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Paulo Kliass | Dívida Pública e juros intocáveis

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  • Paulo Klias*

Essa amarra imposta pela lógica da dívida pública suga recursos de todos os setores e os drena em direção ao parasitismo financeiro.

O Ministério da Fazenda (MF) acaba de divulgar o Relatório Mensal da Dívida Pública Federal, com informações atualizadas até o mês de julho. A Secretaria do Tesouro Nacional (STN) é o órgão encarregado pela elaboração do documento mensalmente, oferecendo um pouco de transparência para quem pretende acompanhar a evolução das finanças públicas em nossas terras.

Há muitas formas distintas de se avaliar o desempenho da situação fiscal dos países. No caso brasileiro, a coisa não poderia ser diferente. A primeira variável que os analistas costumam invocar é a dívida pública. A preocupação é justificável, mas enfocar apenas o tamanho da mesma tem pouco significado. O que mais interessa é a capacidade de pagamento e a sustentabilidade da mesma, que deve guardar alguma relação com a própria dimensão da economia nacional. Surgem então indicadores a serem utilizados, como a relação Dívida Pública/PIB.


À medida que se tornam mais sofisticados os modelos de análise, surgem novos indicadores da situação fiscal. Alguns dizem que não seria adequado utilizar o conjunto da dívida sobre PIB, uma vez que há uma parcela dos títulos do Tesouro que ficam de posse de instituições do próprio governo, como o Banco Central, fundos financeiros públicos, empresas estatais, etc. Outros ainda lançam mão da idéia das próprias reservas internacionais, que poderiam ser utilizadas para contrabalançar o peso da dívida externa, por exemplo. A partir desse tipo de avaliação, surge o conceito de “dívida líquida do setor público”, em oposição à variável de dívida bruta. Enfim, há inúmeras maneiras de operar com esse tipo de informação. E assim, no calor do debate, os analistas lançam de uns ou outros indicadores para tentar justificar suas proposições.


No entanto, no caso brasileiro existem diferentes formas do Estado brasileiro se endividar, em razão de nosso desenho institucional federativo. Assim, há possibilidade da parcela da dívida pública considerada ter sido um compromisso emitido pela União, pelos Estados e pelos Municípios. Mais ainda, as empresas estatais têm personalidade jurídica própria e muitas vezes são utilizadas para contrair empréstimos. Apresento aqui tais alternativas não como crítica a uma ou outra forma de endividamento. Apenas para demonstrar como a análise de conjunto é bastante complicada.


Caso queira se dedicar à dimensão que atualmente é a mais significativa em termos econômicos, é razoável se debruçar mesmo sobre a dívida federal. Ocorre que aqui, novamente, há dois subconjuntos bastante distintos. Um deles refere-se ao componente externo da mesma – dívida do Estado brasileiro emitida em moeda estrangeira. A outra parcela é relativa à dívida interna, composta por diferentes tipos de título público. No entanto, a partir da estabilização econômica obtida com o Plano Real assistiu-se a uma redução paulatina da participação do componente externo da dívida federal. Atualmente, ela representa apenas 5% do total. O grosso do endividamento é composto por papéis conhecidos por suas siglas, como LFTs, LTNs e NTNs – 95% da dívida é interna.


O total do estoque da dívida federal é de R$ 2,6 trilhões. Apesar do montante assustador, ele é razoável para um PIB cujas estimativas o situam em valor próximo a R$ 6 trilhões. Afinal, como teria dito o ex-Ministro Delfim Netto à época das negociações da dívida na década de 1980, “dívida não se paga; dívida se rola”. No fundo, a frase de efeito traduz com veracidade a sistemática de negociação e repactuação da própria dívida. Por mais que o estoque trilionário de compromissos seja relevante, o que importa a cada conjuntura considerada é a capacidade de pagamento das obrigações, ou seja, o cumprimento dos juros previstos nas cláusulas contratuais dos títulos.


Segundo essa abordagem, fica evidente a armadilha imposta pelos interesses do financismo global sobre as economias nacionais, em especial os países que não fazem parte do seleto clube dos desenvolvidos. E aí surgem as palavrinhas mágicas, como tripé de política econômica e superávit primário, entre outras. Convertem-se em verdadeiros dogmas a serem perseguidos pelos responsáveis governamentais, sob o risco de se verem objeto de campanhas de isolamento, difamação e perseguição pelos meios de comunicação. Como o total da dívida pode ser rolado para uma busca de solução no futuro, os agentes do mercado financeiro querem ter assegurado no presente o pagamento continuado dos juros embutidos nos títulos. Falar em auditoria da dívida, então, é heresia condenatória a purgar nos últimos círculos do inferno até o final dos tempos.


No caso específico dessa parcela da dívida do setor público brasileiro, o comprometimento com juros é abissal. Ou seja, apesar do estoque total não ser tão preocupante, o volume de recursos drenados para o cumprimento de seu serviço é relevante. Ele comprime as dotações orçamentárias, retirando recursos para gastos socialmente essenciais e economicamente importantes. A composição do Orçamento Geral da União, por exemplo, prevê quase a metade dos recursos para uma rubrica dedicada a juros e serviços da dívida.


No caso do Relatório da STN aqui abordado, o montante de juros pagos somente no mês de julho somou R$ 40 bi. Esse valor representa um crescimento de quase 100% em relação aos R$ 22 bi pagos em julho do ano passado. Para evitar qualquer avaliação mais imediatista ou fruto de variações atípicas, podemos buscar a identificação de alguma tendência de médio prazo. E assim percebe-se que esse movimento de maior volume de juros já se apresenta há alguns meses. Julho não foi um ponto fora da curva.


As informações relativas à dívida federal demonstram que houve a alocação de R$ 211 bilhões para pagamento de juros para o período de janeiro a julho do presente ano. Não apenas o valor é enorme, como ele tem subido de forma exponencial ao longo do período recente. Na comparação com o ano passado, por exemplo, percebe-se que, de janeiro a julho, foram dispendidos R$ 131 bi. Assim, ao mesmo tempo em que todas as demais contas do gasto público estão sofrendo redução em nome do esforço para o ajuste fiscal, a conta de pagamento de juros subiu mais de 60% no mesmo período.


Uma das razões que explicam esse crescimento reside na orientação da política monetária. Apesar de haver títulos públicos federais com diferentes tipos de indexadores, a referência básica da remuneração da dívida pública continua sendo a rentabilidade oferecida pela nossa taxa oficial de juros. Em julho do ano passado, a SELIC estava no patamar de 11% ao ano. Começou uma trajetória de elevação em setembro e agora está em 14,25% anuais. Ora, trata-se de tratamento generoso oferecido pelo próprio Estado ao sistema financeiro, proporcionando rentabilidade elevada para seus títulos. Ao mesmo tempo em que exige esforço, provoca recessão, proporciona falência e apresenta o desemprego para o restante da sociedade.


Essa amarra imposta pela lógica da dívida pública suga recursos de todos os setores e os drena em direção ao parasitismo financeiro. Além disso, o caráter dramático do mecanismo se revela quando percebemos que um volume enorme do esforço nacional é direcionado ao financismo e que, mesmo assim, os números da dívida não param de crescer. Ao longo da última década, por exemplo, o Brasil pagou R$ 2,5 trilhões a título de juros da dívida e, mesmo assim, o estoque da mesma dobrou de tamanho.


O que mais impressiona é o verdadeiro mecanismo de blindagem que os meios de comunicação impõem para impedir a apresentação de alternativas à atual orientação de política econômica. Parece mais do que óbvia a necessidade de se rediscutir o atual pacto de silêncio comandado pelo rentismo. No entanto, qualquer movimento nessa direção implica redefinir aspectos estruturantes do modelo vigente. Isso significa questionar a elevação da taxa de juros como único instrumento para controle da inflação. Isso significa realizar uma auditoria na dívida pública, com o intuito de verificar efetivamente o que é legal e legítimo em sua composição atual. Isso significa estabelecer limites máximos anuais para o comprometimento de valores orçamentários com pagamento de juros.


No entanto, a hegemonia do capital financeiro reina absoluta. Seus porta-vozes conseguem convencer de que o momento é de sacrifício para todos. Na verdade, deveriam sentir vergonha dos lucros astronômicos obtidos pelos bancos. Para manter tal performance, os juros devem continuar intocáveis – tanto a taxa SELIC nas alturas, quanto o volume de recursos para pagamento do serviço da dívida.

*Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

Fonte: Carta Maior

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