Muito já se falou e agora tem se reiterado sobre a precarização dos direitos de trabalhadoras e trabalhadores perpetrada pela deforma trabalhista do Governo Temer. Você não leu errado nem se trata de erro de digitação: o projeto de lei recém aprovado no Senado, a pretexto de “reformar”, para “modernizar” (sic), efetivamente traz uma deformação das relações de trabalho, em franco e evidente prejuízo da classe trabalhadora.
Recente texto do juiz Souto Maior, no Justificando, explica isso pontualmente, à sociedade. Assino embaixo de suas colocações para poder, aqui, me focar em um aspecto mais geral, mas de fundamental importância. A saber, o caráter social da Constituição Federal de 1988.
Nossa Constituição consagra o constitucionalismo social, no sentido de voltado ao bem-estar social, à garantia do mínimo existencial a uma vida digna. Embora consagre o capitalismo, não aceita a “lei da selva” do mercado, que se autorregularia por uma “mão invisível”, supostamente focada na eficiência da economia (bem criticada enquanto “Mão do Diabo”, já que, na prática, notoriamente só gera maior concentração de renda). Na linha da argumentação jurídica como um caso especial de argumentação prática geral (tese de Alexy), sempre que destaco a diferença de texto normativo e norma, dou como exemplo o artigo 170 da Constituição[1].
Explico que, por mais que se entenda que a planificação econômica do socialismo seria a “melhor” forma de lidar com os meios de produção, o artigo 170 da Constituição, ao consagrar a livre iniciativa e a ordem econômica, constitucionalizou o capitalismo, de sorte que leis que implantem o socialismo no Brasil seriam inconstitucionais. Ao mesmo tempo, digo que, considerando que o mesmo artigo condicionou a ordem econômica e a livre iniciativa à dignidade da pessoa humana e à valorização do trabalho humano, bem como a diversos outros princípios, como a proteção do consumidor e do meio ambiente ecologicamente equilibrado, então seriam igualmente inconstitucionais leis consagradoras do liberalismo laissez-faire, que impeçam o Estado de intervir na economia para proteção de trabalhadoras e trabalhadores, na linha da nefasta decisão da Suprema Corte dos EUA, em Lochner vs New York, do início do século passado. Basta mera leitura do referido texto normativo para se chegar a tais conclusões e, assim, perceber-se a norma constitucional consagradora do Estado de Bem-Estar Social.
Ou seja, um Estado de economia capitalista, mas que deve garantir o mínimo existencial a uma vida digna de cidadãs e cidadãos em geral e de trabalhadoras e trabalhadores no particular. Um “capitalismo controlado”, proibida a exploração de uns(mas) por outros(as).
O espírito da Constituição Federal de 1988, portanto, é emancipatório, focado na proteção das pessoas mais fracas. Qualquer interpretação de dispositivos constitucionais deve respeitar essa ideologia de bem-estar social, imanente ao texto constitucional como um todo, sob pena de ideológica deturpação da ratio (a razão de ser) da Constituição como um todo.
Nesse sentido, o princípio da igualdade material, que demanda tratar desigualmente situações desiguais, quando haja motivação lógico-racional que isto justifique, precisa ser interpretado de acordo com esse espírito emancipatório da nossa Constituição Federal.
Ainda que se considere “lógico-racional” determinada diferenciação legal, ela só será constitucionalmente válida se não servir para aumentar as desigualdades sociais – que é, precisamente, o que a deforma trabalhista de Temer propicia.
Pelas razões citadas no texto de Soto Mayor, supra disponibilizado.
Não se pode negar o fato notório segundo o qual empregadores(as) e trabalhadores(as) encontram-se em situação desigual, a saber, uma evidente diferença de forças e condições negociais. Regra geral, esmagadoramente majoritária, trabalhadores(as) encontram-se em verdadeiro estado de necessidade, precisando de trabalho para receberem salários e, assim, conseguirem sobreviver. Não têm condições de negociar os precisos termos da relação laboral, que na ampla generalidade dos casos se equipara a um mero contrato de adesão[2]: ou o(a) candidato(a) a uma vaga de trabalho aceita as condições impostas pelo(a) contratante, ou não será contratado(a). Mas a temerária deforma trabalhista pega a exceção e a transforma em regra, ao presumir, de forma absoluta, que trabalhadores(as) estariam, sempre, em igualdade de condições com empregadores(as)…
Assim, configura verdadeiro escárnio dizer que o(a) trabalhador(a) poderá, agora, “negociar os termos do seu contrato de trabalho” com o(a) empregador(a). Ora, é mais do que notório que empregadores(as) impõem as condições de prestação de serviços na ampla generalidade dos casos. O(a) trabalhador(a) que não aceita tais condições é, eventualmente, demitido(a). Desafia a inteligência de pessoas racionais e de boa-fé qualquer afirmação que negue ou finja desconhecer tal realidade empírica. Isso é um fato objetivo tão evidente e empiricamente comprovada que só pode ser considerada de má-fé ou, na melhor das hipóteses, ignorante a pessoa que diga isto desconhecer ou discordar… Pois é tão empiricamente notória e comprovada tal realidade objetiva que negá-la implica, na melhor das hipóteses, em violação do princípio da boa-fé objetiva, enquanto padrão de conduta imponível à pessoa mediana, segundo a lógica de que, se realmente não sabia, então tinha obrigação de saber…
Com efeito, não se pode seriamente dizer que trabalhadores(as) teriam “igualdade de condições” relativamente a empregadores(as) para negociar os termos do contrato de trabalho. Na prática, estes(as) impõem suas condições, na mesma lógica dos contratos de adesão consumeristas (aliás, sobre o caso da diminuição da hora de almoço por “negociações” individuais, alguém realmente acredita que uma empresa irá permitir que cada empregado escolha aquilo que lhe é mais conveniente ao invés de impor meia hora ou uma hora para todas e todos?!).
Então, o pressuposto da deforma temeriana, de “igualdade de condições” entre trabalhadores(as) e empregadores(as), é falso, dada a notória desigualdade fática entre as partes.
De sorte a ser inconstitucional essa equiparação de desiguais – e tratar igualmente situações/pessoas desiguais é notória hipótese de violação do princípio da isonomia… O que se aplica, também, a muitas hipóteses de convenções coletivas, pois existem inúmeros sindicatos sem efetivo poder de negociação com sindicatos patronais. Falar como se sindicatos “sempre, inexoravelmente”, estivessem em “igualdade de condições” implica em “presunção absoluta” (que não admite prova em contrário, mesmo que existente), num fechar os olhos a notória realidade empírica…
Assim, por exemplo, a possibilidade legal de “quitação anual de verbas trabalhistas”, durante o contrato de trabalho, evidentemente possibilitará que o(a) empregador(a) que não pagou todas as verbas trabalhistas exija a assinatura desse termo, sob pena de demissão de quem não o assinar, com altíssimo ônus da prova a quem alegar coação, enquanto vício de consentimento – isso se tal causa de pedir for aceita (como deve ser), já que a intenção disso é proibir litígios trabalhistas sobre tais verbas…
Da mesma forma, a “prevalência do negociado sobre o legislado”, ainda que para pior, viola a garantia constitucional do mínimo existencial a uma vida digna e da vedação do retrocesso social a trabalhadoras e trabalhadores. Permite a exploração do trabalho humano sem garantia de nada em troca. Em dois julgados que isto permitiram, o STF afirmou que deveria haver uma “troca” de algum direito (presumivelmente legislado) por outro (negociado), desde que a troca respeitasse o “princípio da razoabilidade”[3], segundo um dos julgados, ou os “patamares civilizatórios mínimos”[4], segundo o outro.
Mas sequer isso não consta da temerária deforma trabalhista… ao passo que esses conceitos, de tão abertos, trarão o célebre problema, tradicionalmente apontado sobre a noção de razoabilidade: será razoável ou respeitará patamares civilizatórios mínimos aquilo que o Supremo Tribunal Federal entender como tal… O princípio da segurança jurídica manda seríssimas lembranças sobre tema tão sensível e que, por isso, precisaria estar legalmente estipulado – por regras, de aplicação silogística, não por princípios, normas finalísticas de concretização argumentativa…
“Curioso”, ademais, como se quer tirar poderio financeiro dos sindicatos, ao mesmo tempo em que se quer dar a eles o poder de dar “prevalência ao acordado sobre o legislado”… Só não vê o intuito de vulnerabilizar trabalhadores(as) com isso quem não quer – pois mesmo que se conclua pela necessidade de retirada da obrigatoriedade (mitigada[5]) do (módico[6]) imposto sindical, isso deveria se dar, no mínimo, com um período de transição, para que os sindicatos pudessem se preparar para essa nova realidade… Entenda-se, não questiono aqui, até por desconhecimento empírico, a generalizada denúncia de que muitos sindicatos funcionam como “cabides de emprego” (sic), despreocupados com a efetiva proteção de trabalhadores(as).
O que questiono é mudar-se do vinho para a água, num giro de 180º, sem um período de transição para que pudessem, os sindicatos, se adequar à nova realidade e, assim, mudar suas condutas atuais e terem postura efetivamente (mais) representativa da classe que representam (já que esta é a crítica). Pois serão estes sindicatos, agora precarizados, pois sem a renda que sempre lhes abasteceu, que negociarão com os sindicatos patronais termos que poderão “prevalecer sobre o legislado”…
Em suma, há total incompatibilidade da temerária deforma trabalhista com o constitucionalismo social imanente ao espírito emancipatório Constituição Federal de 1988. O pressuposto alardeado por seus defensores é falso, pois ela não beneficiará trabalhadores(as) em geral. É fato notório que nenhum lugar do mundo retirada de direitos e precarização beneficiarão a classe trabalhadora – e nenhuma prova disso foi apresentada (até porque inexistente), ao passo que fatos notórios não supõem comprovação (art. 374, I, do CPC/2015). Embora a jurisdição constitucional deva ter deferência com o Legislativo no controle das prognoses deste, a posição mais razoável é a que, embora sem exigir perfeccionismo probatório, que poderia inviabilizar a política (feita, afinal, de escolhas), precisa exigir pelo menos alguma provapara que se possam restringir direitos fundamentais, como os direitos sociais. Como nada disso foi apresentado, tendo o tema ficado em meras frases de efeito, pautadas por puro achismo parlamentar, o princípio da vedação do retrocesso social resta violado, sendo mais um motivo de inconstitucionalidade da deforma trabalhista em questão.
Se o Supremo Tribunal Federal (STF) referendar essa deforma, então se provará como uma Corte Liberal, pautada no nefasto liberalismo laissez faire, absolutamente contrário ao artigo 170. Uma Corte progressista nos costumes (algo a ser, sempre, valorizado, não obstante pertinentes críticas, sobre outros temas, também devam ser feitas), mas altamente conservadora na economia, legitimadora da proteção da classe patronal, em prejuízo à classe trabalhadora – inclusive porque a temerária deforma trabalhista é baseada na deforma espanhola, que teve esse efeito de precarização, que, se diminuiu o desemprego formal, legitimou legalmente subempregos que mal pagam as contas do mês, gerando trabalhadores(as) desencantados(as) e desesperançosos(as).
Deforma esta que nos retrocederá ao século retrasado, como declarou a ANAMATRA – Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho. Pois, embora os discursos em sua defesa não o assumam, ela, inequivocamente, precarizará as relações de trabalho. Como disse Souto Maior, só não percebe isso quem não lê seu texto (pressupondo a boa-fé do interlocutor). Ou, acrescento, quem quer fechar os olhos à realidade.
E, se o STF vai se assumir como uma Corte Liberal, poderia assumir, pelo menos, um liberalismo compatível com o Estado de Bem-Estar Social imposto pela Constituição Federal de 1988, como o liberalismo de John Rawls, cujo notório segundo princípio de justiça só admite desigualdades econômicas e sociais que redundem os maiores benefícios possíveis para os menos beneficiados [7] – algo que, como visto, não é o caso, sendo, simplesmente, indefensável dizer o contrário. Pelo menos a pessoas racionais e de boa-fé que conheçam, minimamente, a realidade empírica sobre o tema, Brasil e mundo afora.
Paulo Roberto Iotti Vecchiatti é Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino/Bauru. Especialista em Direito Constitucional pela PUC/SP. Especialista em Direito da Diversidade Sexual e de Gênero e em Direito Homoafetivo.
[1] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I – soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País”.
[2] É óbvio que não estou dizendo que o Direito do Trabalho se equivale ao Direito do Consumidor, ou que a relação de trabalho seria uma “relação de consumo”. Apenas destaco que, em ambos os casos, há vulnerabilidade (material) e hipossuficiência (processual) de uma parte [trabalhador(a)/consumidor(a)] frente à outra (empregador(a)/fornecedor(a)].
[3] STF, RE 895.759/PE, Rel. Min. Teori Zavascki, DJe de 13.09.2016.
[4] STF, RE 590.415/SC, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 30.04.2015, DJe de 29.05.2015. Nos termos do acórdão: “38. Por outro lado, ao aderir ao PDI, a reclamante não abriu mão de parcelas indisponíveis, que constituíssem ‘patamar civilizatório mínimo’ do trabalhador. Não se sujeitou a condições aviltantes de trabalho (ao contrário, encerrou a relação de trabalho). Não atentou contra a saúde ou a segurança no trabalho. Não abriu mão de ter a sua CNTP assinada. Apenas transacionou eventuais direitos de caráter”.
[5] Já que sempre foi possível não paga-lo, mediante notificação do sindicato respectivo.
[6] Um dia de trabalho por ano não parece nada que, realmente, pese a trabalhadores(as) em geral.
[7] Eis a íntegra do princípio: “As desigualdades econômicas e sociais devem ser distribuídas de forma que, simultaneamente: (a) redundem nos maiores benefícios possíveis para os menos beneficiados, de uma forma que seja compatível com o princípio da poupança justa; (b) sejam a consequência do exercício de cargos e funções abertos a todos em circunstâncias de igualdade equitativa de oportunidades”. O primeiro princípio, ao qual Rawls dá primazia, estabelece que “Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras”. Quais seriam essas liberdades é um tema que pode ser debatido. Para Rawls, elas seriam a liberdade política, de expressão e reunião, de consciência e pensamento, as liberdades pessoais, o direito à propriedade pessoal e a proteção contra a prisão arbitrária. Ainda segundo Rawls, os dois princípios são um modo equitativo de enfrentar a arbitrariedade da sorte; a ideia intuitiva é que, se o bem-estar de todos depende de um sistema de cooperação, sem o qual ninguém teria uma vida satisfatória, a divisão das vantagens deve suscitar a cooperação voluntária de todos que dela participam, incluindo-se os que estão em situação menos favorável. Esses princípios se aplicam em primeiro lugar à estrutura básica da sociedade, regem a atribuição de direitos e deveres e regulam a distribuição das vantagens sociais e econômicas, a qual se refere aos bens primários, coisas que todo indivíduo racional presumivelmente quer, não importando o que mais ele queira/deseje. Assim, continua Rawls, o primeiro princípio requer simplesmente que certos tipos de leis, aquelas que definem as liberdades fundamentais, se apliquem igualmente a todos e permitam a mais abrangente liberdade compatível com uma liberdade semelhante para todos, sendo que a única razão para restringir as liberdades fundamentais e torná-las menos extensas é que, se isso não fosse feito, interfeririam umas com as outras. Já o segundo princípio, aduz, exige que todos se beneficiem das desigualdades permissíveis na estrutura básica. Cf. RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Tradução de Álvaro de Vita, São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2008, pp. 376-377 (para a íntegra dos princípios e regras de prioridade).
Fonte: Justificando.com
INTERSINDICAL – Central da Classe Trabalhadora
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