As estatísticas oficiais relativas ao Regime Geral da Previdência Social (RGPS) sempre foram objeto de polêmica e controvérsia. A divulgação de números e informações a respeito do sistema gerido pelo INSS implica um sem número de hipóteses que nem sempre conseguem alcançar o status de consenso ou mesmo de maioria entre os especialistas. No entanto, isso faz parte do jogo democrático e do debate plural em uma sociedade que amadurece seus sistemas de políticas públicas.
Por Paulo Kliass*
Um dos principais elementos de debate refere-se ao abandono completo a que foi relegado o conceito estratégico de “seguridade social”, tal como foi introduzido no corpo da nossa Constituição Federal (CF) a partir de 1988. De acordo com a tradição mais preocupada com a justiça social emanada do continente europeu, os parlamentares brasileiros incorporaram a ideia de unificar a previdência social, a saúde e a assistência social em um único grupo de contas orçamentárias.
A importância atribuída a essa inovação foi de tal ordem que foi até mesmo criado um orçamento especial da União para tratar desse sistema. Assim, o art. 165 da CF prevê até hoje a elaboração do Orçamento da Seguridade Social, ao lado dos outros dois – Orçamento Fiscal e Orçamento de Investimento das Empresas Estatais. Ocorre que tal inciativa acabou sendo relegada a um segundo plano e a maior relevância conferida ao Orçamento Fiscal pelos responsáveis pela política econômica terminou por deixar os demais como figuras de mera formalidade jurídica.
Outro ponto de muita polêmica refere-se à antiga forma de avaliação e divulgação das informações relativas ao RGPS. A própria CF estabelece que a seguridade social pressupõe a existência de um tripé para seu funcionamento: I) participação de recursos orçamentários da União; II) contribuição empresarial; e, III) contribuição dos trabalhadores/participantes. No entanto, há décadas optou-se por tratar o RGPS como um sistema que deva ser superavitário, como se se tratasse de uma conta de banco privado. É bem verdade que a CF fala em necessidade de preservação do “equilíbrio financeiro e atuarial”, mas importa apropriar de forma adequada as fontes de receitas e as despesas do regime.
Assim, desde que surja alguma dificuldade de natureza fiscal no conjunto das contas governamentais, os ortodoxos de plantão sempre iniciam sua conhecida grita contra a conta orçamentária que apresenta a maior magnitude. E abrem a metralhadora giratória contra as despesas previdenciárias. O termo falacioso “déficit estrutural” desponta com toda a carga raivosa contra um gasto público que a lógica neoliberal teima em seguir considerando como inadequado e ineficiente. Está na mesma raiz ideológica da abordagem do deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) a respeito do Bolsa Família. No entender do presidente da Câmara dos Deputados, o maior programa de transferência de renda do mundo e promotor da inclusão social “escraviza as pessoas”. Uma loucura!
Nunca é demais repetir: não existe déficit nas contas do RGPS. O que pode parecer uma mera questão de jogo de palavras, na verdade esconde um debate de fundo. Ao tratar o problema previdenciário como sendo uma “necessidade de financiamento”, amplia-se a abordagem do tema e incorpora-se o outro lado da equação – a busca pelas receitas. Em suma, trazemos para a cena a realidade da sonegação tributária, da desoneração da folha de pagamentos das empresas, da isenção das instituições filantrópicas e das fragilidades do mercado de trabalho. Ufa! Fontes de financiamento não faltam. Basta a vontade política de reconhecer que o RGPS é mais do que uma conta de padaria e que o governo deve atuar de forma ampla e incisiva para mantê-lo equilibrado hoje e no futuro. Está mais do que evidente que o problema não se resolve apenas pela lógica de corte de despesas.
Além disso, há bastante polêmica a respeito da apuração do chamado “déficit previdenciário”. O subgrupo dos beneficiários do campo constitui uma parcela especial de nossa população, cujo reconhecimento deu-se apenas a partir de 1988, quando a CF reconheceu o direito à inclusão previdenciária a esse setor de nossa sociedade – até então proibido de participar da previdência social. Ora, como camponeses e assalariados rurais nunca haviam contribuído e passaram a gozar de benefícios (99,7% deles recebendo a “fortuna” de 1 salário mínimo por mês), surge uma necessidade de financiamento. Isso é óbvio. Mas não tem nada a ver com desajuste atuarial ou demográfico. Bastaria o Tesouro Nacional promover a contribuição histórica desses participantes ao RGPS em nome da sociedade brasileira, tal como decidiu soberanamente a Assembleia Nacional Constituinte.
Como se vê, há muitos pontos polêmicos no tratamento, na divulgação e no debate sobre a realidade das contas previdenciárias.
Mas dessa vez a equipe econômica exagerou na dose! O governo Temer contrariou a tradição de divulgação de dados do RGPS, tal como é feita a cada 30 dias desde 2003. Basta entrar na página da previdência social e encontrar ali todos os boletins mensais. Em um gesto que mistura cafajestice fisiológica com desonestidade intelectual, o responsável vem a público anunciar um mentiroso déficit da previdência social de quase R$ 270 bilhões. E o catastrofismo se esmera em exagerar a antevéspera do caos: o maior valor de toda a História. E dá-lhe o (ir)responsável a chantagear o Congresso Nacional e a sociedade com a Reforma da Previdência. Se nada for votado agora em fevereiro, o cenário aponta para um país inviável, um governo que será paralisado. Mentira!
A grande trapaça inovadora foi a inclusão oportunista de todas as contas de previdência em um único pacote, como claro intuito de aumentar o susto. O governo anuncia, portanto, o valor agregado de RGPS e dos demais regimes previdenciários dos servidores públicos. Pela primeira vez em nossa História, tal manobra de somar bananas a abacaxis de forma irresponsável é realizada em entrevista coletiva pela autoridade de plantão. São modelos distintos e que já foram objeto de algumas tentativas de uniformização. No caso de servidores públicos, por exemplo, existem situações diferentes para o Poder Executivo, o Poder Legislativo e o Poder Judiciário. Além disso, há uma particularidade para a previdência dos militares das 3 Armas.
Há um bom tempo os novos servidores públicos estão equiparados às condições do regime do INSS. Existe um teto de pagamento de benefícios por parte da União e o restante do benefício será complementado pela previdência complementar, na forma de um fundo de pensão. Exatamente por isso, as projeções oficiais para o quadro de despesas futuras são uma fraude. Elas não levam em conta essa mudança importante na composição das gerações de servidores das próximas décadas. Mas pouco importa coerência e honestidade na manipulação dos dados. O que se busca é enganar e convencer a qualquer custo.
E mais uma vez permanece um enorme silêncio a respeito das fontes da receita. As contas do RGPS só voltarão a se equilibrar quando houver crescimento da atividade econômica. A contribuição previdenciária depende do emprego e da folha de pagamento das empresas e dos autônomos. Um desemprego próximo a 14 milhões de pessoas tem significado uma vultosa perda de capacidade arrecadadora do modelo. A vigência da flexibilização da CLT e a precariedade da contratação da mão de obra também joga para a informalidade uma parcela expressiva dos trabalhadores. O resultado aparece ali na frente na conta “necessidades de financiamento do RGPS”. Se o desemprego voltasse aos patamares de uma década trás, não haveria déficit algum no sistema. Aliás, o tal do “buraco nas contas do INSS” só começou a surgir a partir de 2015, quando tem início o austericídio e o aumento expressivo do desemprego.
O governo conta seus últimos dias. E se mostra isolado e pressionado por não conseguir entregar aos representantes do financismo nem mesmo um arremedo da proposta inicial de sua maldade previdenciária. Mas agora o desespero avançou o sinal e penetrou no terreno pantanoso e mal cheiroso da vigarice e do cafajestismo.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
Fonte: Portal Vermelho
INTERSINDICAL – Central da Classe Trabalhadora
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