Bolsonaro se fodeu no domingo. Pode ainda manter apoio entre cerca de 30% da população, mas seu quadro tendencial – e é isso o que importa – tem viés de baixa. Perde apoio entre a classe média, mesmo em setores que nele votaram no segundo turno.
O mergulho na popularidade é atestado não apenas pelos breves panelaços observados no centro de São Paulo e em partes da zona sul do Rio, na noite desta terça (17), mas no crescente desconforto que seu desleixo diante de uma pandemia tem provocado.
ELOGIAR TORTURADORES, propagar a eliminação da esquerda, defender a queima da Amazônia, puxar o saco de Trump, xingar Cuba, China e Venezuela, atacar a mulher do presidente francês, dar bananas a jornalistas, exibir comportamento misógino, homofóbico e machista, exalar racismo por todos os poros e externar linguajar chulo é algo aceitável pela estupidez média da nacionalidade. Idem idem a saudação a milicianos, a estultice demonstrada por sua prole, os ataques à cultura, à educação, à ciência e à inteligência. Tudo coisa de veado!
Mas zombar de uma doença que leva crescentes parcelas da população ao pânico mostra a pouca importância dada pelo mandatário à vida de quem o apoia. Bolsonaro arranhou irremediavelmente a camada de teflon que o protegia.
Há mais! A sensibilidade de megatério – a preguiça pré-histórica – de seu lugar-tenente da Economia, Paulo Guedes, começa a se tornar incômoda. O pinochetista mostra-se incapaz de levar uma palavra de conforto à sociedade.
O SETOR MILITAR – das forças armadas – sente a roubada em que se meteu. As classes fardadas – como dizia a oligarquia paulista pré-1930 – levaram 35 anos para limpar as manchas de sangue dos uniformes após a ditadura. Percebe ter enfiado o pé na jaca por um boçal. O general Santos Cruz, homem de direita porém sério, vocaliza indiretamente o desconforto do alto comando com a quebra de uma cláusula pétrea de qualquer corpo armado, a hierarquia. Tornou-se inaceitável a defesa da subversão miliciana cearense feita pelo presidente, por seu ministro da Justiça e pelo limítrofe que comanda a Força Nacional.
A ESCÓRIA DO MUNDO EMPRESARIAL, tão bem representada no almoço da Fiesp em 12 de março, aplaudiu de pé o capitão e saiu da avenida Paulista levitando em elogios. Dia seguinte, retirou R$ 44 bilhões do país, na maior fuga de capitais observada em décadas.
Repetindo, Bolsonaro se fodeu domingo. Suas performances pretensamente histriônicas começaram com um imitador na terça (10), em frente ao Palácio, passaram por apoios e desapoios às marchas golpistas programadas para o dia 15 e se atolaram no pântano da pandemia.
O presidente segue com um colchão de legitimidade ainda considerável. Suas falanges bovinas continuam mugindo grosso, embora se tornem cada vez mais rarefeitas.
NÃO É POSSÍVEL PREVER quando o viés de baixa na popularidade se transformará em raiva ativa e mobilizada. Mas a combinação de quatro crises – política, econômica, sanitária e de autoridade – periga formar um coquetel indigesto para o governo.
Nesse quadro complexo, há outra disputa em tela. A esquerda, encolhida desde a hecatombe múltipla promovida por Dilma Rousseff, tem dificuldades para entrar em campo. Um setor da direita – impropriamente chamado de centro e cuja figura maiúscula é Rodrigo Maia – disputa uma agenda liberal apresentada como mais civilizada diretamente com a barbárie miliciana.
A ESQUERDA TEM UM TRUNFO. A pandemia mostra ao redor do mundo não haver saída contra uma doença que se espalha geograficamente sem ação do Estado. Emmanuel Macron, em duro e emocionante discurso na segunda (16), foi certeiro na análise: “Estamos em guerra. Não uma guerra contra países e povos, mas uma guerra contra um inimigo que se multiplica entre nós”.
Guerras de verdade, desde a Paz de Westfália (1648), mobilizam Estados nacionais. O combate a pandemias é feito com táticas de domínio de territórios e estabelecem enfrentamentos que combinam ciências biológicas e geopolítica. O instrumento que pode combinar essas duas dimensões é o de uma medicina pública que atue em rede. Não se enfrenta um inimigo em disputas territoriais globais com as armas limitadas da medicina individual e privada.
O CORONAVÍRUS COLOCA na cena principal o papel do Estado. Esse é o mote e a formulação ideológica essencial a serem agarrados pela esquerda. A luta contra a peste dos novos tempos é radicalmente antineoliberal. Se dependermos do mercado, o planeta será derrotado. Até a direita mercadista sabe disso e sequer cora de vergonha quando Donald Trump propõe dar a cada estadunidense um cheque de mil dólares para auxiliar a cidadania na superação das turbulências. Trata-se da versão século XXI da ideia de Milton Friedman (!), nos anos 1960, de que os Bancos Centrais deveriam jogar dinheiro de helicóptero para os agentes econômicos e a quem tem a propensão a gastar. Seria um tratamento de choque anticíclico para reativar uma economia estagnada e mergulhada em deflação.
POR AQUI, MEGATÉRIOS e outras modalidades paquidérmicas de burocratas seguem pensando em vender ativos estatais, cortar salários e contagiar incautos com a ideia de que no fim do arco-íris dos sacrifícios contracionistas haveria um pote de ouro.
A vida piorou, a crise adquire contornos imprevisíveis, mas há uma notícia positiva: as condições de disputa melhoraram para quem se opõe à irracionalidade vigente.
Não nos esqueçamos, Bolsonaro se fodeu.
CONTRARIANDO O BARÃO DE ITARARÉ, tudo pode acontecer, menos nada. Os tempos políticos se aceleram de formas meio destrambelhadas. Nessa montanha russa de embates, ao contrário das bolsas de valores, não há circuit braker.
(Quem introduziu mundialmente o conceito de megatério nas ciências do antibolsonarismo foi meu amigo Artur Araújo).
Bolsonaro se fodeu
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