HÁ UMA CRISE profunda na Venezuela. Neste exato momento, ela tem seu fulcro na disputa do poder. Embora exista um poderoso pano de fundo econômico, seu epicentro deslocou-se para a arena política. Cada parte joga com os instrumentos que tem à mão. Nicolas Maduro detém o poder de Estado e seus principais instrumentos, incluindo as forças armadas, o judiciário e governos estaduais. A oposição, agrupada na Mesa de Unidade Democrática (MUD) ganhou a Assembleia Nacional (congresso), tem outros tantos governos estaduais e conta com um formidável aparato internacional, fixado na Casa Branca, nos governos de direita da América Latina, nos organismos multilaterais (ONU, OEA) e no grande capital, o que inclui gigantescas redes de comunicação global. Apesar de aparentar ser o lado mais forte, Maduro não está nessa posição, ao contrário. Ele foi eleito e a oposição na AN também. Quem fala em ditadura lá, age por má fé ou ignorância.
FUSTIGADO POR FORÇAS de direita que querem tudo, menos diálogo e entendimento – como sobejamente demonstra o caso brasileiro -, Maduro radicalizou. Convocou uma assembleia constituinte para relegitimar sua administração, ganhar força interna e organizar o enfrentamento. O comparecimento de 40% não é baixo diante do histórico venezuelano, que já teve pleitos decididos com menos de 25% dos votantes nas cabines.
A SOCIEDADE ESTÁ polarizada. Não há mal nisso. Disputas acirradas e nítidas ensejam quadros em que as nuances se tornam secundárias e o meio-termo desaparece. Há dois lados para se perfilar. Pode-se criticar um ou outro, mas não há escapatória. Nessa disputa, nas próximas semanas, joga-se o futuro da Venezuela e da esquerda no continente.
SE A MANIFESTAÇÃO da crise está na política, suas raízes estão em outra esfera, nos rumos da Economia e em suas consequências na vida cotidiana da população. A erosão de parâmetros materiais mina a legitimidade oficial e abre caminho para o avanço conservador.
O PAÍS CARIBENHO chegou ao ponto extremo de praticamente não possuir moeda nacional. O Bolívar tem sua cotação oficial fixada em 10 por dólar, segundo o Banco Central. Nas ruas de Caracas, a divisa dos Estados Unidas é comercializada a 12 mil bolívares! Você leu certinho: mais de mil vezes mais.
O QUE ISSO SIGNIFICA? Significa que a relação comercial do país com o mundo não segue nenhum parâmetro lógico. A taxa oficial, base para importações e exportações, é o ponto de apoio para uma desenfreada corrida especulativa interna. Comerciantes importam produtos na cotação oficial e os vendem em redes clandestinas controladas por máfias na base do paralelo. Não é preciso muita imaginação para perceber que as inflações de 720% para 2017 e de 2000% para 2018, previstas pelo FMI, têm no câmbio seu grande motor.
ASSIM, A ESCASSEZ de produtos nos supermercados – num país que importa praticamente de tudo, à exceção de petróleo – está diretamente ligada á crise cambial. E por que existe uma crise cambial no país?
PELA CONTINUADA e extremada dependência do petróleo, não apenas como quase único exportável, mas pelo fato de o Estado ser financiado em boa parte pela renda advinda de sua comercialização. A carga tributária venezuelana é historicamente baixa, situando-se em cerca de 13,5% do PIB, no período 2010-14, segundo a Cepal. Para efeito de comparação, a carga brasileira está por volta de 34% do PIB, a francesa 45% e a alemã 46%. Há algo mais grave: daquele total, cerca de 2/3 é composto por impostos indiretos e 1/3 por cobranças diretas (como o imposto de renda). Isso mostra que a carga é bastante regressiva, apesar de ter se elevado bastante nos anos Chávez (1999-2013).
O FINANCIAMENTO do Estado é complementado largamente pela renda petroleira. Isso implica dizer que quando o preço do óleo está alto (como em 1974-80 e 2000-2011), a Venezuela torna-se próspera. Quando os preços desabam – como nos últimos três anos – o país tem de apertar cintos.
COMO OS PREÇOS DO petróleo oscilam de acordo com uma infinidade de variáveis – boa parte delas especulativa – a manutenção dessa política fiscal na prática amarra o país à especulação mundial. Não é característica apenas venezuelana. O fenômeno atinge até mesmo um gigante como a Rússia. Além disso, o baixo ingresso de petrodólares gera escassez interna de moeda forte, o que alimenta a procura e eleva seu preço. A pergunta óbvia é: por que Chávez não mudou isso?
A RESPOSTA NADA óbvia é: porque não é fácil. Quando os preços estão altos e o ingresso de petrodólares financia a máquina pública, os investimentos e o dinamismo econômico (incluindo geração de empregos, elevação de salários e programas sociais) não há incentivo algum para se realizar uma reforma tributária ou para se promover a reestruturação produtiva, impulsionando a industrialização. A moeda nacional se valoriza, as importações ficam baratíssimas e os custos de produção internos se tornam proibitivos. É o fenômeno conhecido como “doença holandesa” e foi percebido pioneiramente por Celso Furtado, em 1956.
QUANDO O PREÇO internacional desaba e a economia interna entra em crise, não há condições de se fazer investimentos. Chávez tentou reativar a siderurgia, a instalação de indústrias de bens duráveis e internalizar a produção de produtos agrícolas processados, mas não conseguiu.
ASSIM, O PROBLEMA estrutural do país – o câmbio e a moeda – não têm solução fácil à vista. Nem pelo governo e nem pela oposição. O programa desta última é voltar ao que existia até 1998: concessões de poços de petróleo a estrangeiros e adaptar a estatal de petróleo – PDVSA – à lógica dos grandes consumidores internacionais (EUA, entre outros), além de acabar com dezenas de programas sociais.
ESSE É O PANO de fundo sobre o qual se dá a disputa de poder. A falta de liderança presidencial, o sucateamento da PDVSA e problemas administrativos agravam, mas nem de longe são determinantes na composição do quadro. Se a situação é essa, por que motivos o governo venezuelano convocou a Constituinte?
É POUCO PROVÁVEL que uma nova Carta ataque de imediato as disfuncionalidades econômicas. Mas ela se volta para uma questão também essencial para o chavismo: o tempo. Maduro precisa ganhar fôlego. Tem necessidade premente de se relegitimar, após perder as eleições parlamentares de 2015 e de ver seu país afundar – como todos os da periferia – após o repique da crise internacional, em 2013. Embora tenha havido uma pequena recomposição dos preços do barril do petróleo (US$ 30 em janeiro de 2016, US$ 50 em janeiro de 2017 e US$ 44 agora), o rombo econômico é de tal magnitude que tais majorações não resolvem as turbulências.
A RELEGITIMÇÃO OFICIAL via Constituinte permite, em tese, enfrentar a oposição interna, tentar compensar os efeitos da crise com medidas sociais tópicas e traçar nova tática de enfrentamento diante de um ascenso vigoroso de forças conservadoras no continente e nos EUA. Repetindo: pelo que se vê no Brasil, o que a direita menos quer agora é entendimento. Os bolivarianos terão êxito? Não se sabe.
POR QUE É VITAL APOIAR Maduro, apesar de suas insuficiências e erros? Porque a queda do chavismo não melhorará a situação da esquerda nem interna e nem externamente. Cuba será novamente fustigada e as correntes progressistas latinoamericanas serão desqualificadas ad nauseam. Assistiremos uma tragédia anunciada ainda maior para a população local e veremos um triunfo espetacular da direita e do financismo global. Será um exemplo a ser brandido por décadas para intimidar quem busca transformações sociais. Algo que só encontrará paralelo com a queda dos países socialistas, há quase trinta anos.
INFELIZMENTE NÃO HÁ terceira via ou saída progressista na Venezuela fora do governo Maduro. Não há muro confortável, posição equidistante ou lugar para isenções. A neutralidade favorece o mais forte em situação de radicalização. Abandonar a Venezuela ou fazer carga contra quem luta como um leão para vencer as oligarquias equivale a se somar com armas e bagagens ao outro lado.
É POSSÍVEL CRITICAR MADURO, falar de sua inépcia e esbravejar pelo fato de seu governo não raro meter os pés pelas mãos. Mas colocar-se contra ele e compará-lo à brutalidade fascista significa colocar-se ao lado de quem, no Brasil e no mundo, opera ferozmente pelo fim da democracia, pela regressão social e pela negação de qualquer ideia transformadora.
*Gilberto Maringoni é professor de Relações Internacionais da UFABC e foi candidato ao governo de São Paulo pelo PSOL.
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