Foi com preocupação que o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Sul recebeu a decisão proferida na 1ª Vara Federal de Erechim que suspendeu os efeitos da portaria declaratória de demarcação da Terra Indígena Passo Grande do Rio Forquilha, localizada entre os municípios de Sananduva e Cacique Doble, no Rio Grande do Sul. A Portaria Declaratória, que garantiu 2 mil hectares de território tradicional para mais de 60 famílias Kaingang, foi assinada no dia 19 de abril de 2011, depois de dez anos de espera.
Em sua decisão, o juiz federal Luiz Carlos Cervi concluiu que não há posse tradicional por parte dos Kaingang fiando-se nas condicionantes julgadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – Pet 3388 – no caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, mais especificamente o marco temporal da Constituição Federal de 1988. O juiz afirma que a ocupação Kaingang se deu em 2004, portanto depois de 5 outubro de 1988, o que, conforme a tese do marco temporal, retiraria dos indígenas o direito à terra.
Causou estranheza ao Cimi o fato de um juiz Federal estar alheio aos últimos julgamentos ocorridos na Corte Suprema do país. Votos em ações recentes, das últimas semanas e ano, como os da presidente do STF, ministra Carmen Lúcia, além dos ministros Ricardo Lewandowski, Luiz Fux, Edson Fachin, Dias Toffoli, no caso de um mandado de segurança envolvendo a Terra Indígena Morro dos Cavalos, Luís Roberto Barroso, Celso de Mello e Marco Aurélio são taxativos contra o marco temporal, impondo sucessivas derrotas aos defensores da tese, que a usam vulgarmente dando de ombros à Constituição.
Para os ministros do STF, ou sua maioria, as condicionantes estão restritas à Raposa Serra do Sol. Em recente voto no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) 3239, que questionava o decreto que regulamentava o procedimento de titulação dos territórios Quilombolas, o ministro Luiz Fux assim se pronunciou quanto ao marco temporal, alicerce da ação: “Não há lugar para a aplicabilidade do marco temporal e de outras condicionantes. Eu aduzo que a interpretação gramatical do artigo 68 dos Atos das Disposições Transitórias da CF/1988 não encontra qualquer referência em datas ou parâmetro temporal, ao contrário, vê reconhecida a propriedade definitiva. O dispositivo declara o direito de propriedade sem delimitar marcos temporais”.
Na mesma ação, o ministro Edson Fachin declarou: “Se, já em relação à questão indígena, o marco temporal enseja questionamentos de complexa solução, até mesmo em virtude da positivação do direito em diversas leis e constituições anteriores à Constituição vigente, em relação ao reconhecimento do direito à propriedade das terras tradicionais quilombolas a questão se revela com contornos ainda mais sensíveis”. O decano do STF, Celso de Melo, chegou a citar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e que o dever do STF é proteger, na democracia, as “minorias” das “maiorias”.
Já o ministro Ricardo Lewandowski considerou como “prova diabólica” a exigência do marco temporal de que o povo indígena ou comunidade quilombola tenham que provar, a partir de toda violência que sofreram, a ocupação tradicional. Para o ministro, o autor da ADI “não logrou demonstrar ainda que minimamente as supostas violações constitucionais do decreto (de titulação das terras quilombolas). O autor está revelando mero inconformismo com os critérios adotados pelo decreto. Não se conforma com esses critérios e quer impor à corte e à sociedade os próprios critérios”.
Portanto, a decisão de primeira instância da Justiça Federal de Erechim, ao suspender os efeitos do procedimento de demarcação da terra Kaingang, destoa terrivelmente dos pronunciamentos recentes de ministros da Corte Suprema quando provocados por julgamentos em Plenário – não em vídeos no youtube ou em declarações à imprensa na antessala das sentenças, o que denota personalidades mais atrás de publicidade junto a associados políticos do que preocupadas com posturas austeras e focadas no rito legal.
Em seu canal no youtube, o procurador estadual do Rio Grande do Sul, Rodinei Candeia, comemorou a sentença do juiz de Erechim. Afirmou que a decisão de primeira instância consolida a posição do STF em favor das condicionantes de Raposa Serra do Sol, ou seja, o marco temporal. Candeia destaca que a decisão “desmancha as ações” constitucionais da Fundação Nacional do Índio (Funai), que, também constitucionalmente, é “apoiada” pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
O procurador acusa o Cimi de “incitar” demarcações: “O caso demonstra mais uma vez que as demarcações incitadas pelo Conselho Indigenista Missionário da Igreja Católica e promovidas pela FUNAI, com apoio incondicional do Ministério Público Federal, são inconstitucionais e causam inúmeros conflitos graves”. Ele já acusou o Cimi, comumente sem provas, de ter levado os Guarani Xeripá ao tekoha Mato Preto, como se os Guarani nunca tivessem habitado o Sul e em específico nas terras que hoje está o estado do Rio Grande do Sul.
No entender do Cimi o procurador Candeia não sabe se comportar como um servidor público do Estado, haja vista que usa grande parte de seu tempo nas redes sociais para fomentar o conflito entre indígenas e agricultores no interior do Rio Grande do Sul. Ele, ao que parece, toma partido nas questões e litígios com o intento de chamar para si a atenção daqueles que ele entende serem potenciais eleitores, especialmente agricultores e parcelas da população que não conhecem a realidade indígena e muito menos são informadas acerca dos reais interesses políticos e econômicos que este procurador defende. Na prática, pelo que se sabe, ele tenta se alçar, para além da procuradoria do estado, a cargos na política partidária e por isso age como um pregador de intrigas e difamações contra aqueles que defendem os direitos dos povos indígenas no Brasil.
Os Kaingang da Terra Indígena Passo Grande do Rio Forquilha passaram recentemente por um triste episódio, que até marca vidas tão doloridas quanto guerreiras num país e estado onde seus direitos são habitualmente negados. Em uma operação que contou com 180 homens das polícias Federal e Militar, cães, cavalos e helicóptero, oito indígenas Kaingang e três agricultores foram presos em 23 de novembro de 2016. A história começa com os os Kaingang acusados, sem provas, de atearem fogo em uma lavoura de trigo. O prefeito em exercício de Sananduva, Leovir Benedetti, decretou “estado de calamidade pública em decorrência da situação danosa e de violência causada por atos de indígenas”. Os detidos foram acusados pelos crimes de “organização criminosa com fins de extorsão e incêndio criminoso”.
Na ocasião o Cimi produziu um relatório, entregue ao Ministério Público Federal, denunciando os relatos dos indígenas sobre abusos da operação.
Portanto, os fatos – ação policial truculenta, prisões e anulação da demarcação – se relacionam em uma cadeia de desgraças programadas lançadas sobre os Kaingang. Os povos indígenas, primeiros habitantes do Brasil, são vítimas da ganância e da intolerância de parcelas da sociedade que os tratam como estrangeiros em suas próprias terras. Lamentavelmente, neste contexto, os seus direitos constitucionais são tratados e interpretados na esteira dos interesses políticos e econômicos em disputa. O Poder Judiciário deveria ser o balizador da justiça, e isso dele muito se espera.
Conselho Indigenista Missionário – Regional Sul
Brasília, 07 de março de 2018.
Fonte: CIMI
INTERSINDICAL – Central da Classe Trabalhadora
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