Qual a centralidade da informalidade para a história econômica recente do Brasil? Por que a informalidade aumenta tanto em momentos de crise? Há saída para o problema? Foi com o objetivo de responder essas perguntas que conversamos com o economista Gustavo Zullo, doutorando em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Segundo Zullo, “o mercado de trabalho brasileiro nunca teve uma baixa taxa de informalidade”. No Brasil, a informalidade seria tão ampla e persistente que também impacta na média salarial do mercado de trabalho formal: o “excedente de mão de obra que exerce pressão tanto sobre o setor formal quanto sobre o setor informal permite aos patrões oferecerem salários baixos para o conjunto dos trabalhadores”. Mesmo no período áureo da industrialização, em que chegamos a crescer mais de 10% ao ano, a economia brasileira não se homogeneizou nem criou condições para um avanço social substantivo.
Segundo Zullo,“o êxodo rural de meados do século passado foi fundamental para que a redução da heterogeneidade social fosse reduzida apenas muito lentamente sem que este mesmo processo apontasse para um horizonte livre da informalidade”. Após um período de altos níveis de desemprego nos anos 1990, recentemente o Brasil parecia ter encontrado a rota para o crescimento econômico com homogeneização social. Todavia, a crise econômica atual explicitou os profundos limites do modelo econômico petista e colocou em questão problemas históricos que não foram superados.
Uma explicação para a situação dramática que a sociedade brasileira enfrenta atualmente é oferecida pelo economista. Apesar de reconhecer os avanços inegáveis obtidos no período 2005-2014, ele pondera que a relativa homogenização não veio acompanhada de mudanças profundas das estruturas urbano-industrial e agromercantil do país — em outras palavras, Zullo destaca os limites de um processo de melhorias sociais em meio a avanço da desindustrialização e da especialização regressiva. As melhorias teriam sido sustentadas por um crescimento econômico puxado “por um contexto internacional favorável, visto que o mercado mundial, puxado pela China, inaugurou um ciclo de elevação dos preços das commodities, que corresponde às exportações nas quais o país vem se especializando há algumas décadas”.
Esse modelo de desenvolvimento também provocou impactos sociais negativos, com repercussões sobre o mercado de trabalho: “Este último ciclo expansivo da economia brasileira foi marcado por um avanço da fronteira agrícola, inclusive sobre terras quilombolas, tribos indígenas, populações ribeirinhas, camponeses, etc. sem que o encadeamento urbano-industrial fosse retomado. Todos estes grupos foram obrigados a migrar para outras áreas — o que ainda promove, apesar de parecer fora de moda dizê-lo, um fluxo migratório que pressiona as condições de salário, de trabalho e de vida nas cidades de menor porte, onde a abertura de vagas é menor e também porque nessas áreas não havia uma população excedente como há hoje — ou seja, a realidade das pequenas e médias cidades piorou em compasso com os grandes centros urbanos do país, onde a segregação social exacerbada conduz a um aumento da violência”.
O contexto internacional desfavorável realçaria a insustentabilidade desse estilo de desenvolvimento dependente, o que trouxe à tona velhos problemas que ficaram mitigados no período recente. O economista defende que o caminho para enfrentar os problemas da informalidade e do desemprego, que seriam expressões da segregação social, passa por medidas que procurem alterar a heterogeneidade estrutural da economia e da sociedade brasileira. Estas variam desde programas focalizados, como um PRONAF “reformado e direcionado, de fato, à agricultura familiar”, até medidas mais profundas, como a reforma agrária e a construção de políticas que construam, de fato, um Estado de bem-estar social no Brasil. “Obviamente, tudo isso é muito difícil de se implementar sem uma pressão popular muito forte”. Leia a entrevista na íntegra:
Alisson Carvalho: A grande parcela da população brasileira ocupada em empregos informais se justifica por sermos ainda um país subdesenvolvido?
Gustavo Zullo: Em parte, o que nos define enquanto subdesenvolvidos é justamente uma elevada participação de ocupações de baixa produtividade do trabalho, que na literatura econômica brasileira são geralmente identificadas como empregos informais. De outro modo, poderíamos afirmar que os países subdesenvolvidos são caracterizados por aquilo que se denomina na literatura econômica como heterogeneidade estrutural, que, sinteticamente, pode ser descrito como a articulação entre três estruturas heterogêneas, que são as estruturas produtiva, social e regional. Estas estruturas interagem entre si e formam uma dinâmica que, desde que seja preservada, como parece ser o caso da grande maioria dos países subdesenvolvidos, tendem a preservar ou mesmo aprofundar estas mesmas heterogeneidades. Ou seja, um país como o Brasil, que possui tanto setores produtivos de elevada intensidade em capital, que se expressa sobretudo nas cadeias de gás e petróleo que até bem pouco tempo eram puxados pelo desenvolvimento tecnológico da Petrobrás, é caracterizado também pela existência de carvoeiros, de um sem-número de empregadas domésticas e trabalhadores da construção civil que não têm acesso a instrumentos e ferramentas modernas que lhes atenuaria o esforço físico ao mesmo tempo em que lhes traria ganhos de produtividade, etc. Em suma, reverter ou mesmo mitigar essa heterogeneidade produtiva e social não é tarefa simples. Não é um problema apenas conjuntural, que surge apenas em crises econômicas, como tende a ser em países que contam com uma estrutura produtiva mais homogênea e que avançaram em seus processos civilizatórios, reduzindo os abusos das camadas sociais dominantes. Nos países subdesenvolvidos, como o Brasil, os empregos informais não apenas ocupam uma parcela muito grande da população ocupada como também apresentam uma resiliência muito grande. O mercado de trabalho brasileiro, por exemplo, nunca teve uma baixa taxa de informalidade. Há um grande excedente estrutural de mão de obra persistente que não foi e nem será superado apenas pelo crescimento econômico. Há a necessidade de um esforço de desenvolvimento nacional tal como pregava Furtado, portanto.
AC: Mas no século XX tivemos um período vigoroso de crescimento econômico acompanhado de industrialização, de cerca de 50 anos. Que elemento nesse período fez com que nossa economia não fosse capaz de absorver a maior parte da população em ocupações de maior produtividade?
GZ: Esta é uma questão complexa que exige que retomemos alguns aspectos importantes da trajetória do desenvolvimento econômico no Brasil. E para tanto, é importante salientar a articulação entre a dinâmica industrial e a empresa agromercantil — de outro modo, o agronegócio. O que se pretende responder num primeiro momento, portanto, é por que a industrialização no Brasil, apesar de ter sido um dos processos mais dinâmicos e intensos em todo o mundo em meados do século passado, não permitiu uma redução mais significativa da participação dos trabalhadores de baixa produtividade. Há que se destacar que as atividades de baixa produtividade do trabalho que caracterizam a grande maioria das ocupações informais e das atividades econômicas praticadas por trabalhadores autônomos sempre representaram uma elevada parcela da estrutura ocupacional brasileira, sobretudo nas atividades agrícolas, onde o nível tradicional de vida e de relações sociais apresentou maior resistência. Mesmo com o avanço da industrialização até o início dos anos 1980, quando alguns investimentos iniciados no final da década passada foram finalizados, a proporção de trabalhadores contemplados pela legislação trabalhista esteva longe de ser satisfatório. Afinal, não só a expansão industrial e das demais atividades não-agrícolas deixaram na informalidade uma parcela significativa da população urbana como também, é importante lembrar, a maioria da população rural ainda vivia e vive da subsistência, condição sujeita a arbitrariedades e violências do pior tipo, sobretudo nas zonas de expansão da fronteira agrícola — além disso, as condições de trabalho e remuneração dos trabalhares agrícolas ocupados como funcionários de fazendeiros, havendo inclusive relações de trabalho disfarçadas sob a capa do conta própria, tende a ser muito ruim. Em suma, o que ocorreu foi que ao longo de todo o século XX, mas sobretudo nas décadas de 1950, 1960 e 1970, a expansão da fronteira agrícola, necessária para a captação das divisas em um país onde a indústria não se transformou em uma poderosa plataforma de exportações, expulsou milhões de trabalhadores para as cidades, onde tendiam a ser empregados nas posições ocupacionais mais baixas, o que concorreu para preservar uma taxa salarial bastante baixa nas atividades não-agrícolas que não são valorizadas socialmente. Ou seja, a expulsão de trabalhadores agrícolas para os centros urbanos esteve intimamente articulado à preservação de uma levada participação de trabalhadores informais. O êxodo rural de meados do século passado foi fundamental, portanto, para que a redução da heterogeneidade social fosse reduzida apenas muito lentamente sem que este mesmo processo apontasse para um horizonte livre da informalidade, dado que, por mais que a participação relativa dos informais se reduzisse, a sua extinção se tornava mais árdua, visto que o número absoluto de trabalhadores informais crescia continuamente.
AC: Com a crise da dívida e a necessidade de pôr fim ao processo inflacionário que se aguçou com a crise, os termos do desenvolvimento econômico brasileiro mudaram radicalmente. Como isso impactou no mercado de trabalho?
GZ: A partir daí, constrangida por uma nova divisão internacional do trabalho que seguia a afirmação da hegemonia norte-americana, a indústria brasileira passou por um processo grave de obsoletização, o que nada mais foi do que não ter acompanhado a modernização trazida pela Terceira Revolução Industrial, que era incorporada na Europa, nos EUA e na Ásia, que passava a absorver investimentos produtivos que antes eram realizados na América Latina. Enquanto as economias asiáticas, lideradas pelo Japão, cresciam de modo acelerado como um bloco financeira e industrialmente coeso, as principais economias latino-americanas foram preteridas como espaço de valorização e acumulação de capital das grandes empresas. Mas não fosse isso bastante, a População Economicamente Ativa (PEA) continuou a se expandir, o que significou uma maior pressão sobre os trabalhadores na medida em que o crescimento do produto se tornou, ao longo dos anos 1980 e 1990, baixo e oscilante. Se em um primeiro momento a informalidade cresceu perigosamente, sob o contexto dos planos Collor e, sobretudo, do Real, o desemprego cresceu escandalosamente sem uma redução significativa da informalidade, o que elevou os índices de miséria, de violência urbana e rural, etc. Em suma, o avanço do neoliberalismo no Brasil exacerbou o caos social em um país de passado escravista e que nunca primou pela civilidade.
AC: A evolução socioeconômica é geralmente avaliada como positiva nos primeiros quinze anos do século XXI. Como você avalia essa conjuntura?
GZ: Este quadro de maior desespero foi, de fato, interrompido em meados dos anos 2000, quando o crescimento econômico foi acompanhado de algumas políticas públicas importantes, como a valorização real do salário mínimo e o aumento do valor pago à pensão agrícola. Além disso, o crescimento trouxe um aumento na taxa de formalização, o que evidencia, acima de tudo, que foram criadas melhores condições de inserção profissional. Todavia, são necessárias algumas ponderações. Essas melhoras foram sustentadas por um contexto internacional favorável, visto que o mercado mundial, puxado pela China, inaugurou um ciclo de elevação dos preços das commodities, que corresponde às exportações nas quais o país vem se especializando há algumas décadas já. Ou seja, essa melhora econômica e social não se deveu a uma melhora da estrutura industrial e agromercantil. Pelo contrário. Este último ciclo expansivo da economia brasileira foi marcado por um avanço da fronteira agrícola, inclusive sobre terras quilombolas, tribos indígenas, populações ribeirinhas, camponeses, etc. sem que o encadeamento urbano-industrial fosse retomado. Todos estes grupos foram obrigados a migrar para outras áreas — o que ainda promove, apesar de parecer fora de moda dizê-lo, um fluxo migratório que pressiona as condições de salário, de trabalho e de vida nas cidades de menor porte, onde a abertura de vagas é menor e também porque nessas áreas não havia uma população excedente como há hoje — ou seja, a realidade das pequenas e médias cidades piorou em compasso com os grandes centros urbanos do país, onde a segregação social exacerbada conduz a um aumento da violência. Embora alguns indicadores mostrem melhoras que de fato ocorreram, elas devem ser comemorados com cuidado, sobretudo pelas debilidades da economia brasileira, que importa cada vez mais insumos produtivos, sobretudo dos insumos intensivos em tecnologia. Essas características todas elevam o impacto das conjunturas internacionais recessivas sobre a economia e sobre a sociedade brasileiras, como é o caso atual. Tanto é que as conquistadas asseguradas gradualmente nesses últimos tempos foram, em boa medida, revertidas em apenas dois anos.
AC: É possível estabelecer algum tipo de relação entre o mercado de trabalho formal e o informal?
GZ: Uma questão polêmica entre os estudiosos do tema é se é o mercado de trabalho formal que impacta no nível dos salários do mercado informal ou o contrário. Eu defendo, junto a autores como Chico de Oliveira e Celso Furtado, que é o mercado de trabalho informal que implica as determinações mais decisivas sobre a taxa de salários da economia. Como nossa estrutura produtiva e regional continua heterogênea — e mais que isso, nossa estrutura produtiva se desindustrializa ao mesmo tempo em que passa por uma especialização regressiva — parte significativa das novas ocupações geradas ainda se dá em atividades informais. No meu modo de ver, essa constatação reforça as interpretações de que parte da cesta de bens dos trabalhadores formais ocupados nas piores posições, que são as que oferecem menor remuneração, continua a abastecer parcela importante de sua renda no setor informal, onde os preços tendem a ser mais baixos muito em função da concorrência entre os serviços, e menos pelo barateamento que a industrialização permite. De tal modo, entende-se que esse modelo de crescimento ocasiona uma pressão baixista sobre o nível geral dos salários. Além disso, existe uma pressão enorme dos trabalhadores ora ocupados no setor informal sobre as vagas abertas no setor formal, o que ocorre pela própria dinâmica de oferta e procura de força de trabalho de atividades que exigem pouca qualificação escolar. Ou seja, excedente de mão de obra que exerce pressão tanto sobre o setor formal quanto sobre o setor informal permite aos patrões oferecerem salários baixos para o conjunto dos trabalhadores, sejam eles formais ou informais.
AC: Quais medidas deveriam ser adotadas para acabar/atacar o problema da informalidade?
GZ: São várias as medidas que poderiam ser tomadas. Primeiro, a reforma agrária. Em segundo lugar, o PRONAF poderia ser reformado e direcionado, de fato, à agricultura familiar, o que reduziria os impactos sociais negativos sobre os pequenos e médios centros urbanos — além, é claro, de proporcionar uma vida digna à população camponesa brasileira e também porque elevaria os graus de autonomia sobre o abastecimento alimentar do país. Nesse mesmo sentido, seria interessante combater o oligopólio varejista, dado que a alimentação no país é muito cara e remunera mal a agricultora familiar. Além disso, o Estado poderia desenvolver a seguridade social, o que por si só geraria muitos empregos formais. Além disso, os investimentos sociais, como seria o caso da construção de hospitais e o fornecimento de todos os equipamentos, poderia exigir um conteúdo nacional mínimo, tal como já ocorre — ocorria — na Petrobrás, onde se exige(ia) que 65% das encomendas da empresa sejam (fossem) produzidas no país. Seguramente, o potencial econômico e social é enorme, inclusive porque seria estimulado o desenvolvimento de tecnologias hoje inexistentes no país. Obviamente, tudo isso é muito difícil de se implementar sem uma pressão popular muito forte, que promoveria não apenas o desenvolvimento social e regional — desde que essas políticas atuem em todo o território e, preferencialmente, de modo a corrigir as históricas distorções regionais do país — como também um desenvolvimento econômico mais autônomo. De tal modo, o que proponho é a formação de a ampliação de um Estado de bem-estar social robusto que avance sobre a seguridade social que, apesar de heróica, ainda é pequena para as necessidades e potencialidades do país.
Fonte: Olhar de Classe
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