Por Pedro Otoni
As eleições municipais brasileiras são um amplo movimento de massas que aciona lideranças locais nos 5570 municípios do país. No último pleito, em 2016, foram registradas pela Justiça Eleitoral 16.565 candidaturas para prefeito e 450.697 para vereador. Com quase 500 mil candidaturas, este processo mobiliza milhões de pessoas direta e indiretamente ligadas às campanhas, desde aquelas altamente profissionais até aquelas que se resumem ao apoio familiar do candidato ou da candidata.
A disputa municipal expressa, de maneira mais precisa, o Brasil realmente existente, quando pensado a partir do território, o espaço de vida concreto das pessoas. E é aí que se encontra o desafio representado pelas próximas eleições municipais: o Brasil realmente existente.
Proponho analisar neste artigo a relevância das eleições municipais de 2020 para a consolidação de posições do projeto autoritário no Brasil, no nível local. A hipótese que apresento é que haverá uma mobilização das base locais do bolsonarismo para a disputa eleitoral em 2020, e que este processo poderá contribuir para o fortalecimento do projeto autoritário em curso na medida que lideranças locais reacionárias eleitas terão os recursos políticos e financeiros provenientes dos gabinetes para garantir a ligação entre o projeto das lideranças nacionais e as expectativas da base da pirâmide reacionária. Caso aconteça, esse processo no nível municipal daria início a um novo período da disputa política no Brasil, muito mais violento do que o apresentado atualmente.
As eleições de outubro de 2019 para os Conselhos Tutelares, que realizam o acompanhamento dos direitos da criança e do adolescente, foram um pequeno ensaio do que pode acontecer em um cenário de disputa territorializado em um contexto de fim dos arranjos políticos da Nova República, de crise institucional e dos valores perseguidos pela Constituição de 1988. Foram aproximadamente 30 mil conselheiros eleitos para os quase 6 mil conselhos instalados pelo país. Setores mais conservadores do neopentecostalismo atuaram de maneira articulada para realizar a conquista destes mandatos, se opondo à presença relativamente grande dos católicos.
A disputa contou com a orientação das cúpulas religiosas em uma polarização que perpassou a política, a religião e os valores. A título de exemplo, a Igreja Universal declarou em documento intitulado “Conselho Tutelar: é nosso dever participar” publicado em seu site, que “é importante ter pessoas com valores e princípios e que, acima de tudo, tenham compromisso com Deus” como conselheiros e conclamou seus discípulos a participarem destas eleições.
Uma grande quantidade de pastores, ligados à base de apoio de Jair Bolsonaro, disputaram as eleições dos conselhos com uma proposta que está em conflito com os princípios estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A disciplina dos fiéis das igrejas neopentecostais, associada à sua capilaridade nos bairros e o voto facultativo, garantiu que os 30% de evangélicos no país conquistassem um peso, em termos de mandatos, muito maior que sua presença populacional. Neste caso, destaco a noção de capilaridade territorial e disciplina, e não necessariamente recursos financeiros, como fatores determinantes do crescimento dos neopentecostais nos conselhos tutelares.
A implicação prática é que existirá uma fração grande de conselheiros tutelares com o poder efetivo conferido pelo mandato e liberação econômica resultado da remuneração que dispõe do Conselho para executarem uma agenda sobre a infância e adolescência ligada a denominações religiosas e não ao estatuto jurídico nacional.
No quadro atual, ao examinarmos as eleições municipais de 2012, 2016 e os fenômenos eleitorais de 2018, é possível estabelecer algumas hipóteses minimamente sólidas para 2020, que apresento de maneira sintética a seguir.
O contexto aberto em 2018 amplia a viabilidade de candidaturas de caráter ultraconservador. Lideranças locais, pautadas pelo afeto ao projeto do presidente, serão beneficiadas pelo enfraquecimento eleitoral dos partidos da direita tradicional, podendo vir a garantir volume significativo de vereadores e prefeitos.
Serão eleitos 57.941 vereadores nas eleições municipais neste ano, isso significa o mesmo número de gabinetes, parcela destes dispondo de assessores alinhados às causas do mandato. Este aspecto não é desprezível, serão milhares de pessoas remuneradas para conduzirem a agenda não apenas legislativa, mas também ideológica e operacional do parlamentar.
Tudo leva a crer que os setores de extrema-direita alinhados ideologicamente ao presidente irão disputar de maneira contundente os municípios e transformá-los em trincheiras de sua posição. Será uma maneira de garantir materialmente a vanguarda reacionária, além de permitir fontes de poder efetivo para disputar as comunidades, ou seja, ganhar um terreno concreto de reprodução política, o território.
Entendo que se este quadro se consolidar – ou seja, se a base social que apoia Bolsonaro se expressar em vereadores e prefeitos eleitos – a extrema-direita no Brasil pode se tornar uma força condicionante da vida pública brasileira para além do próprio governo Bolsonaro. O que a impede, por ora, é sua baixa capacidade organizativa e de gestão dos interesses singulares do seu interior, mas isso pode ser remediado e aprendido com o tempo, o que a transformaria em uma perigo ainda maior para o país e para o povo.
Como afirma Isabela Kalil, antropóloga que tem publicado excelentes estudos sobre o bolsonarismo, o presidente e o seu projeto não possuem a preocupação com uma narrativa que defenda a ideia de “um governo para todos”, e sim que governa para uma parte da população e combate aquela fração, no caso majoritária, que não o apoia. Este método tem a capacidade de determinar de maneira profunda a conduta de uma fração minoritária do povo, de maneira considerável e coesa.
Se as pesquisas de satisfação em relação ao governo corresponderem a realidade, estamos falando de um universo entre 20% e 30% da população que se mantêm na sustentação de Bolsonaro. É uma base social suficiente para eleger uma imensa quantidade de vereadores e prefeitos em 2020, talvez maior do que qualquer outra legenda partidária. Significa potencialmente, a grosso modo, alcançar mais de 10.000 vereadores em 2020 e uma parte considerável de prefeitos em estados em que o presidente conta com apoio superior a 20% do eleitorado, ou seja, todos os estados do Sul, Sudeste e Centro-Oeste.
Não há dúvida que a extrema-direita utilizará os gabinetes como posto de uma guerra de posição contra os partidos progressistas e a própria direita tradicional. Ao que parece, seus partidários não descartarão a violência aberta, de natureza miliciana( como acontece, em especial, no estado do Rio de Janeiro) – transformando cada um dos seus gabinete em um núcleo orgânico do projeto autoritário.
As Câmaras Municipais e as prefeituras são a nova fronteira da extrema-direita no Brasil. Porém a ascensão desta força política nos municípios está associada a recursos escassos em disputa e a interesses econômicos concretos. A ideologia importa, mas não é suficiente para explicar este fenômeno político.
O modelo de gabinete parlamentar da extrema-direita no Rio de Janeiro parece ser uma referência para o resto do país. Lá, os gabinetes são componentes de um complexo de circuitos de interesses e iniciativas que articulam o mercado da fé, o domínio miliciano de territórios e dos fluxos econômicos legais e ilegais tais como: a especulação imobiliária, tráfico de drogas e armas, monopólio sobre serviços clandestinos como transporte, sinal de internet, tv a cabo e distribuição de gás. A ideologia autoritária é assumida por colaborar com a realização concreta destes múltiplos interesses, que são articulados hierarquicamente, desde o bairro até o mercado financeiro.
O gabinete municipal de vereador e a prefeitura tem a capacidade de intervir na disputa sobre a gestão do espaço urbano, lugar concreto da luta entre classes e frações de classes, e de diferentes tipos de negócios. É nesta capacidade que a extrema-direita está interessada.
O setor engajado da extrema-direita é um componente heterogêneo de interesses, que reúne lideranças religiosas, milicianos, o crime organizado, grandes setores das forças policiais, máfias, empresariado e uma massa de pessoas frustradas, dedicadas a encontrar algum sentido para a vida. Os gabinetes podem verticalizar lideranças que reúnam e vocalizam estes diferentes interesses. Há um alto risco destes gabinetes se tornarem a expressão orgânica da extrema-direita: uma célula ativa do fascismo.
Se as candidaturas de extrema-direita, em 2020, tiverem desempenho eleitoral aproximado daquelas de 2018, lograrão uma capilaridade grande e um contato social e territorial estratégico. Sairão fortalecidas com milhares de gabinetes de vereadores e centenas de prefeituras. Diferente de qualquer outra força política relevante, elas tomarão para si o sentido da revolta social existente e proclamarão a guerra total contra seus inimigos: as organizações do povo. Atuarão de maneira abertamente autoritária e abrirão uma frente de batalha em cada município contras as forças políticas progressistas e os movimentos populares. Uma luta que do legislativo e executivo municipais poderá ser transportada para outros cenários, como os bairros, espaços de trabalho e estudo. Não excluindo a possibilidade de assumirem a violência direta, executada seja pela polícia, seja pela milícia.
Sindicatos, movimento sem-terra, movimento sem-teto, indígenas, quilombolas, estudantes e outras forças vivas de luta por direito no nível local serão escolhidas com inimigas a serem derrotados tanto na dimensão dos direitos como da existência propriamente dita nas eleições de 2020. Esta forma de abordagem tem sido rotineiramente estimulada pelo presidente e seus ministros.
Caso este cenário aconteça de fato, teremos aberta nos próximos anos uma contradição política no país que, de tão profunda, não poderá ser superada com os instrumentos da ordem política e jurídica vigentes. A vitória contra a extrema-direita não será feita sem perdas e sem dor para os que lutam pela democracia, pelos direitos e pela soberania nacional.
O cenário projetado até aqui, intencionalmente, possui contornos apocalípticos, sem, contudo, se distanciar da factualidade, trata-se de hipótese plausível. Seria absurdo não perceber que mesmo com o desgaste do atual governo ele ainda permanece na iniciativa, e as forças populares (partidárias ou sociais) ainda não conseguiram estabelecer formas de condicioná-lo. É preciso, no entanto, afastar a postura fatalista e entender os limites e as contradições do projeto autoritário. Ele realmente não pode tudo.
O governo, mesmo estando na iniciativa, tem perdido apoio social e dificilmente irá recuperá-lo devido à natureza antipopular e recessiva de sua agenda econômica. Isso explica porque Bolsonaro mantêm um discurso radicalizado, procura consolidar uma base social engajada e radicalizada contra o povo, mesmo que minoritária. Seu séquito o acompanhará, independente da catástrofe que produza.
Diante disso, o que parece necessário é construir uma narrativa que vocalize-se como maioria. A maioria formada por descontentes, desempregados e subempregados, dos que perderam direitos, dos que não conseguem se aposentar, dos que viram seus comércios quebrarem, dos que estão devendo até o último centavo que não tem. É preciso um discurso que não seja para todos, mas que seja para a maioria. É preciso descrever os bolsonaristas pelo o que eles realmente são: uma minoria. Assim, produzir um clima social no qual se reduza o moral do campo bolsonarista.
Em uma guerra é necessário evitar o terreno escolhido pelo inimigo. Bolsonaristas escolhem o terreno dos costumes, das declarações insanas e da mentira, seu material de trabalho são os preconceitos incrustados no povo e o universo mágico no qual boa parte das pessoas vivem, este terreno é favorável aos reacionários. Logo, o campo progressista e de esquerda deve recusar a disputa nestes termos, não se trata de defender-se dos ataques, mas desviar-se dos mesmos sempre que possível, os tornando ineficazes. Os reacionários irão atacar com uma avalanche de mentiras, eles esperam que, ao se defender, o campo de esquerda perca a capacidade de disputar.
O ponto fraco do bolsonarismo é a sua condução econômica. A vida concreta do povo piorou, sem emprego, sem poder de compra, sem condições de vida digna. É sobre estas agendas concretas que o programa de disputa no nível local deve se ater. Pautas gerais deverão ser traduzidas para o plano municipal, como as questões do transporte, das obras paradas, da habitação, do saneamento, de algumas tarifas, da saúde e da educação. O fato é que não há milagre possível a ser feito pelos governos locais da maioria das cidades, então é necessário que as eleições denunciem a situação precária dos entes municipais e responsabilize quem a produz ou é conivente com ela.
O elo fraco do projeto autoritário não está no seu conteúdo obscurantista e antidemocrático, mas no seu profundo desprezo pelas condições de vida digna da maioria do povo.
Não se tratará, em 2020, em usar força, recursos e tempo para convencer a base social do bolsonarismo da sua irracionalidade, mas sim derrotá-la, isolando-a dos 80% da população em disputa realmente. Deverá ser a luta entre uma minoria que defende o atraso e uma maioria que quer superar a miséria. Logo, repito, não é realizar um discurso para todos, mas para a maioria.
O fim das coligações proporcionais possivelmente aumentará o número de candidaturas, até mesmo majoritárias. Lançar candidaturas próprias em muitos casos será uma questão de sobrevivência de algumas legendas, inclusive à esquerda. Mas a situação requer que onde não for possível candidaturas unitárias, que se estabelece uma pactuação de alto nível e evite a agressão dentro do campo anti-reacionário.
Os campos em que o bolsonarismo pode expandir eleitoralmente são sobre a direita e o centro, atraindo o eleitorado para posições mais conservadoras. Portanto, não se trata da esquerda se dirigir ao centro, mas o contrário. Logo, a política de aliança deve ser pensada neste diapasão.
Diante da derrota de 2018 foi aberta a polêmica dentro da esquerda: um setor aposta todas as fichas nas eleições de 2020 e 2022 como forma de reverter a correlação de forças frente ao projeto autoritário e neoliberal; outra parte acredita não ser pelas eleições o caminho para mudar a situação e anuncia a prioridade em disputar a “sociedade civil”. Ambas estão equivocadas. Nenhuma estratégia realista é composta unicamente de uma tática. Ter uma estratégia viável implica em estabelecer um consórcio de iniciativas nas dimensões tática e operacional, nas quais cada modal cumpre um papel determinado em uma situação determinada. Fora isso, o que resta é o essencialismo idealista ou o amadorismo político.
A disposição do campo bolsonarista, diretamente subordinado aos interesses imperialistas, é de criar um instrumento político-social condicionador da vida pública do país que obstrua a viabilidade nacional brasileira. Eles têm demonstrado força suficiente, que mesmo governando para uma minoria, pois conseguem, em aliança com o setor financeiro, desenvolver sua agenda antinacional e antipopular. Assim, o bolsonarismo deseja criar uma base social sólida, partindo dos 20% da população que o apoia, para permanecer no jogo político e com o mesmo repertório de aliados, grande mídia, setor financeiro e imperialismo.
Mesmo sua derrota eleitoral não significa sua falência completa, eles não irão aceitar uma derrota, eles não possuem compromissos com “as regras do jogo democrático” e, portanto, se alimentarão da própria derrota eleitoral para continuar existindo. Portanto, as eleições não bastam, mas se o bolsonarismo sair derrotado delas, terá menos postos de poder efetivo (mandatos) para operar sua política, sua capacidade de manter alianças diminui e a correlação de forças pode ser alterada.
A disputa das maiorias do povo, seu engajamento em um programa nacional e popular, é uma frente tática fundamental para condicionar o bolsonarismo nos territórios, mas insuficiente se não expressar-se eleitoralmente, porque é possível um governo antipopular se eleger apoiado em uma minoria e em guerra completa contra a grande massa do povo.
A situação exige a coordenação de esforços em diferentes frentes de trabalho e não a construção de antagonismo simplistas e deslocados do curso real da luta política no país. A chamada “bancada evangélica” é um exemplo precioso da coordenação de esforços por décadas em diferentes terrenos de trabalho: no campo religioso, cultural, financeiro, comunicacional, territorial e político. Eles possuem um peso político maior do que sua presença social no conjunto da população justamente porque usaram o tempo e a combinação de diferentes trabalhos na perspectiva de controlar frações cada vez maiores de poder social e político.
Devemos, portanto, retirar lições da situação atual. O caráter prolongado da luta em defesa do povo e da soberania nacional é uma destas lições. Não alteramos a correlação de forças apostando em apenas uma tática, ou uma única forma de luta. Não há atalhos para a derrota do projeto autoritário e neoliberal, teremos que aprender a valorizar as vitórias e resistir às derrotas táticas. Estarmos abertos para as diferentes expressões de resistências, desde as que conhecemos até aquelas que por algum tempo ficaram esquecidas. Será menos pela força e mais pela habilidade, menos pela velocidade e mais pelo fôlego que alteraremos a correlação de forças.
*Pedro Otoni é mestre em Ciência Política, especialista em Economia Política, bacharel em Direito e colaborador da Fundação Lauro Campos – Marielle Franco.
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