“A reforma, ao invés de criar mecanismos para incluir as pessoas hoje excluídas do sistema, aumenta ainda mais a exclusão em nome das pessoas hoje já excluídas”
Este é realmente um país estranho¹. Apesar de ostentar um dos piores índices de desigualdade social do mundo, aqui ainda é possível se deparar com a estranha fé de que, tratando todos como iguais, romperemos o ciclo vicioso de reprodução de desigualdades e promoveremos justiça social. O debate sobre a reforma da previdência tem repetido essa fórmula.
Seus apoiadores acreditam que igualar os critérios para aposentadoria entre homens e mulheres significa promover justiça e equidade e poderá, ainda, sanar magicamente as desigualdades de gênero existentes no mundo do trabalho. Curiosamente, ressaltam que as diferenças de acesso à aposentadoria não resolveram as desigualdades entre mulheres e homens na sociedade e, portanto, este seria um desenho de política pública ineficaz. Ignoram, porém, que os diferenciais não foram instituídos com esse fim; sua intenção precípua é a de reconhecer a desigualdade no mercado de trabalho e o sobretrabalho feminino, dar valor ao trabalho reprodutivo e compensá-lo.
Além disso, tentam deslegitimar o discurso feminista contrário à proposta de reforma com um argumento ardiloso: este estaria se utilizando da situação das mulheres pobres (sem acesso à previdência) para garantir supostos privilégios para as mulheres ricas. Quanto a isso, analisemos três pontos propostos pela reforma.
O primeiro diz respeito à equiparação das idades de aposentadoria de homens e mulheres em 65 anos. Como foi dito, a justificativa para o diferencial de gênero é o sobretrabalho feminino, que se ampliou consideravelmente com a entrada das mulheres no mercado de trabalho sem a respectiva alteração da responsabilidade pelo trabalho não-remunerado, que ainda é feminina. Nota técnica nº 35 do Ipea mostra que, em 2014, considerando-se a carga total de trabalho – que inclui o tempo gasto no trabalho remunerado e no trabalho não-remunerado – a jornada média semanal das mulheres superava em 8 horas a dos homens (54,7 horas semanais e 46,7, respectivamente). Esse sobretrabalho, ao longo de uma vida laboral de quase 30 anos, representa, em média, entre 5 e 6 anos a mais de trabalho para as mulheres.
Parece importante fazer duas considerações. Em primeiro lugar, as mulheres mais pobres são as que mais estão expostas à dupla jornada. São essas mulheres, que hoje podem se aposentar aos 60 anos, as que serão mais impactadas pela mudança no critério de idade mínima, devendo dedicar, no mínimo, mais cinco anos de suas vidas ao trabalho no mercado e à dupla jornada. Em segundo, é preciso ressaltar que, mesmo em estratos sociais mais elevados, a diferença de horas de trabalho doméstico dispendida entre homens e mulheres é significativa. Entre mulheres que recebiam mais de oito salários mínimos, a jornada não remunerada superava em 55% a dos homens de igual renda, sendo justificável, portanto, mesmo para este grupo, a manutenção de algum grau de diferença nas idades de aposentadoria de homens e mulheres. Trata-se, portanto, de uma questão de gênero, mas que, como tantas outras no Brasil, é atravessada pelo viés de classe e de raça, tornando mais vulneráveis as mulheres mais pobres.
O segundo ponto da reforma a ser analisado diz respeito à mudança de 15 para 25 anos de contribuição mínima obrigatória para acesso à aposentadoria. Tomando-se os dados de concessões de benefícios de aposentadorias no âmbito do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) urbano em 2014, estima-se que, se estivessem em vigência os 25 anos ora propostos, 56% das mulheres contribuintes não conseguiriam acumular a carência necessária e estariam fora do sistema previdenciário. Ou seja, mais da metade das mulheres contribuintes não iria acumular o tempo de contribuição necessário para se aposentar. No caso dos homens, este número seria de 27%. Qual o perfil dos contribuintes excluídos pela regra? Majoritariamente, mulheres com menos escolaridade, que têm trajetória laboral instável e precária. Elas se somarão às mulheres pobres que já não têm acesso à previdência porque não conseguem alcançar os 15 anos de carência hoje vigentes.
O terceiro ponto se refere ao Benefício de Prestação Continuada (BPC). Propõe-se adiar a idade mínima para recebimento do benefício, de 65 para 70 anos, e desvincular seu valor do salário mínimo. O BPC é um benefício assistencial dirigido a pessoas idosas e pessoas com deficiência sem capacidade de trabalhar cujas famílias estejam em situação de extrema pobreza. Ele foi concebido como uma renda de substituição do trabalho, dirigida a pessoas incapacitadas para trabalhar e, ainda, que beneficia famílias que em geral têm seus gastos mensais elevados, sobretudo com despesas com saúde, e muitas vezes menor capacidade de auferir renda.
Isto se deve ao fato de que idosos ou pessoas com deficiência com alto nível de dependência tendem a exigir cuidados permanentes; esses cuidados, em geral, são prestados por mulheres da família, que se veem, assim, muitas vezes impossibilitadas de trabalhar. As mulheres pobres serão, dessa forma, duplamente prejudicadas pelo achatamento do BPC: elas constituem maioria tanto entre os idosos beneficiados pela política quanto entre os cuidadores dos/as demais beneficiários/as. Reduzir a renda de famílias em tal situação de vulnerabilidade e reverter os ganhos de uma política conhecidamente progressiva não parece em nada favorável às mulheres pobres.
Portanto, afirmar que a reforma proposta atinge apenas as mulheres ricas é inverídico. Os pontos aqui levantados são suficientes para evidenciar isso, apesar de não esgotarem a lista de dispositivos propostos que afetarão gravemente as mulheres pobres. Este é o caso, por exemplo, das agricultoras familiares que ficarão amplamente desprotegidas se a reforma proposta for aprovada, e da desvinculação das pensões por morte do salário mínimo – benefício essencialmente feminino. A reforma, ao invés de criar mecanismos para incluir as pessoas hoje excluídas do sistema, aumenta ainda mais a exclusão em nome das pessoas hoje já excluídas. Pensando bem, não é o Brasil que é um país estranho.
1. Esse texto se refere ao artigo “Homens, mulheres e previdência social”, de Luis Henrique Paiva, publicado no Valor em 23/3.
*Luana Pinheiro é socióloga. Marcela Rezende é antropóloga. Marcelo Galiza é economista. Natália Fontoura é cientista política.
Fonte: Previdência: Mitos e Verdades
Imagem: recorte de pintura de Cândido Portinari (Grupo de mulheres e criança, 1936)
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