Clara Charf: militante sobreviveu graças à solidariedade das pessoas

Imagem: Comunicação da Intersindical
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Clara Charf fala sobre dificuldades que viveu na clandestinidade ao lado de Marighella
 
Para lembrar o golpe militar de 1964, que completa 51 anos nesta quarta-feira (1º), quando o então presidente João Goulart foi deposto, a militante política Clara Charf deu um depoimento ao R7 sobre as dificuldades que enfrentou ao lado do companheiro e também militante Carlos Marighella durante o período de repressão.

Clara foi perseguida, precisou mudar de casa várias vezes e viveu na clandestinidade. Como ela mesma diz, sobreviveu com a ajuda de outras pessoas que foram solidárias.

Porém, perdeu seu companheiro em 1969, em uma emboscada feita pela polícia para calar aquele que era considerado “o inimigo número um” da ditadura.

Confira a entrevista completa com Clara Charf:

R7: Quais são as suas lembranças da época da ditadura?

Clara Charf: As pessoas que estavam sendo procuradas tiveram que sair das suas casas. Porque a polícia queria prender, lógico. No meu caso em particular, e a situação especial do Marighella, que era conhecido como meu companheiro, era uma situação muito difícil porque ele teve que sair de casa muitas vezes. E, ao sair de casa, nós também tínhamos que sair. A gente mudava de alojamento, de casa para morar, para muitos lugares. Porque você não sabia o que ia acontecer no dia seguinte. Era uma situação muito grave, né? Muito triste. E você não podia procurar pessoas que podiam te alojar, porque também eram pessoas que estavam sendo perseguidas. Não era fácil você fazer contato com pessoas que estavam sendo procuradas pela polícia. A polícia queria prender. Então foi um período muito difícil.

R7: Como foi esse período?

Clara: Apesar de toda essa dificuldade, tinha também o lado da solidariedade, que é uma coisa muito bonita desse processo. Porque as pessoas que recebiam você nas casas delas sabiam que corriam risco também. É uma experiência muito difícil de você explicar e ao mesmo tempo muito difícil de você viver. Você poderia hoje ficar em uma casa e amanhã não poder ficar mais. É uma coisa muito dura você ter que sair de um lado para o outro. [Foi] uma vida muito difícil nesse período. Mas uma coisa que é importante contar é que, apesar de tudo isso, apesar de toda essa dificuldade e apesar de toda essa perseguição, nós encontramos a solidariedade das pessoas. Isso é uma coisa muito importante de dizer. Como é que a gente conseguiu atravessar aquela época? Porque teve gente que foi presa em um momento e teve gente que foi presa mais adiante, teve gente que não foi, variava muito. Mas a gente sempre encontrou muita solidariedade. Foi assim que a gente sobreviveu.

R7: A senhora fez muitos amigos nessa época, mesmo com toda essa situação?

Clara: Em uma situação dessa, você tinha que sair [de casa]. Você era procurada. As pessoas queriam te ouvir, queriam te ver, queriam que você falasse da situação. Você queria um local onde você pudesse fazer isso. Você estava, de qualquer maneira, alojada em algum lugar. Essas pessoas que alojaram os perseguidos e as perseguidas merecem todo o respeito.

R7: Como era essa situação de não saber se ficaria em um lugar só?

Clara: Isso você não sabia nunca. Você estava sempre inquieta, estava sempre em dúvida. Você tinha que avaliar se era possível você continuar nesse espaço, ou se você tinha que mudar de casa, de alojamento. Era uma coisa muito instável. Mas foi assim que a gente sobreviveu, com a solidariedade das pessoas.

R7: A senhora considera que as pessoas que passaram por isso são sobreviventes. Certo?

Clara: É. A gente teve a possibilidade de atravessar esse período com a solidariedade de outros, né? Porque sozinha a gente não poderia nem se mover. Você tinha que saber para onde é que você ia, não podia ir para as casas de pessoas que eram suas conhecidas, porque as pessoas também estavam procuradas. Então, a solidariedade é uma coisa muito delicada, muito difícil. Mas é também uma coisa muito bonita. Que você imagina: nessa situação toda, existiam pessoas que tinham crianças pequenas. Não era o meu caso, né? Mas tinham muitas pessoas que tinham filhos pequenos e que tiveram que ficar escondidas, alojadas em lugares que pudessem alimentar as crianças, guardar, tomar conta, prosseguir para outra casa. Era uma coisa instável. Você não sabia nunca o que iria acontecer no dia seguinte. Mas você continuava brigando e achando que a sua luta era justa. Você não se meteu em uma aventura. Você estava fazendo uma luta que precisava fazer. Qual era o objetivo? Era de que o golpe não ganhasse força. Então, acho que é um período muito interessante de se analisar.

R7: Tem alguma passagem que a senhora lembre mais?

Clara: Essa situação não é boa em lugar nenhum. De qualquer maneira, você tinha que sair de um lugar quando havia ameaça da repressão. Quando chegava perto de você, você tinha que sair de novo. Você tinha que mudar de casa muitas vezes até que você encontrasse um lugar mais seguro. Então, é muito difícil tudo, né? Mas o que é importante é que o povo brasileiro sempre era solidário. Isso era uma coisa muito bonita. Muito forte. Assim que a gente se salvou. Porque, se você não encontrasse a solidariedade das pessoas, você não poderia estar alojada em lugar nenhum. Todo mundo tinha medo.

R7: Como era isso?

Clara: Acontece que o povo vencia todo aquele medo e alojava as pessoas perseguidas, tratava quando estava doente, levava para um lugar onde fosse tratado. Variava muito, né? Assim que as pessoas foram vivendo até quando se chegou a um momento onde havia um pouco mais de liberdade. Porque teve gente que adoeceu, teve de tudo. Foi um período muito duro de você viver. Mas o importante nisso tudo é que o povo alojou, arranjou médico, remédio, sempre encontrou um jeito que dá força e que dá apoio para você poder sobreviver e poder atravessar aquele período tão horrível.

R7: Qual é a importância da democracia para a senhora?

Clara: Essa pergunta é até difícil. Não é fácil de responder, mas também não é difícil. Você estava lutando pela volta, ou pela melhoria da liberdade que você tinha antes. Era muito importante você encontrar pessoas que alojaram nessa época. Por que se não você não tinha como sobreviver. Para onde você iria? E foi graças a essas pessoas que a gente sobreviveu. E que pode continuar lutando.

R7: A senhora é presidente da Associação Mulheres pela Paz. A senhora poderia contar como funciona a associação?

Clara: É uma história muito longa. Porque não é uma coisa de dois dias, três dias. É uma entidade que juntou pessoas que também foram lutar. Tem de tudo. Tem pessoas que participaram de muitas atividades no período da ditadura, outras menos, outras mais. E a gente reorganizou tudo isso quando a perseguição tinha sido contida. A gente conseguiu unir pessoas que tinham um sentimento de que você não podia deixar de ter uma organização que valorizasse o trabalho das mulheres que lutaram contra a ditadura e que agora estavam em um outro sistema, em uma outra época, que não era mais ditadura, mas que você tinha que valorizar para ver o que você poderia fazer em benefício das mulheres em geral.

R7: Qual é a história da associação?

Clara: Quem conseguiu saiu do Brasil e ficou fora. Quando voltou, quando acabou esse período tão duro, a ideia era você organizar as mulheres. Porque era importante você ter caminhos fora do trabalho que valorizasse o trabalho da mulher em outras condições. Em uma época que você não precisava sair correndo para fazer uma reunião. Aí era outro momento. E nesse outro momento a gente tinha que não só relembrar o período anterior, mas como valorizar todo esse trabalho que as mulheres fizeram e estavam fazendo agora. Porque é uma lição, né? É muito importante você poder contar e as pessoas saberem. Porque cada pessoa que ouve uma história da outra que passou por tudo isso valoriza seu próprio trabalho. E agora a gente tem que trabalhar mais para que isso não aconteça.

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