O governo acabou. Agora é preciso denunciar o impeachment e apontar opções e erros cometidos pelo PT
Pronto. A Câmara consumou o golpe paraguaio ou hondurenho, a depender do gosto do distinto freguês.
Não mais tanques e tropas em torno do Palácio, mas um cipoal confuso de acusações à mandatária, embasado em flexíveis leituras da Constituição. Não mais “vivandeiras alvoroçadas que vão aos bivaques bulir com os granadeiros e provocar extravagâncias do Poder Militar”, como dizia o ex-ditador Humberto Castello Branco (1897-1967). Vivandeiras preferem agora bulir com financistas e juízes, tudo sob manto legal e afiançado por “renomados juristas”, a categoria da hora.
Embora o processo siga para o Senado, a sorte está lançada: o governo Dilma acabou. Melhor: chegam a termo 14 anos de lulismo. Temos em Palácio uma presidente que já não dirige o País.
O governo será – em poucas semanas – tomado de assalto pelo que há de mais apodrecido e corrupto na política brasileira. Setores sem voto e sem qualquer condição de alcançar o poder pela escolha popular se aboletarão no Planalto, na esplanada e nas estatais e darão prosseguimento a uma versão hard da cartilha que Dilma Rousseff já vinha adotando desde que jogou no lixo suas promessas e entrou de cabeça no programa do adversário de 2014.
É preciso denunciar o golpe para avançar. Tão real quanto essa assertiva, é forçoso dizer: sem apontar opções e erros cometidos, não se avançará. Não se trata de ir atrás de culpados, mas de saber que a responsabilidade pelos 7 a 1 não é dos alemães, mas de nosso próprio time.
O PT construiu, ao longo dos últimos 14 anos, um mito. O de que é possível mudar o Brasil sem conflitos ou rupturas.
Durante um tempo de crescimento econômico – por fatores externos – essa senda pareceu exequível. Em tempos de retração, não mais.
Austeridade
Não haverá mudanças de rumo num governo Michel Temer. Elas serão de ritmo e de intensidade. Nas condições atuais, isso fará grande diferença.
O que era o programa de Aécio, que Dilma escolheu para governar? Em rápidas palavras, fazia uma leitura de que os crescentes déficits orçamentários teriam de ser solucionados com um tratamento de choque. Haveria um descontrole inflacionário e a receita teria de ser uma trombada ortodoxa. Isso implicaria realismo tarifário nos preços administrados, austeridade orçamentária, elevação dos juros e toda a bula de manual neoclássico.
O ajuste deflagrado no início de 2015 implicou cortes de investimentos e custeio, retirada de direitos trabalhistas, encarecimento do crédito e tesouradas do orçamento público.
O receituário, ao contrário do que se divulga, obteve êxito espetacular. Nunca foi propósito do ajuste promover desenvolvimento ou coisa que o valha.
Através dele, realinhou-se o câmbio, reduziu-se a atividade econômica, derrubou-se o PIB, privatizou-se mais de vinte estatais – em especial do setor elétrico – aumentou-se o desemprego (era uma das molas mestras para se reduzir salários) e agravaram-se conflitos sociais. Tudo era perfeitamente previsível, ainda mais em meio à maior crise capitalista planetária das últimas oito décadas.
Curiosamente, cumpria-se ali a máxima neoliberal: não há alternativas. Situação e oposição têm o mesmo diagnóstico e remédio. Ou, no senso comum lulista, todos podem se sentar em torno de uma mesa e chegar a um consenso sobre o melhor para o País.
Há um problema nesse raciocínio: ele pode ser executado, mas não pode ser dito. Durante a eleição, tornou-se para a campanha petista o programa que não ousa dizer o nome, para usar a terminologia de Oscar Wilde para o amor entre homens.
Aécio e Dilma tinham em mente o mesmo ajuste. Ele anunciava como medidas salvacionistas. Ela execrou tal possibilidade.
E ganhou.
Estelionato eleitoral
Talvez ainda demore para cair a ficha dos petistas sobre a imensa gravidade daquilo que ficou popularizado como “estelionato eleitoral”. Avaliam – penso eu – tratar-se de um problema, mas não tanto, pois FHC fez o mesmo em 1998. Prometeu estabilidade e, logo após tomar posse, houve fuga de capitais, crise cambial e elevação da Selic a 44,95%, em março de 1999.
O tucano colheu alta taxa de rejeição em todo o seu segundo mandato e perdeu a eleição de 2002. Como havia uma força política que se consolidava como nova organizadora do sistema – o PT – a institucionalidade não foi abalada.
Ou seja, a agremiação de Lula começava a cumprir o papel de novo vetor de ordenamento político, em torno do qual as disputas se articulavam. Papel análogo foi cumprido pelo PMDB na segunda metade dos anos 1980 e pelo PSDB na década seguinte.
Nas eleições de 2014, o quadro era outro.
Um ano e meio antes, o Brasil fora convulsionado por espetaculares mobilizações. Sem compreender o mal estar social que se desenhava, as respostas oficiais foram insuficientes. Mas elas expressavam nas ruas um embate entre direita e esquerda, que viria à luz mais tarde.
Em 2014, tivemos as mais disputadas e politizadas eleições presidenciais desde 1989, quando Lula e Fernando Collor terçaram armas em rede nacional. Na refrega que levou Dilma Rousseff ao seu segundo mandato, o diferencial foi em cima da independência do Banco Central, do comportamento da grande mídia e do repúdio ao ajuste e à perda de direitos. Algo raro em termos mundiais!
Com um fator adicional: o enfrentamento se deu sem que houvesse um novo vetor organizador à vista. Para todos os efeitos, o PT seguiria cumprindo tal papel.
A história a seguir é conhecida. Três dias após o fechamento das urnas, o BC eleva a taxa de juros – contrariando o discurso desenvolvimentista de campanha – vários personagens ligados à direita foram indicados para o ministério, medidas drásticas foram anunciadas na economia e a popularidade da mandatária desabou logo nos primeiros meses.
O eleitorado sentiu que havia sido logrado. Sentiu na conta de luz, no preço da gasolina, no aumento do desemprego e na queda da renda. E sequer recebeu explicação plausível para tão surpreendente guinada.
O estelionato equivaleu a um torpedo disparado contra o principal pilar da democracia: a legitimidade do voto. O eleitor escolhe a partir de uma expectativa, lastreada em pregação dos candidatos. Quando se rompe a conexão entre voto e ação concreta, qual o valor das eleições?
A ação petista desqualificou não apenas sua gestão, mas a própria prática democrática. E erodiu balizas de funcionamento da institucionalidade. Se a escolha popular nada vale, pode tudo, vale tudo.
O avanço da direita
Ao voltar-se contra as bases sociais históricas do PT e perder seu apoio, Dilma aos poucos passou a ser uma presidente de rarefeita legitimidade popular. Ali pela metade de 2015, podia-se perguntar “Afinal, quem a presidente representa?”.
As respostas são desencontradas. A tábua de salvação passou a ser alegar os 54,5 milhões de votos.
Mas o número atesta uma situação específica do dia 27 de outubro de 2014. Garante a legalidade do mandato, mas não expressa um processo de perda objetiva de apoio.
É justamente esse ponto, o da perda de apoios, que abre espaço para a direita.
As forças conservadoras não mudaram. Seguem elitistas, excludentes e antidemocráticas como sempre foram. Mas ficaram contidas por mais de uma década diante da altíssima legitimidade dos ex-presidente Lula (2003-20010) e de Dima Rousseff em seu governo inicial (2011-2014). Isso garantiu que um pacto de convivência, estabelecido em 2002, fosse mantido.
Ao perceber que o muro de contenção, materializado por sua representatividade social, fora implodido pela própria mandatária e que a prática democrática fora enfraquecida, a direita avançou em toda a linha, seja no Congresso, seja na mídia e nas ruas.
Dilma aplica o programa da direita, mas não é totalmente confiável à direita. Ela pode entregar o pré-sal, formular a Lei Antiterrorismo, sancionar a lei da mordaça contra a esquerda nas eleições, pode privatizar, financeirizar etc., mas não basta.
Dois problemas apareceram.
O primeiro é a profundidade da crise. Com o fim do superciclo das commodities, não há mais excedente a ser distribuído. Acabou o ganha-ganha para ricos e pobres e é necessário preservar os interesses dos de cima. Isso está sendo feito via recessão e desemprego.
Sendo mais claro, acabou o pacto estabelecido em 2002, entre o PT e as classes dominantes. A Carta aos Brasileiros, em síntese dizia: podem governar, desde que não toquem em nada do que é essencial. Assim, preservou-se a política econômica de FHC, não se mexeu na Lei de Anistia, nos monopólios da mídia, na propriedade da terra e os ganhos do topo da pirâmide social ficaram intocados.
O segundo é que agora, para concretizar tais ganhos, é essencial reprimir os de baixo. E isso, até agora, o governo Dilma não fez, até mesmo pelas ligações históricas do PT com o movimento popular.
Numa situação de agudização da luta de classes, enfrentar esses setores é imprescindível. É urgente seguir o exemplo dos estados de São Paulo, Paraná e Goiás – governados pelo PSDB -, onde um Estado de exceção informal já vigora.
O golpe
É nesse quadro que aparece o atalho do impeachment para dar o golpe que não ousa dizer o nome. É bulindo com juízes carreiristas, instrumentalizando a Polícia Federal – diante da omissão governamental – e usando à larga os meios de comunicação (financiados e prestigiados pela administração federal) que se chega ao resultado de 367 a 137 na Câmara.
O golpe não veio de fora da coalizão governamental, mas de seu interior. Não foi um embate clássico situação versus oposição, mas a expressão clara do esgotamento do pacto. Não foi um golpe em uma noite de verão. Foi meticulosamente construído pelos dois lados.
A noite de 17 de abril de 2016 entrará para a história como uma infâmia. O rebotalho da política esganiçou-se ao microfone para agradecer à Deus, à família (e à propriedade, poderíamos dizer) e chancelou um tapetão institucional na democracia brasileira.
O problema desta não é o fato de ser jovem e tenra. É o fato de ser uma democracia de classe, num país de abissais diferenças sociais. Por isso ela é instável.
Desobediência
Resta aos democratas a denúncia, a rebelião, a desobediência civil e a luta. E a necessidade premente de se reconstituir não apenas a esquerda, mas um novo vetor progressista.
A grande novidade foi a constatação de que existe uma esquerda de massas viva e pujante. Talvez as frentes surgidas nessa guerra – A Povo Sem Medo e a Brasil Popular – sejam embriões de um novo polo organizativo.
Não nos iludamos: o governo Temer terá imensas dificuldades para se estabilizar. A crise é profunda. Mesmo usando o discurso da “herança maldita”, brandido pelo PT há mais de uma década, sem melhorar minimamente a vida do povo, sua já escassa legitimidade irá pelo ralo.
Enfim, é hora de lamber feridas.
Mas é urgente examinar os erros e insuficiências desse período. Só assim será possível andar para a frente e não suar numa esteira, na qual tem-se até a ilusão de correr sem sair do lugar.
*Gilberto Maringoni é professor de Relações Internacionais da UFABC e foi candidato a governador (PSOL-SP), em 2014
Fonte: Carta Capital
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