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Até o FMI admite: as finanças do Estado não podem ser administradas como as contas de uma família, ao contrário do que pregam os economistas ortodoxos
Muitos cidadãos e alunos me perguntam porque nós, economistas keynesianos (ou “heterodoxos”), somos contrários à redução do gasto público para evitar a explosão da dívida pública. A pergunta vem muitas vezes acompanhada de uma analogia com o orçamento doméstico: se uma família gasta mais do que recebe por muito tempo, ela acumula dívidas que, a partir de um certo momento, afastam seus credores. Eles têm medo de continuar a emprestar porque imaginam que a família não será capaz de pagar suas dívidas se continuar a “viver além de seus meios”. A hora da verdade não pode ser adiada para sempre: em algum momento, a família precisará “apertar o cinto” e passar a poupar para pagar a dívida. Por que o mesmo não vale para o governo?
Os defensores da austeridade fiscal alegam que a mesma lógica doméstica vale para o governo, que deve buscar o orçamento equilibrado principalmente quando suas receitas diminuem para evitar que a dívida pública assuma uma trajetória explosiva. No último mês de maio, dados preliminares indicam uma nova queda da arrecadação tributária e uma frustração da expectativa de receita fiscal anunciada anteriormente. O governo não deveria dobrar o esforço no corte de gasto?
O argumento a favor da austeridade tem vários problemas empíricos, ou seja, suas propostas não tiveram sucesso prático em nenhum lugar do mundo, inclusive no Brasil. Isso ocorre por causa dos sérios problemas teóricos, pois não consegue entender o motivo de o orçamento público e a economia como um todo serem diferentes do orçamento familiar ou de uma empresa isolada.
Em 2015, Joaquim Levy cortou o gasto público porque a receita caía e, com isso, a dívida pública poderia aumentar não só em valores absolutos (ela sempre aumenta nominalmente em qualquer lugar do mundo, com raríssimas exceções), mas em relação ao total da renda nacional, que também costuma aumentar, às vezes mais rapidamente que a dívida, às vezes menos. Mas em vez de reduzir a parcela da dívida pública no PIB, Levy entregou-a muito maior do que a recebeu, mesmo cortando o gasto em 3%, pois empurrou o PIB para uma queda de 3,8%, enquanto disparavam os índices que corrigem a dívida sob responsabilidade do Banco Central (juros e câmbio).
Levy não é um caso isolado. No mundo inteiro, a expectativa dos que propõem a austeridade quando a arrecadação tributária freia ou cai como reflexo de uma desaceleração cíclica é que o corte do gasto público não terá um efeito negativo sobre o crescimento econômico, principalmente se não for acompanhado pela disparada de juros e câmbio como no Brasil em 2015. Alega-se inclusive que a austeridade pode até ter um efeito positivo sobre o crescimento, porque a recuperação da credibilidade junto aos credores da dívida pública animaria os investidores a voltar a investir.
Nos manuais de macroeconomia “ortodoxa”, ou seja, da escola neoclássica, o argumento é que a redução do pedaço do bolo apropriado pelo governo aumenta o pedaço do bolo apropriado pelo setor privado. Se isso não acontecer diretamente, ocorreria indiretamente: o corte do gasto público diminuiria a destinação da poupança privada para a dívida pública, liberando-a para o investimento com a queda da taxa de juros.
O pressuposto é que o tamanho do bolo não mudaria com a redução do gasto público, que afetaria apenas a distribuição do bolo entre o consumo público e o investimento privado. Como o consumo público prejudicaria o crescimento futuro, enquanto o investimento privado seria o próprio fermento do crescimento do bolo, este aumentaria em seguida.
A teoria é simples, de fácil entendimento e errada. Testes empíricos mostraram que a austeridade reduziu o bolo em todo o lugar do mundo, a não ser no caso de uma pequena nação menos dependente do mercado interno do que das exportações ser estimulada por um grande crescimento da economia mundial que aumente suas vendas externas.
Como se sabe, o FMI sempre defendeu a austeridade entre os países que recorriam a seus empréstimos diante de um problema de balanço de pagamentos, ou seja, de escassez de reservas cambiais. Mais recentemente, recomendou-a também a países que incorressem em déficits fiscais e até recessões, alegando que melhoraria o resultado fiscal e em seguida o crescimento.
Hoje em dia, pesquisadores do Fundo admitem que a austeridade prejudica o crescimento e a relação dívida pública/PIB. Salvo exceções mal explicadas, a recomendação é reduzir o peso da dívida pública no PIB “organicamente”, isto é, depois que o crescimento econômico tiver sido estimulado pelo déficit público até provocar um aumento da arrecadação tributária a ritmo superior ao do gasto público. Isto era a recomendação keynesiana que dominava os livros-texto de macroeconomia neoclássica até o ataque neoliberal da década de 1980: incorrer em déficit público nas recessões e eliminá-lo depois da retomada forte do crescimento.
Em maio passado, o principal defensor da hipótese de que a austeridade geraria crescimento, o professor de Harvard Alberto Alesina, reconheceu o contrário em um estudo de mais de 3,5 mil iniciativas de política econômica.
Assim, o FMI e os austeros enfim reconhecem a diferença essencial entre o orçamento público e o familiar: enquanto um corte na despesa doméstica não afeta a receita da família por ser insignificante macroeconomicamente, a austeridade fiscal aumenta a relação dívida pública/PIB por prejudicar o PIB e consequentemente a receita fiscal.
O fato de que fossem necessárias centenas de testes econométricos e dezenas de fracassos de política econômica, com grande sofrimento social, aumento da pobreza e da concentração da renda, mostra apenas o estado ridículo da teoria econômica neoclássica que embasa as recomendações do neoliberalismo. O “paradoxo da poupança” é conhecido desde a década de 1930: quanto todos são induzidos a poupar pelo medo do futuro, o corte resultante do gasto agregado também reduz a renda e a poupança agregada, jogando a economia em um espiral descendente da qual sairá com uma reação anticíclica do governo ou, no longo prazo, quando “estivermos mortos”, com perdas enormes e desnecessárias de emprego.
O problema da admissão de equívoco pelo FMI e do séquito de austeros é que Keynes dizia que a necessidade reativa de déficit público como política anticíclica era sintoma de um fracasso: a ausência de um planejamento mais abrangente. Para ele, melhor seria prevenir do que remediar, recorrendo a iniciativas que os controladores do Fundo (principalmente os EUA) não podem admitir por motivos políticos e ideológicos conservadores: controle da mobilidade internacional de capitais, juros baixos, limites à especulação financeira, planejamento de um volume amplo de investimentos públicos e privados, políticas de renda e sociais para inibir a desigualdade e estimular o consumo dos trabalhadores e de bens públicos.
Desta forma, o principal obstáculo a uma boa gestão da economia capitalista não é cognitivo, é político. Talvez a própria cegueira cognitiva resulte do obstáculo político: o medo da democracia. O medo dos ricos e seus economistas é que a extensão do planejamento democrático para garantir o alto crescimento (e os grandes lucros resultantes) restrinja a autonomia empresarial e estimule cidadãos a querer mais autonomia no mundo do trabalho e ampliação do tempo livre.
Como escrevia o economista polonês Michal Kalecki já em 1943, a minoria que controla a riqueza capitalista apoia a austeridade contra o pleno emprego e o gasto público por apreciar “mais a ‘disciplina nas fábricas’ e a ‘estabilidade política’ do que os lucros”. Ou não?
Fonte: Carta Capital
INTERSINDICAL – Central da Classe Trabalhadora
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