Gilberto Maringoni
Completou-se a farsa. O Senado paraguaio desferiu um golpe de Estado com todos os procedimentos de legalidade formal e retirou do poder o presidente eleito em 2008, Fernando Lugo. No comando de tudo, as oligarquias que deram suporte à ditadura de Alfredo Stroessner (1954-89), agora com figurino modernizante. Termina melancolicamente um mandato marcado por ambigüidades e vacilações.
Apesar de ser um presidente fraco politicamente, Lugo era uma pedra no sapato das elites locais. Ex-bispo progressista, ligado aos movimentos de luta pela terra, ele só foi aceito pelo establishment local por ser sócio minoritário em uma coligação com maioria conservadora.
Constituição oligárquica
O Paraguai é um país com renda e poder extremamente concentrados. A queda da ditadura de Stroessner, em 1989, se deu através de uma aliança entre setores do governo, de seu partido (Colorado) e do empresariado com as forças armadas. Apesar do fim de medidas arbitrárias mais duras e dos avanços em direção a um estado de direito, as rédeas do processo de elaboração da Constituição de 1992 continuaram nas mãos da oligarquia local.
É interessante examinar a queda de Lugo à luz da Carta. O artigo 225, que trata do impedimento do Presidente da República, é suficientemente vago e elástico para permitir a deposição sumária de autoridades constituídas. Seu texto diz o seguinte, em tradução livre:
“O Presidente da República, o Vicepresidente, os ministros do Poder Executivo, os ministros da Corte Suprema de Justiça, o Procurador Geral do Estado, o Defensor Público, o controlador Geral da República, o Subcontrolador e os integrantes do Tribunal Superior de Justiça Eleitoral só poderão ser submetidos a juízo político por mal desempenho de suas funções, por delitos cometidos em exercício de seus cargos ou por delitos comuns”.
O termo “mal desempenho” pode significar qualquer coisa, a depender dos humores e orientações de quem julga tais atos.
O artigo 17 (“Dos direitos processuais”) poderia dar vantagem a Lugo nesse processo. Ele assegura que:
“No processo penal ou em qualquer outro do qual se possa derivar pena ou sanção, toda pessoa tem direito a: 1. Que seja presumida sua inocência; (…) 2. Que não se condene sem juízo prévio fundado em lei anterior ao fato do processo, sem que se julgue por tribunais especiais”.
Batalha política
No entanto, a batalha congressual que consumou o golpe está longe do terreno do direito. Ela se funda na adversa correlação de forças que o mandatário enfrentava no interior de sua própria coligação partidária. Ela é dominada pelo Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA), de direita, uma espécie de PMDB local.
Para se ter uma idéia da situação do presidente, vale frisar que seu partido original, o Movimento Popular Tekojoja, elegeu apenas um deputado e um senador para o Congresso. O PLRA emplacou 26 deputados e 14 senadores e tornou-se fiador da governabilidade, impedindo quaisquer reformas sociais mais profundas patrocinadas pelo presidente.
O desgaste político enfrentado pelo ex-bispo se acentuou a partir de denúncias, em 2009, de que seria pai de três filhos, frutos de relacionamentos com mulheres menores de 18 anos. Tais fatos possibilitaram que o PLRA tivesse ainda mais proeminência na administração.
Lugo não teve forças para impedir ações repressivas contra movimentos sociais ao longo dos últimos anos, ao mesmo tempo em que era acusado de não ter energia suficiente para fazer frente a conflitos no campo.
O presidente chegou aos últimos dias incapaz de se opor à evidente conspiração contra seu mandato. Assistiu passivamente à montagem do processo parlamentar que colocou termo ao governo. O PLRA juntou-se à oposição colorada e decidiu tudo. Parecem ter se valido da máxima de Maquiavel, de que o mal deve ser feito de uma só vez e rapidamente.
Passividade presidencial
Para completar, é preciso ressaltar a lamentável passividade do presidente na sexta-feira (22). Lugo não foi pessoalmente ao Senado para se defender politicamente. Preferiu enviar seus advogados, como se tudo se resumisse a uma questão técnico-jurídica e não a um golpe de Estado com matriz nitidamente política.
Some-se a isso o pífio e curto discurso de despedida. Apesar de falar em golpe, abusou de eufemismos como “a democracia foi ferida profundamente”. Num tom de quem pede desculpas, declarou: “Como sempre atuei no marco da lei, embora essa lei tenha sido torcida como um frágil ramo ao vento, me submeto à decisão do Congresso e estou disposto a responder sempre por meus atos como ex-mandatário nacional”.
Com um comportamento frouxo, Lugo joga um balde de água fria em seus apoiadores e esvazia o esforço dos países da Unasul para isolar os golpistas.
A diplomacia brasileira, que tem se caracterizado pela ambiguidade e resignação nos últimos meses, não deve tomar atitude mais incisiva. Os Estados Unidos, ainda na noite de sexta, reconheceram o novo governo. Apenas Argentina, Bolívia, Equador, Venezuela e Nicarágua, até a tarde de sábado, chamaram a coisa pelo nome: golpe de Estado.
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