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Paulo Kliass: Uma Vale e muitos crimes

Uma Vale e muitos crimes
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A criação da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) foi mais uma das muitas decisões estratégicas adotadas por Getúlio Vargas. Com um projeto bastante definido a respeito dos rumos de um desenvolvimento nacional autônomo, ele deixou um legado fundamental para o futuro da sociedade brasileira. A constituição de uma empresa pública federal para se ocupar da exploração da riqueza do subsolo (em especial o minério de ferro) ocorreu mais de uma década antes do lançamento da Petrobrás.

Em junho de 1942, Getúlio publica um Decreto Lei portando sobre a criação dessa empresa estatal. Não terá sido por mera coincidência que dois meses depois, em agosto, o País declararia oficialmente sua participação no bloco militar dos aliados na Segunda Guerra, na luta contra o nazifascismo. A constituição de um parque produtivo moderno à época tinha como pré requisito a formação da indústria siderúrgica nacional e a implantação de uma sólida rede de infraestrutura (energia, transportes, comunicações) de apoio às atividades econômicas. O minério de ferro já se apresentava como matéria prima essencial para tal empreitada.

Na verdade, o surgimento da CVRD veio no mesmo pacote da criação, um ano antes, da primeira empresa brasileira em condições de produzir aço em grande escala. Em abril de 1941 foi realizada a assembleia de fundação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), também por iniciativa de Vargas. A atividade produtiva da estatal federal foi inaugurada apenas em 1946. Ao longo da década seguinte foram sendo constituídas outras empresas estatais federais do mesmo ramo em outros estados. Esse foi o caso da Companhia Siderúrgica Paulista (COSIPA, em 1953) e depois a Usiminas (1956), culminando mais tarde na montagem da “holding” Siderbrás e sua rede de siderúrgicas controladas por quase todo o território nacional.

Criação em 1942 e privatização em 1997

O interessante é que a CVRD sobreviveu a períodos e processos políticos bastante distintos de nossa História. Sua natureza pública e estatal acompanhou a vida da empresa na ditadura varguista pré 1945. Se manteve assim no processo de democratização na Constituinte de 1946. Atravessou a fase democrática do desenvolvimentismo até o golpe de 1964 e se fortaleceu ainda mais no período da ditadura militar. A empresa se mantém assim durante toda a transição democrática e o pacto da Constituição de 1988 confirma que os recursos do subsolo são bens da União e que a exploração de minério também é de exclusividade da União.

No entanto, a onda neoliberal da década de 1990 coloca esse modelo em questão. Durante o governo de FHC um conjunto de setores estratégicos e empresas estatais passam a ser objeto de privatização. Um dos exemplos mais emblemáticos foi justamente o da CVRD. O controle acionário da empresa foi transferido em uma única martelada no cenário teatral especialmente montado pelo financismo no espaço da Bolsa de Valores. Com isso, foram-se embora pelo ralo mais de 55 anos de vida da empresa no âmbito do setor público. Independentemente das críticas que se possam oferecer ao percurso da empresa ao longo dessas décadas, o fato é que ela estava respondendo de alguma maneira a interesses estratégicos do Estado brasileiro.

A onda privatizante foi devastadora. Ao final, o valor pago pelo consórcio vencedor foi irrisório. Foram contabilizados apenas US$ 3,3 bilhões, quando várias avaliações independentes estimavam que os valores patrimoniais da CVRD superavam os US$ 70 bi. Além disso, o modelo de privatização aceitava o pagamento dos ativos com as chamadas “moedas podres”. Tratava-se de títulos do Tesouro Nacional que eram negociados por alguns centavos no mercado secundário e que foram aceitos por seu valor nominal de face na hora da privatização. Uma verdadeira negociata em prol dos investidores. Um tremendo crime de lesa pátria contra a maioria da população brasileira.

O primeiro crime foi a privatização

É bem verdade que as pessoas ficaram bastante chocadas com as catástrofes mais recentes de Mariana e Brumadinho. E esse sentimento generalizado de indignação e impotência é mais do que justificado. Afinal, os prejuízos são incomensuráveis – humanos, ambientais, materiais, financeiros. Ao contrário do que tentam passar os grandes meios de comunicação e os próprios órgãos públicos envolvidos, estes eventos não podem ser qualificados como “acidentes”. Na verdade, foram crimes cometidos em nome da busca ensandecida pelo lucro. Eu sei que é duro apresentar uma análise com esse tipo de frieza nesse momento de tanta dor e tristeza. No entanto, infelizmente, é simples assim.

Mas não nos esqueçamos de que o primeiro grande crime foi até anterior. Ele ocorreu com a decisão de promover a privatização. Ao vender a Vale para o capital privado, o governo passou a sinalizar que a exploração do minério de ferro (e outros minerais) entrava em nova fase. Ao transferir a propriedade e a direção da empresa para uma articulação liderada pelo capital financeiro nacional e internacional, nossa elite política rompeu com o modelo que pressupunha a existência de um projeto nacional articulado para promover a exploração do subsolo com alguma racionalidade que fosse um pouco além da ganância pura e simples.

A Vale passou a orientar suas ações única e exclusivamente em busca da chamada “maximização de seus resultados”. Traduzindo esse financês sofisticado, isso significa que a empresa iria correr atrás de lucros e mais lucros a qualquer preço. E ponto final! Sim, pois esse era exatamente o argumento usado à época da negociata. Vivíamos sob o reinado supremo e absoluto dos ditames do Consenso de Washington e de suas receitas liberal privatizantes. A grande imprensa não cansava de repetir o eterno blá-blá-blá a respeito da suposta ineficiência intrínseca do setor público e da suprema eficiência da gestão privada das empresas. Os resultados estão por aí.

As pessoas se assustam com as revelações dos bastidores da vida da empresa que agora passam a vir à tona. É doloroso e revoltante. Mas é exatamente assim que funciona a lógica do capital privado. O interesse que comanda é a busca do retorno financeiro dos investidores, em particular os estrangeiros que operam na Bolsa de Valores de Nova Iorque. E para esse povo, pouco importa o que, o como e onde a empresa esteja atuando. Eles querem lucro e nada mais conta. Se alguém pensou em projeto nacional, esqueça. A Vale exporta minério de ferro extraído das montanhas de Minas Gerais e ela mesma importa – para construir suas estradas de ferro – os trilhos produzidos pelo conglomerado em plantas industriais no exterior.

Capital privado e lucro a qualquer preço

A Vale não incorpora em suas ações nenhum tipo de compromisso com a sustentabilidade ambiental, social ou econômica. O que já era sabido e denunciado pelo mundo afora, agora passou a ser tragicamente comprovado pelos crimes de Mariana e Brumadinho. A partir da privatização, a lógica de acumulação de capital obedece ao princípio de obtenção do máximo potencial de lucro no menor intervalo de tempo possível. Assim, sob tais condições, os aspectos relativos a segurança na operação, a prudência nos processos, o respeito às populações locais, a preservação do meio ambiente e outros se enquadram naquilo que o governo do capitão chama genericamente de “marxismo cultural”.

Ora, não é mesmo verdade que boa parte das receitas da Vale advém da exportação de minério de ferro? Pois então, a tarefa do suposto “gestor eficiente” é aumentar o volume a ser extraído a qualquer preço. Sim, pois sobre a cotação da tonelada da commodity no mercado internacional ela não consegue atuar. Essa verdadeira sangria – literal e simbólica – a que a sociedade brasileira está sendo submetida é convertida em bônus e ganhos exorbitantes para os dirigentes da empresa, além dos dividendos bilionários religiosamente pagos aos investidores nacionais e estrangeiros. A velha e conhecida ampliação e reprodução das desigualdades de todos os tipos.

Ora, sob tais circunstâncias, não seria o caso de nos indagarmos qual o ganho que a maioria da nossa população tem com a continuidade desse modelo altamente espoliador? A realidade objetiva é que reproduzimos um sistema baseado no pós-colonialismo, onde permanecemos especializados na exportação de riquezas naturais de baixíssimo valor agregado e importamos produtos manufaturados de alto valor agregado do resto do mundo. Ou seja, terminamos por reforçar um modelo que nos eterniza na condição de subalternos e dependentes. Exatamente o oposto do sonho de Getúlio e de qualquer projeto de desenvolvimento social e econômico.

A Vale precisa ser pública!

Esse tipo de atividade recolhe pouquíssimo tributo e compromete de forma severa nosso meio ambiente e nosso tecido social. No entanto, a Vale é uma das empresas que mais participa do financiamento de campanhas eleitorais pelo Brasil afora. Com seu imenso poder econômico, ela interfere nas eleições “colaborando” com chapas nos executivos federal, estaduais e municipais, bem como na votação de candidatos aos legislativos dos três níveis. Talvez essa seja uma característica essencial para compreendermos a complacência e a passividade da administração pública em promover uma regulação séria e punir esse tipo de atividade criminosa.

A crise está escancarada. Esse é o momento para se debater e reverter o crime da privatização. O futuro da Vale em simbiose de respeito ao meio ambiente e à maioria da sociedade exige uma mudança efetiva em seu comando. A empresa precisa recuperar de forma urgente sua natureza pública, para evitar a continuidade desse tipo de prática criminosa. Já passou da hora da União retomar as rédeas de controle da empresa, evitando que a sanha avassaladora do lucro a qualquer custo continue a orientar a gestão do grupo.

A Vale precisa voltar a ser uma organização pública e estatal. Uma empresa preocupada com o futuro do Brasil e não com a satisfação dos interesses mesquinhos dos investidores do capital especulativo. Basta!

*Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

Fonte: Portal Vermelho

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