Morto por um policial militar no último dia 12, o carroceiro Ricardo Silva Nascimento, de 39 anos, fazia parte de uma categoria que maneja 100% de todo o material reciclável de São Paulo.
Das 12 mil toneladas de resíduos domiciliares coletados por dia pelo poder público na cidade, 35% é material com potencial para reciclagem. A cidade só reaproveita 6% desse volume, de acordo com a prefeitura.
O recolhimento desse material é dividido: em alguns dos 96 distritos da cidade, é feito por empresas concessionárias. Em outros, por cooperativas de catadores e carroceiros. Em alguns, a coleta é mista.
Todo o resíduo reciclável, no entanto, é encaminhado para 41 cooperativas de catadores cadastradas. Ou seja, no final do processo, são essas cooperativas que fazem a triagem, o armazenamento e a venda de todo o material.
“Não existe reciclagem no Brasil sem o trabalho dos catadores”, diz a pesquisadora Fernanda Lira, do Ipea (Instituto de Pesquisas Aplicadas). “São eles que reinserem o material no ciclo de produção, transformando o que é considerado lixo em mercadoria novamente.”
As condições dos carroceiros e catadores, no entanto, são muitos desiguais, já que a maior parte deles não participa de cooperativas, segundo o sociólogo Daniel Carvalho, da consultoria Cicla Brasil.
Ricardo era um deles. Ele trabalhava em Pinheiros quando se envolveu em uma discussão dentro de uma loja. A polícia foi chamada e carroceiro, que tinha um pedaço de madeira na mão, levou três tiros. Testemunhas depois acusaram os policiais de ameaçá-las para apagarem registros da ação.
A Secretaria de Segurança pública diz que os dois policiais envolvidos na ocorrência foram afastados da rua e que a investigação do caso está sendo acompanhada pela Corregedoria da Polícia.
A maioria dos carroceiros trabalha individualmente, carregando até 400 kg de carga e vendendo o material a preços baixíssimos para revendedores. “A maior parte dos trabalhadores está em situação de fragilidade, sem registro formal e sem nenhum tipo de proteção trabalhista ou do poder público”, diz a especialista do Ipea.
Além disso, existem dezenas de cooperativas que não possuem convênio com a prefeitura.
Cleiton Emboava, de 34 anos, trabalha em uma dessas entidades. Sua associação, a Nova Glicério, corre o risco de ser despejada pela prefeitura do espaço que ocupa na avenida do Estado.
“Estamos ali há quase dez anos. Temos máquinas, equipamentos que foram investimento da prefeitura em outras gestões. Aí em maio vieram uns fiscais querendo lacrar tudo e lavar as carroças”, diz Cleiton, que é da terceira geração de uma família de carroceiros.
Seu pai, Arivaldo, de 54 anos, trabalhou com carroças a vida toda e conseguiu comprar, há alguns anos, uma caminhonete, graças ao aumento na renda gerado pelo trabalho na associação.
A prefeitura regional da Sé diz que as duas associações localizadas na parte inferior do Viaduto do Glicério não possuem cadastro na prefeitura “por não possuírem imóvel regular para o exercício da atividade”. Diz que está “em diálogo com os representantes para verificar espaços públicos disponíveis para a mudança, bem como a manutenção da segurança dos trabalhadores”.
O peso do papel dos catadores e carroceiros na reciclagem do lixo é significativo no país inteiro. Segundo um estudo do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP) publicado no mês passado, eles são responsáveis por quase metade da coleta seletiva no Brasil.
Eles recolhem 43,5% do volume total de recicláveis dentro dos sistemas de coleta seletiva municipal — são o principal agente de coleta, já que as prefeituras recolhem 18,7% do total e as empresas, 37,8%. Em cidades de até 100 mil habitantes, os catadores são responsáveis por uma fatia ainda maior: 60,1%, de acordo com o mesmo estudo.
Pela dificuldade de coletar esses dados, é possível que os números sejam até maiores. Relatórios recentes do Instituto de Pesquisas Aplicadas (Ipea) citam dados do Compromisso Empresarial para a Reciclagem (Cempre) que apontam que 90% do material reciclado no Brasil em 2011 passava pelas mãos dos catadores.
O Brasil recicla apenas 13% do total de resíduos sólidos que produz, segundo o Cempre. Cerca de 85% dos brasileiros não têm acesso à coleta seletiva — ela só atinge 31 milhões de pessoas, 15% da população.
O paulista Gabriel Ortega dos Santos, de 32 anos, é um dos 20 mil catadores que o Movimento Nacional dos Catadores de Recicláveis (MNCR ) estima existirem em São Paulo. No Brasil, esse número varia entre 400 e 600 mil, segundo o Ipea. Destes, cerca de 30,3 mil estão em cooperativas e associações.
Gabriel começou a trabalhar com recicláveis há 22 anos, catando latinhas com um tio. Depois, ele passou a conciliar a atividade com a venda de água e, quando sua barraca foi confiscada pela prefeitura, comprou duas carroças.
Morador de Pinheiros, bairro nobre da capital paulista, ele está acostumado a explicar para os vizinhos que deixam material com ele as diferenças entre o que pode e o que não pode ser reaproveitado. “Tem que falar o que dá para usar. Tem ferro, alumínio, papelão. Não são todos os plásticos. Latinhas precisam estar limpas: se tiver bituca de cigarro dentro, por exemplo, já atrapalha”, explica.
“Acham que carroceiro é burro, mas a verdade é que a gente faz um trabalho de base. Estamos salvando golfinhos, salvando florestas”, diz Gabriel, que tem o primeiro grau completo.
“Acham que carroceiro é burro, mas a verdade é que a gente faz um trabalho de base. Estamos salvando golfinhos, salvando florestas Gabriel Ortega, carroceiro”
De acordo com a pesquisadora Fernanda Lira, essa função de “agente ambiental” informal é o segundo fator, além da coleta seletiva, no qual os catadores geram grandes impactos. “Eles que iniciam o debate, pressionam e ensinam para a gente que aquilo que achávamos que era lixo, na verdade é uma mercadoria com valor”, afirma.
Segundo Fernanda Lira, do Ipea, esses trabalhadores também são essenciais no setor de logística reversa, ou seja, o de fluxo de produtos e embalagens na cadeia de produção. Desde que o Plano Nacional de Resíduos Sólidos entrou em vigor, a responsabilidade pelo lixo passou a ser individual — as empresas precisam cuidar do descarte de seus resíduos.
Muitos carroceiros acabam fazendo esse serviço — e sem ganhar por isso, desonerando as empresas e as prefeituras. “Porque os catadores não recebem? Quando é uma empresa de coleta, elas recebem”, questiona Claudio Luiz dos Santos, defensor da Defensoria Pública da União que coordena um grupo de trabalho sobre catadores e catadoras.
“É um grupo que reconhecidamente presta um serviço de natureza pública. Embora muitas vezes precisem de ajuda em questões administrativas, eles têm expertise na coleta, conhecem a minúcia desse processo”, afirma o defensor.
“As pessoas não valorizam, é tratado como se fosse a obrigação. É tratado como caridade: ‘estou te dando, você vai vender e o que vier é lucro’”, diz Lira. “No entanto, se não fosse o catador, essa empresa teria que pagar.”
“Apesar de prestarem um serviço público, há toda uma negação da sua importância, que vem não só do Estado, mas da sociedade”, diz Fernanda Lira. “Eles sofrem preconceito, são estigmatizados e excluídos. A informalidade gera uma dificuldade de acesso a direitos trabalhistas, ao reconhecimento pela administração pública e se torna mais grave quando se consideram as condições de risco para a saúde”, afirma.
O carroceiro Rubens Cesário Gomez, 58, que vem de Osasco para São Paulo todos os dias há 14 anos, já cortou as mãos centenas de vez e, para evitar ficar doente, não trabalha em dias de chuva. “Quando chove não dá para trabalhar. Se eu ficar doente não dá nem para comprar remédio”, diz ele.
É interpelado por João Edinaldo Simões, outro carroceiro. “E você não come em dia de chuva, não? Esse aí tá bem, pode se dar ao luxo de não trabalhar quando chove”, brinca.
O Ministério do Trabalho considera a atividade como insalubre em grau máximo, já que eles estão submetidos ao calor, à umidade, aos ruídos, à chuva, ao risco de quedas, atropelamentos, cortes, ao contato com ratos e moscas, à sobrecarga por levantamento de peso e a contaminações por materiais biológicos.
João diz que a maior dificuldade no trabalho, no entanto, é a discriminação. “Muitas pessoas tratam mal, têm preconceito. Acho que tudo é lixo, que a gente é lixo. Mas na verdade isso aqui (e aponta para uma carroça cheia) é mercadoria, e o que estamos fazendo é ajudar a limpar a cidade”, diz ele.
“Meu maior medo é ser atropelado na rua. Outro dia um motorista me deu uma pancada”, diz Rubens.
Os trabalhadores são mais organizados no sudeste, de acordo o último relatório do Ipea sobre a situação social dos catadores. Cerca de 49% dos empreendimentos de economia solidária no setor de reciclagem ficam nessa região. A média de idade é de 39 anos e a maioria (66%) é de negros. As mulheres são 31% do setor, aponta o Ipea.
Mas a pesquisadora Fernanda Lira diz que a porcentagem na verdade é bem maior. “Nos censos, elas dizem que o catador é o marido, o filho, mas, na prática, elas também fazem o trabalho”, afirma.
“São as verdadeiras guerreiras, têm que fazer dupla jornada, vários papéis”, diz a catadora Valquiria Candido da Silva, 43, que tem quatro filhos. “Os homens querem ganhar mais, acham que são mais fortes. Mas as mulheres fazem os mesmos trabalhos, sem reclamar”, diz ela, que trabalha na cooperativa Cooperpac, no Grajaú, zona sul de São Paulo.
Fonte: BBC Brasil / Letícia Mori
Fotos: Letícia Mori
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