Qual a extensão do problema nos frigoríficos e que tipo de punição aplicar às empresas e seus controladores?
1. A espetacular ação do Ministério Público e da Polícia Federal contra alguns frigoríficos instaurou uma polêmica nas redes: qual a extensão do problema e que tipo de punição aplicar às empresas e seus controladores?
2. A primeira questão é decisiva, mas está quase fora da pauta. Não se sabe, estatisticamente, se os problemas demonstram que as carnes das gigantes do agronegócio configuram uma amostragem científica de que toda a produção está comprometida, ou não. A detecção de um problema em cidades do Paraná expressaria uma tendência da produção nacional?
3. Sem responder a essa questão, tudo o mais fica comprometido como análise séria;
4. No entanto, com o espetáculo midiático, outro tema entrou em tela: caso se comprovem as acusações de venda de produtos contaminados, quimicamente manipulados com substâncias nocivas à saúde ou corrupção de agentes públicos e privados, quais devem ser e contra quem devem incidir as sanções legais.
5. Aqui surge uma falsa questão, no âmbito da esquerda. De um lado, há os que julgam imprescindível a penalização das empresas, por degradarem o meio ambiente, explorarem trabalhadores, cometerem crimes contra a população etc., etc.
6. De outro, há os que – como eu – entendem que empresas não são entes dotados de vontade própria e que penalizá-las – com bloqueio de acesso a créditos oficiais, veto a compras governamentais, não emissão de certificados de qualidade, boicote aos produtos e tudo o mais – implica a quebra não apenas destas, mas de toda a cadeia do agronegócio, que vai do pequeno produtor, rede de fornecedores de insumos, equipamentos e tecnologia, indústria de grãos, milhares de empregos e, principalmente, tecnologia acumulada ao longo de décadas.
7. Assim, punidos deveriam ser donos, acionistas, técnicos e responsáveis por essa sequência produtiva. Punidos com afastamento da direção dos negócios, multas, arresto de bens e prisão, de acordo com a legislação vigente. No limite, intervenção oficial ou estatização dos negócios.
8. A defesa das empresas não significa a defesa das empresas tal como elas são, mas a defesa de conhecimento acumulado e nichos de mercado na e pela economia brasileira. Não vi, até agora, entre a esquerda, ninguém defendendo a salvação de uma incerta “burguesia brasileira” ou da “fraude nacional”, como, com evidente má-fé, alguns fizeram por aqui.
9. Não se está tampouco defendendo uma “conciliação de classes”, a partir de um raciocínio plano.
10. O que seria penalizar uma empresa? Seria destruí-la? Vender seus ativos a retalho? Detonar as marcas? Isso tem sido feito na cadeia da indústria naval e da construção civil, deixando donos e controladores – esses sim responsáveis por escândalos de corrupção – livres, leves e soltos. E essas fatias do mercado começam a ficar livres para serem ocupadas por conglomerados transnacionais.
11. Os que dizem professar um marxismo puro logo alegam a desimportância do processo. Repetem bordões como “capital não tem pátria” e “isso seria uma agressão aos trabalhadores”. Cumpre lembrar que capital realmente não tem pátria, mas a sede da enorme maioria das corporações globais se situa no hemisfério Norte, para onde migram lucros, recolhimento de impostos e mais-valia acumulada no sul.
12. Há evidentes diferenças entre empresas aqui sediadas e que reinvestem seu lucro aqui e as que remetem a maior parte dele para fora e só se expandem mediante créditos, desonerações e subsídios oficiais. Assim, não se trata de alardear que quem defende a não destruição das empresas desposa a tese de que empresas nacionais exploram menos o trabalhador que suas congêneres globais;
13. Denunciar os males do agronegócio, suas relações de trabalho e danos ambientais não é difícil. A maior parte de tais denúncias é verdadeira, e ninguém – entre a esquerda – parece desejar encobri-los. São relações encontradiças em qualquer empresa capitalista. O que está em tela no caso Carne Fraca – me parece – não é a superação do capitalismo, mas a investigação de possíveis fraudes.
14. Lamentavelmente, até onde sei – não li ainda os jornais de hoje – o socialismo não está na agenda imediata. Assim, qualquer solução colocada para as empresas estará inscrita no universo de uma economia de mercado, com os instrumentos que o Estado (burguês!) dispõe.
15. Quebrar as empresas equivale a desnacionalizá-las. Nada garante que, por serem companhias de capital aberto, o processo de desnacionalização não aconteça com as mesmas nas mãos de seus atuais controladores, como elas estão. Os casos da TAM e da Ambev estão aí, frescos na memória de todos. Logo, manter as coisas como estão tampouco é solução.
16. Se destruir empresas que incidiram em práticas corruptas fosse solução, Lockheed, Alstom, Siemens, Samsung, IBM, ITT, Volkswagen e tantas outras não mais estariam entre nós. Achar que JBS e outras expressam a corrupção inata do Brasil, existente desde a Carta de Caminha, é incidir na velha teoria das classes dominantes de que este seria um país inviável;
17. A solução – repetindo – é punir exemplarmente proprietários, acionistas e responsáveis pela possível bandalha e preservar marcas, ativos, mercados e conhecimento acumulado. A carne brasileira não teria entrada em mais de uma centena de países – a maioria com duras regras de fiscalização fitossanitária – se alguma qualidade não tivesse.
18. O mercado da carne é extremamente competitivo em termos globais. Perdê-lo seria um harakiri econômico de difícil reversão num país em crise. Trata-se da produção de commodities? Sim. Mas não é detonando a produção doméstica que se reverterá a primarização acelerada da economia brasileira.
19. Por fim, alguns contrapõem a produção das empresas-gigante – nociva e podre – à de pequenos produtores – virtuosos e higiênicos. Além de ingênuo, o raciocínio não leva em conta o processo de extrema monopolização do setor, operado na última década. Pequenos e médios produtores fazem parte hoje – em sua maioria – da cadeia produtiva das grandes. Quebrariam todas juntas, como carreira de dominó. No caso dos “orgânicos”, sua produção, por falta de escala e fatores logísticos, não supre nem em médio prazo a demanda e têm preços inacessíveis para a grande massa da população.
20. No mais, defender empresas não tem nada a ver com defender burguesias nacionais, internas ou rurais.
*Gilberto Maringoni é professor de Relações Internacionais da UFABC e foi candidato a governador (PSOL-SP), em 2014.
Fonte: Opera Mundi
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