O presente artigo é o terceiro da série sobre a crise do Pacto Federativo Brasileiro. Nele serão apresentadas as razões pelas quais a Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF agride a autonomia dos entes federativo, reduzindo absurdamente a capacidade de governo de estados e municípios ao mesmo passo que amplia os privilégios econômicos do setor financeiro.
Após apresentarmos, em artigos anteriores no Observatório da Democracia, a Lei Kandir e o Sistema de Dívidas Públicas Estaduais como pilares da crise do Pacto Federativo, é o momento de apresentar o terceiro pilar: a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Usamos a metáfora do Cão Cérbero, o monstro tricéfalo, onde cada cabeça representa um mecanismo de interdição da federação. A terceira delas é a LRF.
A Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei Complementar 101 de 2000, foi sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e tinha como argumento principal a busca por disciplinar os gastos dos governos evitando o endividamento público excessivo; além disso, como linha auxiliar da narrativa, pregava a moralidade e a transparência.
Declaradamente seria enfrentado com a LRF o desequilíbrio fiscal presente nos entes da federação. O problema estaria nos executivos, mas sobretudo nos governadores e nos prefeitos, tachados, quase que automaticamente, como perdulários e irresponsáveis com o orçamento público.
Outro argumento utilizado foi que os executivos estaduais e municipais não se preocupavam com a situação de insolvência uma vez que a União sempre estaria pronta a socorrê-los na crise por eles produzida. Ou seja, os governadores e prefeitos ao perseguir objetivos de curto prazo e seus benefícios políticos com os gastos descontrolados colocariam em risco a estabilidade macroeconômica do país. Assim sendo, a União deveria intervir e disciplinar os entes subnacionais, a LRF foi o mecanismo escolhido.
A narrativa que envolvia a aprovação da LRF falava sobre a necessidade de se criar um marco legal tecnocrático de promoção do equilíbrio das contas públicas, porém, politicamente, significou a invasão da União nas prerrogativas estaduais e municipais. Em outras palavras, a LRF assumiu a responsabilidade de disciplinar o que as urnas, supostamente, seriam incapazes de fazer.
A visão de que a democracia e os direitos sociais não cabem no orçamento não começou agora, seu ponto de partida originário está nas “reformas” do estado de Fernando Henrique Cardoso.
A divisão ponderada de atribuições na prestação de serviços públicos e arrecadação de tributos, prevista no tipo de federalismo fiscal assumido pela Constituição Federal de 88, entrou em antagonismo com o tipo de “reformas” do estado implementadas pelos Governos de Fernando Henrique Cardoso, marcadamente comprometidas com o atendimento das demandas do capital financeiro. Tal compromisso se materializou na agenda de privatizações, na manutenção das altas taxas de juros, e, no que tange ao debate da LRF, na formação de superávit primário como ponto central.
A demonização do déficit fiscal foi a principal obra dos neoliberais no Brasil, estes pretenderam e lograram derrotar o pensamento desenvolvimentista e criar as condições para a imposição de um regime político, social, ideológico e econômico controlado pelo setor financeiro-especulativo. Garantir a qualquer custo o superávit primário implicou em abrir mão de uma política econômica voltada para as garantias da cidadania (serviços públicos e direitos) e da economia real (geração de emprego). O pagamento da dívida pública, assentada em juros exorbitantes, se tornou, com a LRF, a razão de existência do sistema fiscal brasileiro.
O senso comum é errático, em especial porque tende a igualar coisas que são essencialmente diferentes. O déficit de uma empresa privada é algo distinto do que ocorre com o estado, por uma razão simples, o estado é um emissor de moeda, tem a capacidade de controlar, por iniciativa própria, as taxas de juros, e com isso equilibrar a formação de dívida com fomento à economia real, em especial o fomento ao trabalho, que por sua vez aumenta o volume de recursos tributáveis pelo próprio estado. O déficit produz riqueza para a sociedade como um todo se for orientado na direção do setor produtivo. Os neoliberais atacaram esta noção macroeconômica a substituindo por uma ideologia anti-estado e antipolítica. Conter os gastos passou a ser entendido como algo positivo aos olhos de grande parte da sociedade (trabalho feito pela grande mídia), pagar juros altos aos bancos se transformou em sinônimo de responsabilidade.
A proposta de austeridade e formação de superávit primário poderia ser apenas um programa de governo neoliberal, ou seja, passível de avaliação por meio do sufrágio. Com a LRF ela se transformou na regra articuladora do modelo de estado. A LRF deu perenidade a uma proposta de governo que deveria estar sujeita a avaliação e revisão pelo voto. Mas, a contrário, ela se impôs como um programa, por meio de lei, que percorreu todas as gestões dos executivos desde então, ou seja, feriu o regime pactuado pelos atores políticos da Assembleia Nacional Constituinte de 88, na medida que a LRF, que é uma lei complementar à Constituição, na prática, desfigurou a Carta Magna, alterando suas noções de estado e de governo.
A LRF não se trata, portanto, de um mecanismo de controle dos gastos públicos, mas sim de um instrumento de imposição de um programa de governo específico, no caso o programa de FHC, sobre todos os governos posteriores, sejam eles federais, estaduais ou municipais. Após aprovada a Lei de Responsabilidade Fiscal os governos eleitos – independente do partido que tenha triunfado nas urnas – na união, estados e municípios foram forçados juridicamente a seguir o programa neoliberal em alguma dimensão.
Sendo assim, a LRF não apenas atacou a autonomia dos entes federativos, como a própria democracia, uma vez que os eleitores são impedidos de escolher de maneira plena o programa de governo que melhor representa sua opinião. O repertório de ações de governos foi estreitado, a competição eleitoral passou a se dar entre as diferentes abordagens e possibilidade de governo dentro do paradigma imposto pela LRF.
Uma lei que determina percentuais de orçamento dos entes federativos fora da pactuação constitucional, ou seja, do poder constituinte originário, está solapando do povo a prerrogativa de escolher o seu modelo de estado (Assembleia Constituinte) e um programa de governo por meio de eleições.
Duas décadas se passaram desde a aprovação da LRF e no lugar do chamado “equilíbrio” os municípios e estados encontram-se, em sua maioria, à beira da insolvência. Segundo o Índice FIRJAN de Gestão Pública, última versão publicada em 2017, 86% dos municípios brasileiros estão em situação fiscal grave ou crítica. No mesmo ano, 19 estados ultrapassaram o limite de gastos com pessoal (60% da receita corrente) estabelecidos pela Lei. Ou seja, a situação se agravou sob a vigência da LRF.
Estamos, portanto, no momento de uma avaliação séria sobre o tema. No lugar disso, durante o governo Temer se criou o Regime de Recuperação Fiscal – RRF, no qual os estados e os municípios que aderissem a ele teriam ajuda financeira ou suspensão temporária do pagamento de suas dívidas com a União em troca do compromisso de assumirem um programa de austeridade brutal, que prevê, entre outras medidas, a privatização das empresas públicas estaduais e municipais, limitação nas contratações, congelamento de salários de servidores e alienação de patrimônio público.
Se a LRF estabeleceu um cerco aos estados e municípios, o RRF irá promover seu aniquilamento completo. Estados e municípios se transformarão em entes ingovernáveis. A centralização de prerrogativas e condições de negociação da União não deixa espaço para a existência de uma república federativa.
Este fato tem gerado um efeito perverso no próprio comportamento político, pois os candidatos ao executivo assumem o discurso da impossibilidade de governar, e a única opção seria, então, gerir a crise. Basta procurar quantos candidatos nas últimas eleições municipais e estaduais se declararam contra a Lei de Responsabilidade Fiscal e encontrará uma minoria isolada. Praticamente nenhuma candidatura viável procurou demonstrar aos eleitores a irresponsabilidade social da LRF. Estabeleceu-se um sistema de seletividade reversa no qual se premia os que se curvam diante da crise. O judiciário, a imprensa e, em alguns casos, os próprios partidos, selecionam um tipo novo de candidatura, não as mais aptas a governar, mas aquelas que declaram categoricamente que não irão, os chamados gestores. Por ironia, mesmo com toda suposta inteligência técnica, boa parte destes gestores conseguiram apenas empurrar para debaixo do tapete o problema que declararam capazes de solucionar, chamaram isto de “contabilidade criativa”.
A ideologia neoliberal descreve o problema federativo como uma questão contábil, mas os resultados e a experiência dos últimos anos demonstraram o contrário. O aprofundamento da crise fiscal é diretamente proporcional à radicalização da agenda de austeridade. Superar a insolvência das entidades subnacionais implica em afirmar suas prerrogativas e autonomia. Implica em compreender o papel que a Lei de Responsabilidade Fiscal, o Sistema das Dívidas Estaduais e a Lei Kandir tem na crise do Pacto Federativo, como foi a intenção deste conjunto de artigos.
*Pedro Otoni é mestre em Ciência Política, especialista em Economia Política, bacharel em Direito e colaborador da Fundação Lauro Campos – Marielle Franco.
Fontes:
FIRJAN. Índice FIRJAN de Gestão Pública (2017). Disponível em: https://www.firjan.com.br/ifgf/, Acesso em 14/10/2019.
MINISTÉRIO DA FAZENDA. Tesouro Nacional. Exposição da União à Insolvência dos Entes Subnacionais (2018). Disponível em:
https://www.tesouro.fazenda.gov.br/documents/10180/0/Texto+da+discuss%C3%A3o/b0119b85-0179-4fe5-9f98-93ed9e84209e, Acesso em 14/10/2019.
Tópicos relacionados
Comentários