Da consideração da greve como delito à sua transformação em direito fundamental, foram necessários muitos anos e muito sangue derramado até esta conquista pela humanidade. Há, portanto, que se tomar cuidados para que não se promova a involução onde se concebeu um processo evolutivo. Esta é uma tarefa dos intérpretes do direito em geral, e, em especial do STF no Recurso Extraordinário 693456, com repercussão geral.
Não basta introduzir uma cláusula de fundamentalidade ao direito de greve, que isto não o faz por si só assumir esta posição.
No plano jurídico, o exercício jurisprudencial fará com que isto se dê. Somente a efetividade da interpretação da cláusula constitucional concretizará a pretendida evolução na história da humanidade apontada no caminhar da greve. Caso contrário, esta não passa de disposição que já nasceu destinada à própria morte. Um natimorto, na verdade.
Se esta evolução não se completar na interpretação a ser consubstanciada no RE 693456, teremos escancarada a triste realidade: a de que o direito finge emprestar à greve um “status”, que realmente não conseguirá nunca alcançar, já que este não é o seu destino na lógica de acumulação do capital. Ou seja, ficará nítido que a ninguém interessa o destino dos trabalhadores e a muitos incomoda a sua força aglutinadora.
Neste instante, portanto, uma advertência se faz necessária. Irei apelar para que se tenha, neste instante, cuidados institucionais com o a preservação do capitalismo, em especial por aqueles que nele depositam a sua fé. Não estou aqui fazendo ciência, mas apenas pedindo que não se flerte com o precipício. E acabar com o direito de greve – já que é disto que se trata o corte de ponto, assim como discussões sobre possibilidades de demissões de grevistas, por exemplo – é um flerte com o precipício. O fim do direito de greve não significará o fim da greve, que virá cada vez mais contundente, já que a própria legalidade é uma das formas de se evitar o confronto direto. Esta é apenas uma advertência de quem assiste, com cautela, aos fatos e ao seu desenrolar.
Feitas estas colocações gerais, veja-se que a questão pode ser contornada, observados alguns pressupostos jurídicos – com a real atribuição de direito fundamental à greve no serviço público.
Primeiro, ao se falar que a greve atenta contra o interesse público, utilizando-se de um raciocínio “a priori”, confronta-se a noção básica de ponderação em sede de princípios. Assim, todos os casos de greve no país já atentam, desde o seu início, contra o interesse coletivo? A paralisação do serviço público necessariamente já traz, em seu interior, o prejuízo ao interesse coletivo? Esta questão poderia ser facilmente afastada se o pensamento for generalizado no sentido contrário: toda greve no serviço público traz ínsita em si a ideia de melhoria do serviço público, portanto, de começo, está sempre a convergir com o interesse público. Ou ainda, toda greve, que luta por direito constitucional (negado há anos) de reajuste no serviço público, parte sempre de um interesse público, que é a defesa das disposições constitucionais.
Neste plano, meramente ideal, poderia ainda sustentar que os serviços públicos (como justiça, saúde ou previdência, por exemplo) já estão paralisados há muito, na medida em que não atendem aos interesses da coletividade. Assim, qualquer generalização, feita a partir de abstrações, pode levar a efeitos de ambos os lados. Se a ponderação é o que se deseja, não há como se realizá-las a partir de tais idealizações, mas mediá-la, ao máximo, na concretude dos fatos históricos em que estão envoltos no nosso dia-a-dia, enfim. Ou seja, somente a concretude dos fatos pode demandar uma solução. A generalização no sentido do corte imediato dos pontos, portanto, parte de ideias e não mais que ideias que alguns intérpretes possuem do que seja interesse público. Perguntas idealizadas, mas contrárias, também poderiam confrontar o conforto destas convicções: o interesse público não seria o interesse em um serviço público melhor, mais bem remunerado, melhor equipado? O interesse público não pode convergir com o interesse dos trabalhadores em greve? O interesse público deve ser sempre tido como um “mantra” a destruir o direito fundamental de greve, como se fosse não mais um conflito de princípios, mas uma regra que aparece como a panaceia para o que se se vê como um mal, qual seja, o direito de mobilização dos trabalhadores?
Logo, no plano das idealizações tudo é possível. No plano do concreto, talvez as coisas funcionem de forma distinta e seja alcançada a conclusão de que não há exercício de direito de greve com corte de pontos de servidores ou de sua demissão. Neste caso, com o corte ou demissão, não há sequer o que ser ponderado. Ainda que se considerasse o contrário, se a greve, de forma idealizada, sempre atentasse contra o interesse público, não há como sequer se iniciar um exercício de ponderação de princípios, já que o “a priori” estabeleceria uma regra não prevista constitucionalmente, mas admitida, de forma errônea, na interpretação judicial. Ou seja, se for assim, é melhor tirar a previsão da constituição, já que não passa de uma quimera a alimentar a ilusão dos trabalhadores – que, não iludidos, poderão perceber que estão sendo enganados. Aqui não se trataria sequer de limitar um direito fundamental, em face de outro, mas de se acabar com algo que nunca existiu, que não passa de um natimorto. Fica a constatação de que, no dia em que esta ilusão se for, os trabalhadores talvez venham cada vez mais contundentes contra o que se lhes está impondo, já que a intermediação do direito como um anteparo foi retirada. Assim, o que se alerta é que se a ilusão não for alimentada por meio da lei, tudo será possível. O mundo cruel da fome e das dificuldades se apresentará. O que se pede é que haja um pouco de cuidado com o próprio direito fundamental de greve, já que ele nada mais é do que o fio que sustenta a espada que pende sobre a cabeça de Dâmocles. Lembre-se que, sem este direito, a espada, isto é, a greve, estará livre para atingir o seu objetivo.
Portanto, não há como se afastar o direito de greve, impingindo restrições onde a constituição não o impôs, já que a sua sobrevivência enquanto direito, e não como fato social, pertence à base de sustentação do capitalismo. Digo isto, abstraídas todas a minhas convicções pessoais.
Mais razoável nos parece, nesta lógica, que, preservada a possibilidade de ponderação, esta se realize onde concretamente ocorrem os fatos, ou seja, que elas partam, caso a caso, dos envolvidos no conflito. Que resolvam da melhor forma a tensão que existe e, quando for o caso, o submetam, segundo o seu interesse, ao judiciário na instância própria.
Assim, havendo lei sobre o direito de greve, que foi, por determinação do próprio Supremo, estendida ao serviço público, que esta lei seja observada.
Ali não há previsão de corte. No máximo, diante da decretação judicial de ilegalidade do movimento, seria possível atribuir efeitos constitutivos para a sentença que a decretou. Neste caso, embora entendamos que não é possível sequer o corte de ponto por instâncias inferiores ao Supremo, já que o direito constitucional de greve somente se concretiza sem o corte, é muito mais razoável deixar nestas instâncias a atribuição de efeitos para a decretação de ilegalidade. Veja-se inclusive que tais efeitos são constitutivos. O que, por si, já quer dizer muito sobre um eventual dissídio coletivo de natureza econômica.
É conhecido que todo manual de direito coletivo de trabalho fala que a sentença em dissídios de natureza econômica apresenta efeitos constitutivos. Ora, quando é julgado procedente, por exemplo, cria novas condições de trabalho (decorrente da sentença normativa daí proveniente: assim cláusulas relacionadas com jornada de trabalho ou de proteção ao meio ambiente do trabalho, por exemplo, constantes da sentença em dissídio). Ora, não é porque a sentença é de improcedência que há variação na sua natureza constitutiva.
Por outro lado, se utilizarmos qualquer obra de direito processual que trate dos efeitos da sentença de natureza constitutiva, se verá que os seus efeitos são “ex nunc” (ou seja, a partir do instante em que foram prolatadas). Isto não é difícil de entender. Na medida em que uma nova relação está sendo criada ou a relação antiga está sendo modificada pela sentença, estas mudanças ou alterações somente valem a partir da sentença, sob pena de se afetar relações anteriores e de se inviabilizar a segurança jurídica.
Não há, nestes casos, como se possibilitar a retroação da sentença, o que acarretaria a instabilidade da relação jurídica. Portanto, a sentença que reconhece a ilegalidade do movimento grevista também não pode instaurar incertezas quanto ao passado, não sendo possíveis coisas como o corte de ponto ou a compensação de valores já pagos. Até a decretação da ilegalidade, a greve era legal e, mais, sempre será constitucional – mesmo com o reconhecimento da ilegalidade. A decretação de ilegalidade, por sua vez, não pode impor restrições ao passado que atentem contra o direito fundamental de greve, devendo apenas fazer, no nosso juízo, apreciação sobre questões como, por exemplo, o aviso prévio do ingresso da categoria na greve. Não pode, não obstante, impor penalidades por exercício de um direito fundamental, quer no plano individual (corte de pontos, demissões etc.), quer no plano coletivo (imposição de multa, por exemplo). No entanto, esta é uma questão complexa e não cabe aqui aprofundá-la.
Ora, não há qualquer sentido (diante mesmo de possíveis sentenças, sem efeito retroativo, em dissídio para cada caso de conflito coletivo do trabalho, na forma acima apontada) em indicar efeitos punitivos, previamente ao ato de greve, por meio de um recurso extraordinário com repercussão geral no Supremo. O Supremo estaria atribuindo, contrariamente à legislação que ele mesmo adotou para regrar as greves no serviço público, efeitos retroativos a todas as greves no serviço público, que não foram, ainda, decretadas ilegais. Não há como haver uma previsão geral para o caso, já que seria uma forma transversa de dizer que todas as greves no país são ilegais antes de se realizarem. E mais, atribuir penalidades que não são possíveis de serem atribuídas, já que atentam contra o próprio exercício de um direito fundamental. Logo, sequer haveria que se admitir a repercussão geral, já que não é possível uma previsão geral para o caso, sem afrontar as normas admitidas pelo próprio Supremo em decisão anterior (a respeito confira-se como leading case o Mandado de Injunção 712, Relator Min. Eros Roberto Grau).
Considerando o momento de julgamento do RE. 693456, em que há uma greve do Judiciário Federal em curso, é sempre importante ficar atento à advertência de KONRAD HESSE, em sua famosa obra A força normativa da constituição, segundo a qual “não é, portanto, em tempos tranquilos e felizes que a Constituição normativa vê-se submetida à sua prova de força. Em verdade, esta prova dá-se nas situações de emergência, nos tempos de necessidade. Em determinada medida, reside aqui a relativa verdade da conhecida tese de Carl Schmitt segundo a qual o estado de necessidade configura ponto essencial para a caracterização da força normativa da Constituição. Importante, todavia, não é verificar, exatamente durante o estado de necessidade, a superioridade dos fatos sobre o significado secundário do elemento normativo, mas, sim, constatar, nesse momento, a superioridade da norma sobre as circunstâncias fáticas (…) A Constituição não está desvinculada da realidade histórica concreta do seu tempo. Todavia, ela não está condicionada, simplesmente, por essa realidade. Em cada eventual conflito, a Constituição não deve ser considerada, necessariamente, a parte mais fraca”. Não há que se possibilitar que o direito constitucional de greve sucumba, sob pena de, considerada a Constituição a parte mais fraca neste momento delicado, que a crise institucional se aprofunde sem precedentes na história brasileira e contando, como nunca, com a contribuição do Judiciário pátrio.
Resta-nos apostar no senso que todos representantes dos Poderes constituídos possuem de preservar as instituições em que, certamente, acreditam. Somente assim os trabalhadores poderão continuar nutrindo a ilusão de que a constituição não será considerada sempre, em tempos difíceis, a parte mais fraca.
*Marcus Orione é Doutor e Livre-Docente, Professor Associado III do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (USP).
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