Tanto Temer quanto Bolsonaro, assim como a imprensa comercial e o “mercado”, partem da premissa básica do “déficit” da Previdência para justificar a necessidade de uma reforma. A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Previdência, composta por 11 senadores, chegou a conclusões opostas, depois de seis meses de investigação, 31 audiências públicas e mais de 140 pessoas entrevistadas. Aprovado por unanimidade, o relatório da CPI indica que o debate do “déficit” não faz sentido se forem desconsideradas “as práticas do Estado, que durante todo o período de existência da previdência retirou recursos, esvaziou suas receitas, protegeu inadimplentes e ainda financiou projetos de construção e mesmo, mais recentemente, políticas rentistas de pagamento de juros.”
O modelo da Previdência Social brasileira é o de repartição, no qual os trabalhadores ativos contribuem para o financiamento das aposentadorias dos inativos. No futuro, quando pararem de trabalhar, suas pensões serão pagas por uma nova geração de trabalhadores e trabalhadoras. O empregado contribui com uma alíquota que varia de 8% a 11% de seu salário, descontada obrigatoriamente na folha de pagamento. Os patrões também contribuem à Previdência com taxa equivalente a 20% do salário bruto de cada funcionário.
No entanto, a Constituição Federal (CF) determina que o financiamento não se restringe a empregados e empregadores. O Estado também é responsável por sua sustentabilidade, captando recursos por meio de impostos. Ou seja, é um financiamento tripartite.
Na CF de 1988, a Previdência foi pensada com um dos três pilares da Seguridade Social, ao lado de Assistência e Saúde. Assim, os tributos que financiam Saúde e a Assistência são os mesmos da Previdência: Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins); Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e parte do PIS/PASEP.
Uma série de operações do governo federal, apontadas pelos estudos da CPI da Previdência, altera as contas do Orçamento da Seguridade Social e dá margens para o discurso do “déficit” e da necessidade de uma reforma previdenciária regressiva. A principal ação é o desvio direto de recursos, em especial após a criação da Desvinculação de Receitas da União (DRU), criada em 1994, que permite ao governo redirecionar até 30% do orçamento de áreas como educação, saúde e previdência social para qualquer outra despesa considerada prioritária, incluindo o pagamento de juros da dívida pública. Cálculos da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip) estimam que, entre 2005 e 2017, quase R$ 742 bilhões foram subtraídos da Seguridade por meio da DRU, uma média de R$ 57 bilhões ao ano.
Outro peso para as contas da Seguridade Social é a permissividade do governo federal com as empresas devedoras, que juntas acumulam um passivo bilionário. “O que se percebeu a partir dos documentos e depoimentos colhidos pela CPI da Previdência foi a prática recorrente por parte das empresas de não cumprimento suas obrigações, acumulando débitos por vezes bilionários. De fato, a soma dos passivos das empresas junto à previdência remonta cifras da ordem de R$ 450 bilhões”, afirmam os senadores da CPI da Previdência no relatório aprovado.
A empresa com maior passivo previdenciário, segundo a CPI, é a JBS: R$ 2,1 bilhões. Empresas públicas como a Caixa Econômica Federal (R$ 1,2 bilhão) também aparecem na lista. As dívidas se formam quando o empregador não repassa a contribuição previdenciária que incide sobre as folhas de pagamento de seus funcionários. Devido à leniência do governo, dos R$ 450 bilhões acumulados, apenas R$ 175 bilhões podem ser recuperados.
Por fim, a CPI da Previdência critica a recorrente prática de isenções e renúncias fiscais para empresas (quando o governo abre mão de receber tributos da Seguridade Social). Nos últimos dez anos, os valores de desonerações mais que triplicaram, chegando a R$ 143 bilhões em 2016, contra R$ 45 bilhões em 2007.
Despesas que não são previstas pela Seguridade Social, mas são computadas como se fossem, também inflacionam o discurso do déficit da Previdência. É o caso das aposentadorias dos servidores públicos civis e militares. O relatório da CPI da Previdência é taxativo: trata-se de “um erro, que ao persistir, impacta artificialmente o resultado da Previdência Social e, consequentemente o Orçamento da Seguridade Social”.
A aposentadoria do funcionalismo é distinta dos trabalhadores do setor privado. Estes contribuem para o Regime Geral da Previdência Social (RGPS), enquanto aqueles para os Regimes Previdenciários Próprios dos Servidores Públicos (RPPS). Os recursos do primeiro são gerenciados pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), enquanto o segundo é administrado diretamente pelo Tesouro Nacional.
Quando criado, o RPPS não exigia contribuição previdenciária dos servidores públicos. A aposentadoria, paga pela União, era considerada uma remuneração “em razão do trabalho feito”, como explica o relatório da CPI da Previdência. Apenas em 1993 o funcionalismo passou a custear sua aposentadoria. No entanto, a regra se aplicou apenas ao quadro civil. Os militares, por outro lado, seguem sem pagar contribuições previdenciárias e, por isso, geram o maior “déficit” per capita para os cofres públicos. Os descontos feitos nos salários são exclusivos para custear pensões a familiares em casos de morte. A distinção, segundo a CPI da Previdência, se deve ao fato de que “os militares em tese não se aposentam, vão para a reserva” e, “teoricamente, eles podem ser novamente convocados a qualquer momento em caso de necessidade”. De acordo com o Tribunal de Contas da União (TCU), a despesa com um militar é inativo é 17 vezes maior do que com um trabalhador do setor privado. Uma das razões para a diferença é o pagamento de pensões para filhas de militares.
Na proposta de Reforma da Previdência de Temer, os militares ficam de fora. Os servidores públicos do Regime Próprio (RPPS), por outro lado, seriam prejudicados. As regras para se aposentar seriam igualadas às mudanças previstas aos trabalhadores do setor privado (idade de 65 anos, com mínimo de 25 anos de contribuição), assim como o valor do benefício.
Os ajustes na aposentadoria do setor público foram defendidas como “combate a privilégios” pelo ex-presidente Temer e demais defensores das propostas. De fato, a média das aposentadorias dos servidores federais está bastante acima dos demais. A distorção ocorre principalmente nos poderes Judiciário (média de R$ 22,2 mil) e Legislativo (R$ 28,5 mil). No Executivo, a média é de R$ 7,6 mil. No INSS, é de R$ 1,2 mil.
O economista e professor da Universidade de Campinas (Unicamp) Eduardo Fagnani defende que são situações específicas que precisam ser revistas. “Uma professora que ganha R$ 3 ou 4 mil é diferente de um juiz que vai ganhar R$ 39 mil, com auxílio-moradia que é maior do que o salário da professora. Se quer combater privilégios, tem que pensar dessa forma”, sustenta.
Fagnani também lembra que aqueles que ingressaram no serviço público depois de 2012 já estão sujeitos ao teto previdenciário no mesmo valor do Regime Geral (hoje R$ 5.531,31). Os servidores que desejam receber mais têm que aderir a um sistema de previdência complementar. Por isso, para Fagnani, o “futuro está resolvido” e, no curto prazo, os ajustes deveriam focar nas distorções, que são minoritárias.
O aumento da expectativa de vida média dos brasileiros e brasileiras é o segundo elemento que, junto à questão do “déficit”, é utilizado para defender uma reforma regressiva da Previdência. Para o professor Fagnani, o argumento do envelhecimento da população trata-se de mais um “terrorismo” contra a população, pois a participação do gasto público com Previdência Social, em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) ainda é baixo (em torno de 10%) quando comparado a países europeus que já passaram pela transição demográfica (em torno de 15%).
De acordo com Fagnani, o debate sobre o financiamento futuro da Previdência, mais do que o envelhecimento da população, deve levar em conta as mudanças econômicas e tecnológicas que afetam o mundo do trabalho. “No fordismo do século XX, precisava de 80 trabalhadores para construir um automóvel. Hoje tem fábricas 4.0 que o sujeito aperto o botão e as máquinas produzem. Teve um ganho de produtividade. Alguém tem que pagar uma parte desse ganho”, defende. Assim, segundo Fagnani, a discussão deve ser relacionada à estrutura tributária. “Os países europeus já transitaram de uma base tributária que incide sobre o trabalho para uma base que incide sobre a renda, patrimônio e lucros”, expõe.
Diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Clemente Ganz concorda com a necessidade de atrelar uma reforma tributária à sustentabilidade da Previdência Social. “A introdução de novas tecnologias, com substituição de trabalhador por máquina, e a flexibilização de contrato de trabalho tendem a aumentar rotatividade, gerar insegurança e, portanto, descontinuidade de financiamento à previdência”, considera. A situação “exigiria sistemas previdenciários financiados por meio de tributos universais, não mais diretamente ao vínculo de trabalho”, com tributação diferenciada sobre a riqueza e o patrimônio. “Tem uma riqueza gerada na economia e nós vamos tributar mais riqueza para, por meio dessa tributação, redistribuir para aqueles, especialmente mais pobres, que tenham renda na velhice”, sintetiza.
Por isso, para Ganz e Fagnani a discussão sobre as contas da Previdência Social deve ser sempre ligada à qualidade de vida que o país quer proporcionar aos idosos e suas famílias. “Você não faz ideia do que significa o salário mínimo de um idoso na vida familiar. O filho está desempregado, aquele salário segura onda. O neto não consegue emprego, aquele salário segura a onda. Quando se acaba com esse salário, você desestrutura famílias, coloca um monte de gente na criminalidade… No limite essa é a discussão. Que país a gente quer?”, questiona o professor Fagnani.
De acordo com o relatório Reformar para Excluir, publicado por Dieese, Anfip e Plataforma Política Social, em 2014, apenas 8,76% das pessoas com 65 anos ou mais viviam com renda menor ou igual a meio salário mínimo. Caso não houvesse a Previdência e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), o percentual de idosos pobres aos 75 anos superaria 65% do total, afirmam os pesquisadores.
Fonte: Conflitos
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