O Brasil vive um momento bastante complexo, que nos dificulta a compreensão dos fatos, também porque muito do que se sabe pela grande mídia não são os fatos propriamente ditos, mas versões, tantas vezes deturpadas, sentimental ou propositalmente construídas.
O resultado é o imobilismo, porque fica bem difícil saber para onde ir, o que e a quem defender.
Em meio a tudo isso, eis que os estudantes secundaristas, pessoas de 13 a 16 de idade – alguns com 17 ou 18 –, resolvem mostrar que é possível ter boas e certeiras causas pelas quais lutar e saem às ruas em defesa das escolas públicas nas quais estudam.
E não o fazem por mera farra. Agem com convicção, com consciência em torno da importância do ensino público. Defendem as escolas não apenas para si, mas por princípio. Sabem bem do descaso em que, estruturalmente, foi deixada a coisa pública. Sofrem, em inúmeras situações, com a precariedade das acomodações e com a redução de material. Mas não acolhem, de forma radical, ou seja, sem titubear, a ideia do governo do Estado de fechar escolas, de aumentar o número de alunos por sala, de separar o ensino fundamental do ensino médio e, consequentemente, de transferir de forma arbitrária estudantes de uma escola para outra, dificultando o acesso à educação.
Os estudantes, ao saírem em defesa de “suas escolas”, demonstram, para todo o país, que o Brasil não é só corrupção, não é só desmandos administrativos, não é só favoritismo, não é só egoísmo, individualismo e busca de sucesso pessoal por meio de ganhos financeiros e de “status”, como a grande mídia insiste em divulgar. Aliás, para essa gente destruidora da moral da população brasileira todas as pessoas são iguais a ela e, segundo tenta difundir, os jovens são alienados, drogados, descomprometidos, preguiçosos e, consequentemente, ignorantes.
Mas o que se tem em concreto na mobilização dos “secundas”, como se intitulam, são jovens levantando a bandeira da defesa da educação pública de qualidade. São jovens, portanto, que querem estudar, mas que também se preocupam em defender a instituição responsável por isso, mesmo reconhecendo as deficiências estruturais das escolas, sendo que isso, ao mesmo tempo, representa o reconhecimento da qualidade de ensino que os professores e professoras, com todas as dificuldades, ainda conseguem lhes transmitir.
Então, era para que todas as pessoas sérias e que se consideram minimamente preocupadas com a melhora do país estivessem na frente das escolas aplaudindo os estudantes, porque, afinal, estão dando uma aula, que, inclusive, serve à redenção de todos nós. Os estudantes estão dando uma aula de cidadania, de compreensão, de comprometimento, de consciência, de organização e de luta. Uma aula que deixa uma grande e essencial mensagem: o Brasil tem jeito!
No entanto, bem ao contrário, o que se vê é um esforço midiático muito grande para desconsiderar a importância “revolucionária” do movimento, que está refletido em ocupações em 20 (vinte) escolas, mas que, obviamente, não se reduz a isso. De fato, a defesa coletiva e consciente das escolas públicas reflete a situação de que os estudantes compreendem bem a sociedade em que vivem e que não pretendem ficar ali parados, seguindo um destino que lhes foi traçado de serem, no futuro, força de mão-de-obra desqualificada para alimentar um sistema que reforça as desigualdades.
Aliás, é bem isso, ou seja, o risco da perda da mão-de-obra desqualificada, para a realização de serviços que, embora dignos, foram socialmente reduzidos a uma condição subalterna e impregnados de submissão, que incomoda tanto à classe economicamente dominante, que vai às ruas defender um Brasil melhor, mas que olha com desdém a mobilização dos secundaristas.
É também por isso, aliás, que o governo do Estado não apenas tenta implementar uma política para a escola pública que visa punir os professores e as professoras pela sua atuação politicamente consciente, como também trata os estudantes, não como adolescentes, que de fato são, mas como rebeldes que não querem seguir os seus desígnios, chegando a enxergá-los como “operários” que se recusam a trabalhar, sendo por essa razão, ademais, que se interligam as pautas dos estudantes, dos professores e dos trabalhadores.
E a cena extremamente deprimente que se vê é a da escola pública transformada em uma prisão, cercada de policiais, fortemente armados e cegamente preparados, fazendo parecer que os estudantes que ocupam a escola, em ato político, já estão presos e sob a ameaça de males ainda maiores, chegando a situações de gravidade e dramaticidade como se verifica na EE José Lins do Rego, na zona sul, e na EE Salvador Allende, na zona leste de São Paulo, e na EE CEFAM, em Diadema.
E alguém pode se perguntar: que Estado é esse que enfrenta com força bruta estudantes adolescentes de escolas públicas que defendem a sua escola e o seu direito constitucional de estudar?
A resposta é simples: é um Estado que protege interesses do poder econômico e que não quer permitir a ocorrência das transformações sociais possibilitadas pela melhora do ensino que, provoca, inclusive, a diminuição das diferenças de oportunidades. Um Estado que é capaz de transformar o ato político de adolescentes que querem estudar em caso de polícia, sob o falso argumento da defesa do patrimônio público, afinal, estamos falando de um patrimônio que o Estado nunca cuidou e que, portanto, se fosse para punir juridicamente a depredação do patrimônio público das escolas os governantes já deveriam estar presos há muito tempo.
Estado que, ao mesmo tempo, é totalmente incapaz de tratar com o mínimo rigor, no que se refere ao menos ao cumprimento das leis, grandes empresas, que, a cada dia, poluem, exploram, quando não matam, como se viu, agora, na região de Mariana/MG, e como está impregnado em tantos monumentos, da transamazônica aos estádios da Copa, passando por usinas, hidroelétricas e pontes.
É um Estado, portanto, que quer manter a ocupação de doméstica para a filha da doméstica.
Mas a brutalidade não vence a consciência e, portanto, o que os governantes de plantão pretendem é, de fato, uma grande ilusão, pois as mudanças sociais no Brasil, sobretudo a partir de junho de 2013, já estão em curso irreversível, até porque a mudança em termos de compreensão de mundo não é um fenômeno exclusivo do ensino público.
Também no ensino privado, nas consideradas melhores escolas do país, por obra de competentes gestores e valorosos professores e professoras, o economicismo cede espaço ao humanismo, à solidariedade, à naturalização quanto à equiparação das oportunidades e a repartição da riqueza, à tolerância, à condenação aos preconceitos, sobretudo, de raça e de etnia, ao respeito às diversidades, às opções de sexualidade e à igualdade de gênero, fazendo com que a distância de mentalidade entre os jovens de classes sociais diversas seja cada vez menor, o que favorece à superação de um conflito tão estimulado em gerações passadas.
Essa mudança é tão sentida que adeptos do “status quo”, impregnados pelo escravismo, pelo racismo, pelo machismo, pela discriminação e pela intolerância, financiam campanhas contra o que chamam de “doutrinação marxista” nas escolas. Gente que nunca leu as obras de Marx e que nem de longe sabe o que é marxismo. Gente que despreza, inclusive, os Direitos Humanos e que, no fundo, tem medo do conhecimento, porque conhecer a realidade das coisas pode ser doloroso e incômodo.
Outro dia li em uma mensagem de Facebook: “São esses Direitos Humanos que impede (SIC) o desenvolvimento do país”. Mas como já dizia o personagem de Mário Tupinambá, na Escolinha do Professor Raimundo, “a ignorança é que astravanca o progréssio!”
Fato é que a escola, pública e privada, não pode deixar de cumprir o seu papel essencial de transmitir o conhecimento, não se reduzindo, pois, a formar mão-de-obra para o mercado, sendo inevitável, por conseguinte, que assumamos o “risco” de sermos seres humanos dotados de consciência e conhecimento.
E que ninguém se iluda, esse não é um caminho fácil e a reação policial aos jovens estudantes demonstra bem isso, assim como as diversas formas de opressão, criadas nos regimes ditatoriais brasileiros, que ainda estão vigentes, sobressaindo a reprimenda moral e jurídica às greves dos trabalhadores, sendo que se alia a tudo isso, para conter os avanços, a forte campanha que se tem difundido “a favor” da crise econômica, cuja função é a de instaurar o medo e, com isso, inibir as lutas políticas pela consagração e efetivação de direitos sociais.
Ainda assim as mudanças em torno da diminuição das desigualdades sociais, políticas e econômicas estão ocorrendo e continuarão em curso e se os políticos e governantes não sabem disso seria de todo conveniente que aproveitassem o momento em que os estudantes os chamam para o diálogo e se dignassem de ir às escolas não só para conversar com os secundaristas, mas para aprender com eles, como, aliás, de forma exemplar, fez o membro do Ministério Público, João Paulo Faustinoni e Silva, que, após comparecer à ocupação da EE Fernão Dias e compreender o que estava de fato acontecendo no local, pediu a revogação da liminar de reintegração de posse e conseguiu, com o reforço argumentativo da APEOESP, que o juiz da causa, Luis Felipe Ferrari Bedendi, da 5ª Vara de Fazenda Pública, adotasse a grandiosa postura de rever seu posicionamento e proferisse belíssima e importantíssima decisão sobre o caso (Processo n. 1045195-07.2015.8.26.0053).
Eu também fui ao local, onde passei toda a tarde e o início da noite de sexta-feira, dia 13, e posso garantir que se aprende muito com os estudantes, notadamente quanto à sua capacidade de organização e à sua compreensão de mundo.
Ou seja, uma boa forma para acelerar o processo de mudanças, tornando-o menos traumático, seria a de uma espécie de retorno dos políticos e governantes à escola, para terem uma aula de cidadania com os estudantes.
Enfim, quero deixar consignado aqui um manifesto de apoio à defesa das escolas públicas, contra, portanto, o projeto de reestruturação apresentado pelo governo do Estado de São Paulo, transmitindo toda a força aos “secundas” e aos professores e professoras pela sua luta, não porque, de fato, precisem de mim, mas porque todos nós, cidadãs e cidadãos brasileiros, precisamos muito de uma aula como essa!
São Paulo, 15 de novembro de 2015.
*Jorge Luiz Souto Maior é professor da Faculdade de Direito da USP.
Foto: Sessão de cinema ao ar livre na E. E. Ana Rosa Araujo, no Butantã
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