ao investigar histórias dos muitos assassinos, o neurologista Jonathan Pincus escreveu em seu livro, “Base Instincts: What Makes Killer Kill”, ser previsível uma combinação de doença mental, danos neurológicos e abuso infantil. Na verdade, pobreza, perda do emprego ou outros fatores estressantes da vida não são em si aquilo que tipicamente faz de alguém um assassino. É necessário que exista uma espécie de semente psicológica corrosiva que já existe anteriormente no individuo. A psicóloga e escritora Alice Miller, assim como outros autores, fazem a discussão sobre as consequências sociais do trauma infantil, identificando as feridas emocionais que muitas vezes fermentam comportamentos patologicamente violentos em adultos.
Como Miller descreve em seu ensaio, “The Roots of Violence”, a necessidade ou impulso de matar não é resultado de uma “natureza humana” maleável per se, mas resulta de danos infligidos sobre o cérebro em desenvolvimento. “As pessoas cuja integridade não foi danificada na infância, que foram protegidas, respeitadas e tratadas com honestidade pelos seus pais, serão, tanto em sua juventude como na vida adulta – inteligentes, sensíveis e empáticos”, escreve Miller. “Eles vão ter prazer na vida e não vão sentir qualquer necessidade de matar ou mesmo de machucar os outros ou a si próprios. Eles vão usar o seu poder para se defender, não para atacar os outros”.
Em outras palavras, os assassinos são moldados. Não nascem assim.
Mas assassinos também não são feitos no vácuo. Essa brutalidade armada em larga escala representa um fenômeno cujo entendimento exige contextualização. Além de um histórico de abuso infantil e comportamentos violentos também estão frequentemente relacionados ao abuso de drogas e exposição crônica a ambientes violentos, como Jeffrey Swanson, uma cientista comportamental da Universidade de Duke conclui em uma recente entrevista.
Swanson afirma que a taxa de criminalidade nos Estados Unidos não é muito diferente daquela de outros países da Europa Ocidental, do Reino Unido, do Japão e da Austrália. Mas a taxa de homicídios é muito superior. Uma razão óbvia é a fácil disponibilidade de armas. Considere um incidente recente em Nova York em que duas jovens ficaram feridas e uma terceira foi morta fora de uma boate de Manhattan. Uma briga de fim de noite dentro do clube levou seguranças a expulsarem um jovem que estava no local local. Irritado, esse indivíduo pegou uma arma no seu carro e tentou entrar no clube, mas foi barrado. Em seguida, cruzou a fachada do clube com seu carro e atirou em um inocente. Foi relatado que o atirador tinha como alvo os seguranças que haviam entrado em confronto com ele.
Tais incidentes em países onde a prevalência de armas é menor do que nos Estados Unidos são apenas menos suscetíveis a terminar com sangue derramado por uma arma. Já nos Estados Unidos, incidentes mesquinhos têm mais propabilidade de se tornarem violência armada ou homicídios. Isto é completamente inesperado? De acordo com dados do governo, os Estados Unidos têm 4,4% da população do mundo, porém mais de 40% de todo armamento civil. Em 2013 havia cerca de 357 milhões de armas de fogo nesta nação de 319 milhões de pessoas.
Nos EUA, portar armas é um direito constitucional. No entanto, o país também é marcado por um tipo de violência desenfreada e corrosiva que se infiltra nas raízes da sociedade, aquele cujo ponto de exclamação é o acesso generalizado às armas letais. Na verdade, as manchete de assassinatos em massa são apenas a ponta do iceberg da violência armada nos Estados Unidos. Como The Washington Post relatou, cerca de 10.000 pessoas foram mortas em incidentes de violência armada nos Estados Unidos até agora só durante esse ano.
Algumas pessoas atribuem o agravamento dos níveis de violência armada ao crime organizado. A realidade, no entanto, é mais complexa. Na verdade, as armas têm proliferado em muitas comunidades pobres e interiores das cidades como uma consequência da política de guerra às drogas. É uma consequência de décadas de lei e de ordem a desmando dos democratas e dos republicanos.
Como bem explica a historiadora da Universidade de Temple, Heather Ann Thompson, em um ensaio de 2014, no The Atlantic, “Esta nova guerra às drogas criou um mercado ilegal que é perigoso e necessita que não haja uma contenção de armas e violência”.
Em muitas comunidades urbanas vulneráveis, a Guerra às Drogas se traduz em uma realidade cotidiana de assédio racial, perseguição e matança conduzidos pela polícia. Em vez de tratar o abuso de drogas como uma questão de saúde pública, diz Thompson, fez dele um subterfúgio penal para brutalizar as comunidades urbanas.
O Individualismo
Em certo sentido, a violência armada generalizada na sociedade americana reflete o célebre individualismo da vida americana voltado contra si mesma. Em uma sociedade que oblitera os laços comunitários e o tecido de infra-estrutura social (incluindo os recursos públicos mínimos de saúde mental), devemos realmente nos surpreender quando muitas pessoas despencam dos limites dessa realidade do faz-de-conta?
“Quando a violência se torna um princípio estruturante da sociedade, as rachaduras da democracia norte-americana começam a revelar uma guerra contra si mesma”, escreve Henry A. Giroux, da Universidade de McMaster, em um recente ensaio pro CounterPunch. Giroux está certo. Nós vivemos em uma sociedade definida e sustentada pela violência. A mesma semana em que ocorrem tiroteios em Oregon, militares dos EUA realizam ataques aéreos sobre um hospital em Kunduz, Afeganistão, que matou pelo menos 22 pessoas e feriu outras dezenas.
Aparentemente, nós nos acostumamos com a economia da guerra permanente e com a militarização da política externa, que podemos agora declarar o fim de guerras mesmo quando elas não acabam. Com um orçamento militar que se iguala à metade de todos os gastos militares do restante do mundo combinados, a nossa presença militar global demarca a mensagem de que a violência é a última solução para qualquer disputa. Esta é uma mensagem que, invariavelmente, se infiltra no subsolo da psique e da cultura americana.
Evidentemente que o direito de portar armas, previsto na Segunda Emenda, não se opõe a regulamentação razoável sobre distribuição de armamentos. Por sinal, as armas já estão sujeitas a muitos regulamentos. Ao contrário do clichê paranoico da Associação Nacional do Rifle (NRA), medidas para evitar a venda extraoficial de armas a indivíduos com histórico de violência não se resumem a um debate limitado do direito à posse de armas. Assim como inovações tecnológicas “inteligentes”, que podem impedir o disparo de armas sem verificação de identidade.
“Uma arma é apenas uma ferramenta, tão boa ou tão ruim quanto o homem que a carrega”, declarou o ator Alan Ladd, enquanto pistoleiro Shane, no clássico faroeste de 1950. Tal qual uma sociedade que chafurda num lamaçal de interminável violência, segregada por extremos de riqueza e pobreza e fundamentalmente concebida para enriquecer o 1% (ou menos) que detém a maior parte das indústrias e dos recursos da nação. Com efeito, essa realidade constitui uma forma de violência econômica contra a maioria da população trabalhadora do país, cuja rede incipiente de seguridade social e a deterioração das condições socioeconômicas servem como pano de fundo e favorecem uma epidemia de violência armada.
Pode-se notar que, mesmo na década de 1930, no auge da Grande Depressão, as ruas permaneceram relativamente a salvo de violência armada, pelo menos mais do que hoje. Mesmo na década de 1940, com o mundo sob as chamas da guerra, desajustados não entravam nas escolas para atirar indiscriminadamente em pessoas inocentes. Mas essas comparações só falam aos efeitos consumidores da alma que a ordem social capitalista arcaica instaurava sobre a condição humana. Os últimos cem anos constituem um dos séculos mais violentos da história da humanidade. Este fato não é relevante para qualquer discussão sobre a violência armada como uma questão de saúde pública?
Em certo sentido, o espectro da violência armada nos EUA é reflexo de uma sociedade atomizada e militarista que respira os fumos da democracia, insensível à violência e ao sofrimento humano e que agora tosse uma alienação e uma amargura por vezes mortal entre as fileiras dos cidadãos mais marginalizados.
Se existe um antídoto para essa realidade tóxica, ele será encontrado, a longo prazo, menos em novas leis ou regulamentos sobre as armas e mais na visão radical de um novo tipo de sociedade. Falo da perspectiva de uma democracia de massas genuína, como melhor encarna os ideais históricos do movimento socialista. O antídoto permanece, como sempre, no ar fresco da solidariedade social, em relações humanas enraizadas nos valores de cooperação e de carinho, na garantia das necessidades sociais e de desenvolvimento de cada criança, asseguradas desde o início da vida.
Fonte: Carta Maior / Mar Harris – Counterpunch
Tradução por Allan Brum
Tópicos relacionados
Comentários