O uso de expressões vagas e imprecisas na tipificação de condutas criminosas é clássica prática fascista, repudiada em ordenamentos jurídico democráticos.
Por que a presidenta Dilma remeteu ao Congresso um projeto da lei antiterrorismo?
Não há notícia de qualquer ato praticado em território nacional do que a linguagem comum denomina de terrorismo.
A Exposição de Motivos apresentou uma sintética justificativa: adequar o ordenamento aos tratados internacionais assinados pelo Brasil.
Que bom seria se fosse isso mesmo. Porque então veríamos alguma iniciativa para cumprir a Convenção Americana de Direitos Humanos e respeitar a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos (à qual o Brasil se submeteu por um ato de soberania) para punir os perpetradores de crimes contra a humanidade praticados durante a ditadura militar. Eles estão de pijama usufruindo polpudas aposentadorias depois de prestar ao povo brasileiro o serviço de assassinar e torturar sistematicamente milhares de opositores políticos.
É uma falácia. O governo não se deu ao trabalho de explicar devidamente à sociedade do que se trata. O Executivo remeteu, em regime de urgência, esse monstrengo jurídico por pressão do Financial Action Task Force, organismo internacional que tem o objetivo de combater a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo. A rigor, uma chantagem, porque há uma ameaça de retaliação, o que fez o ministro Levy, servilmente, empenhar-se em seara que não é sua pela aprovação do projeto.
A resposta digna a essa pressão, que faz parte da escalada repressiva internacional com nítidos elementos fascistas que se seguiu ao 11 de setembro, consistiria em um sonoro não em defesa dos cidadãos brasileiros e preservando os princípios republicanos e garantias fundamentais contemplados pela Constituição. Entre os quais o sagrado direito de manifestação, de opinião e de participação na vida política do país sem que penda uma espada que pode chegar a dezenas de anos de prisão.
A lógica jurídica grita contra o monstrengo. Com argumentos irrespondíveis.
O primeiro é que qualquer ato de violência contra pessoa ou coisa que em tese poderia se subsumir ao que prevê o projeto já está contemplado no Código Penal e em leis esparsas.
O segundo é que nenhum jurista sério pode afirmar que há um conceito claro ou universal de terrorismo. Por tal razão, os melhores e mais reputados penalistas que trabalharam na redação do Estatuto de Roma, que trata de graves crimes cometidos perante a ordem jurídica internacional (crimes contra a humanidade, genocídio, etc.) optaram por não usar em nenhum momento as palavras “terror” ou “terrorismo”.
O terceiro é que o uso de expressões vagas, imprecisas, genéricas na tipificação de condutas como criminosas é clássica prática fascista, repudiada em ordenamentos jurídicos democráticos. São os chamados tipos penais abertos, dos quais o projeto original e o substitutivo do senador Aloysio Nunes Ferreira usaram e abusaram. Em síntese, e em termos bem práticos, estaremos todos nós sujeitos ao juízo subjetivo de qualquer autoridade policial ou judicial sobre o conceito de “violência”, “terror generalizado”, “extremismo político”, “intolerância”, “grave perturbação social”, “aliciar indivíduos para praticar ato de terrorismo”.
O senador Aloysio, em seu substitutivo, retirou a ressalva aprovada pela Câmara que excetuava os movimentos sociais. Na redação que propõe, teremos que comete ato de terrorismo contra coisa aquele que, isoladamente ou em concurso de agentes, provoca terror generalizado, entre outros motivos, por “extremismo político”.
São expressões manejáveis e manipuláveis. Não há prova melhor disso do que a condenação de um morador de rua do Rio de Janeiro (confirmada pelo Tribunal de Justiça) por portar, em meio a uma manifestação, um vidro de pinho sol. Ou os e-mails devassados de participantes de um grupo político, interpretados ao bel prazer das autoridades policiais e judiciais e que resultaram na prisão de vários deles como malévolos delinquentes políticos comandados por um tal Bakunin, que se encontra foragido. Só não sabiam que Bakunin estava escondido em um túmulo desde o século XIX.
Estes fatos não são apenas folclóricos ou ridículos. Engraçados às vezes, mas sempre trágicos na dura realidade do Estado brasileiro e da mentalidade repressiva, autoritária, que avança para o fascismo e cada vez mais domina a polícia, o Ministério Público e o Judiciário no Brasil.
No plano internacional, projetos desse tipo seguem as diretrizes fascistas abertas pelo Patrioct Act, de Bush, e outros mais recentes, como a Lei da Mordaça, da Espanha. O Chile foi condenado por prender como terroristas estudantes que lutavam por melhorias do ensino.
O projeto não pode ser aprovado. Se aprovado, não pode ser promulgado. Se promulgado, deve ser julgado inconstitucional pelo STF por atentar contra aos fundamentos da República e garantias e liberdades fundamentais.
Repito aqui o que escrevi em outro espaço sobre esse projeto. A presidenta Dilma foi vítima no passado do fascismo da ditadura militar. Se, como presidenta, persistir nesse intento, confirmará a máxima de Marx: os fatos e personagens de grande importância na história do mundo sempre ocorrem duas vezes. A primeira como tragédia, a segunda como farsa.
Marcio Sotelo Felippe é jurista, exerceu o cargo de procurador-geral do Estado de São Paulo de 1995 a 2000 e é membro da Comissão da Verdade da OAB Federal
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