Era uma manhã de domingo quando ela decidiu sair de sua casa, no morro da Cegonha, no Rio de Janeiro, para ir à padaria comprar pão. No meio do caminho, foi atingida por dois tiros. A Polícia Militar alega que os projéteis foram disparados durante um tiroteio.
O que aconteceu depois é impossível de ser esquecido: Cláudia sendo arrastada pela viatura da PM. O rastro de sangue não deixa mentir. Foram 350 metros de sofrimento, até que o carro para e os policiais a colocam de volta no porta-malas.
Na última semana, o Ministério Público do Rio de Janeiro denunciou por fraude processual os seis PMs envolvidos na morte de Cláudia. O órgão concluiu que eles modificaram a cena do crime quando removeram o corpo a pretexto de socorrê-lo, mesmo sabendo que já não lhe restava vida. Dois deles foram denunciados, ainda, por homicídio doloso qualificado. Três dos agentes continuam trabalhando em outros batalhões; os outros estão judicialmente proibidos de exercer suas funções.
Um ano depois, entretanto, nenhum deles foi preso.
No último domingo (15), milhares saíram às ruas para protestar, acima de tudo, contra a corrupção e a impunidade. Nas faixas e cartazes carregados pelos manifestantes, muitas menções à Operação Lava Jato e ao esquema de pagamento de propina da Petrobras. Nenhuma palavra, contudo, em relação à demora na punição dos policiais que assassinaram Cláudia. Indo além: silêncio absoluto quanto à condenação dos inúmeros PMs que diariamente aterrorizam e executam, nas periferias do Brasil, a população negra e pobre.
Cláudia não faz parte da preocupação dos “indignados” de domingo. Nem ela, nem nenhuma das questões que compõem seu universo de mulher marginalizada por sua raça, condição social e gênero. Tampouco sua história, brutalmente encerrada pelo horrendo episódio do dia 16 de março de 2014. Prova disso é o culto à militarização, observado nos protestos de ontem. Pessoas posando sorridentes para fotos ao lado de PMs constituíam uma cena normal. O que dizer, então, dos pedidos de intervenção militar?
O caso de Cláudia não é isolado, é um símbolo. O que aconteceu com ela ocorre todos os dias com mais cinco brasileiros, segundo o último anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O estudo indica que, em 2013, nossas polícias mataram pelo menos seis pessoas por dia. Do total de óbitos registrados, 81,8% foram cometidos por policiais em serviço.
Nada disso é novo. Há anos, movimentos sociais, pesquisadores, artistas e organizações de direitos humanos vêm chamando a atenção para esse quadro. Mas a mídia tradicional – a mesma que ajudou a organizar e insuflar os atos de ontem – despreza solenemente essa realidade. As grandes massas se enfurecem, de forma legítima, com a impunidade de políticos e servidores públicos corruptos, mas não movem uma palha sequer para contestar a demora da Justiça em condenar policiais assassinos – sobretudo, quando as vítimas são negras e pobres. É a revolta seletiva.
Cláudia, Amarildo, Douglas, os doze jovens mortos na chacina do Cabula, em Salvador, ou as onze pessoas assassinadas em Belém não lotam avenidas. É banal a ideia de que essas vidas valem menos.
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