Estamos preocupados, e temos muitas razões para isso, com a avalanche representada pelo PLC 30 de 2015, cuja pretensão altamente destrutiva, compromete os pilares do direito do trabalho. Regulamentar a terceirização implica alterar radicalmente a base jurídica da relação capital x trabalho, permitindo que na realidade da vida ela continue exatamente igual: uma troca entre dois lados, marcada pela desigualdade e pelo assujeitamento.
Existe, porém, uma marcha silenciosa que tem passado desapercebida e que complementa essa ânsia pelo desmanche dos direitos trabalhistas. Um desses movimentos de destruição que precisam da nossa atenção, é o que se pretende perpetrar com o PL 8294 de 2014, que propõe alteração no artigo 444 da CLT. Esse artigo, ao estabelecer a impossibilidade de pactuação de regras contrárias aos princípios e normas de proteção, constitui cláusula geral de indenidade ao trabalhador. Cláusula que, é bom recordar, sequer é respeitada em boa parte das relações de trabalho. Na medida em que não há garantia contra a despedida no Brasil, é bem difícil, para não dizer completamente fantasioso, impor ao empregador a observância efetiva dessa cláusula geral de proteção. Ainda assim, tal dispositivo é de extrema importância na lógica da construção de um estado social democrático e inclusivo, como pretende a Constituição de 1988. No mínimo, garante ao empregado a possibilidade de reconhecer, por meio da Justiça do Trabalho, a nulidade de ajustes que retirem ou mitiguem direitos trabalhistas. Portanto, é essencial para que impeçamos a instituição da barbárie, o retorno à lógica da oferta e da procura, pela qual tudo é passível de ser pactuado, dependendo exclusivamente da capacidade/necessidade de negociação dos sujeitos.
A norma do artigo 444 da CLT representa o que poderíamos chamar de parte integrante do patamar mínimo civilizatório. Daí a necessidade de combatermos esse projeto de lei, que vem tramitando apressadamente no Congresso Nacional.
O projeto pretende a inclusão de um parágrafo único no artigo 444 da CLT, com a seguinte disposição: “Os limites para livre estipulação do contrato de trabalho, estabelecidos no caput, não se aplicam quando: I – o empregado for portador de diploma de nível superior e perceber salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo do salário-de-contribuição da previdência social; II – o empregado, independentemente do nível de escolaridade, perceber salário mensal igual ou superior a três vezes o limite máximo do salário-de-contribuição da previdência social”.
A pretensão desse terrível projeto de lei é eliminar a proteção ao “contrato”, sob o argumento de que os “profissionais mais graduados ou com salários maiores” “são aptos o suficiente para decidir por si mesmos” e, por isso, não precisam de proteção. Note-se que a maior graduação consiste em formação acadêmica, atingindo praticamente todos os profissionais em áreas que exijam curso superior, como os profissionais da educação. A noção de que esses “altos empregados” devem ter “liberdade de estipular suas próprias condições contratuais de trabalho” é absurda, pois a dependência desses profissionais e, por consequência, as possibilidades de renúncia de direitos (irrenunciáveis) em face da necessidade de manter o posto de trabalho é mais forte, quanto maior for a remuneração percebida e o grau de escolaridade.
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Em artigo sobre o tema, Souto Maior refere, citando a definição de um dicionário sobre os altos empregados, que esses profissionais “estão sujeitos a jornadas de trabalho extremamente elevadas, interferindo, negativamente em sua vida privada”, bem como trabalham sob “constante ameaça do desemprego” e por isso se sentem forçados a “constante preparação e qualificação, pois que o desemprego desses trabalhadores representa muito mais que uma desocupação temporária, representa interrupção de uma trajetória de carreira, vista como um plano de vida, implicando crise de identidade, humilhação, sentimento de culpa e deslocamento social. Em suma, a sua subordinação ao processo produtivo é intensa, corroendo sua saúde e desagregando sua família” (http://www.amdjus.com.br/doutrina/trabalhista/268.htm).
Essa é uma realidade que todos conhecemos.
O argumento utilizado para subtrair desses trabalhadores a proteção do artigo 444 não é diferente da lógica hegeliana de que o homem pode ser proprietário de si mesmo e, desse modo, expressar sua autonomia através da venda de sua força física ou intelectual. Está também na compreensão clássica de que o contrato de trabalho, tal como qualquer outro contrato de compra e venda, é manifestação de vontade livre.
A história das relações de trabalho, porém, insistentemente nos mostra o engodo que se esconde nessas afirmações tão antigas quanto distanciadas da realidade. Não há liberdade para quem precisa trabalhar por seu sustento, e a regra geral, inclusive para os empregados bem remunerados e graduados, é exatamente essa. A alegação de que precisamos deixar de “tratar esses trabalhadores como se não soubessem escolher, por exemplo, quanto tempo levarão para almoçar, ou como suas férias podem ser divididas, ou qual é o melhor mês para receber o décimo terceiro salário” revela o verdadeiro intuito do projeto: a flexibilização ou até mesmo a supressão de direitos fundamentais. A liberdade contratual que se pretende outorgar a esses trabalhadores nada mais é do que um salvo-conduto para o ajuste de normas contrárias ao seu interesse, chanceladas em razão da necessidade de obter/manter o posto de trabalho.
Note-se que a possibilidade de exercer autonomia, melhorando sua condição de trabalho, já é outorgada pela legislação trabalhista, que estabelece parâmetros mínimos para esse “contrato”. Logo, é completamente dissociada da verdade, a afirmação de que os empregados são tratados como se precisassem “sempre de terceiros, seja Estado ou sindicato, para cuidar deles“. Trata-se de afirmação perversa, que consta num dos votos em defesa do projeto antes mencionado. Os trabalhadores têm e sempre tiveram a possibilidade de cuidar de si mesmos, o que eles não têm é garantia contra a perda súbita de sua fonte de subsistência ou mesmo contra a pressão de quem oferece trabalho. O que eles não tem é a possibilidade real de “negociar” num ambiente em que pactuam a troca de tempo de vida por remuneração. E o que essa lei pretende não é outorgar-lhes maior autonomia para que “negociem” em melhores condições, mas permitir a imposição de cláusulas lesivas, referidas inclusive na exposição de motivos, como o fracionamento ou supressão do direito às férias ou do repouso para descanso e alimentação.
Outra perversidade que se extrai desse discurso que propõe a alteração do artigo 444 da CLT é a conclusão – implícita na proposta -, de que os trabalhadores mal remunerados, ou não graduados, devem continuar a ser tratados como pessoas que não sabem cuidar de si mesmas. Essa distorção do discurso da proteção, que a desqualifica como uma tutela de incapaz, gera de imediato dois efeitos terríveis. De um lado, autoriza que os direitos fundamentais comecem a ser questionados, também em relação aos demais empregados, permitindo o retorno da malsinada discussão entre negociado e legislado. De outro, pressupõe a existência de duas classes de seres humanos. Alguns capazes de exercer autonomia (essa falsa autonomia do discurso liberal), outros não.
Resgata, ainda, o discurso surrado e insistentemente negado pela realidade das relações do trabalho, de que se os trabalhadores “sabem o que querem”, não precisam da justiça do trabalho nem do sindicato, para conquistarem condições adequadas e boas de trabalho. Com isso, também desprestigia a função dos sindicatos e, ao menos nesse tópico, é de uma franqueza louvável: pretende afastar tanto a proteção legal quanto a sindical, conquistada através da luta e do reconhecimento da força que a pressão coletiva tem condições de exercer no mundo das relações de trabalho.
Outro grave equívoco, por certo intencional, desse projeto de lei, é confundir subordinação com dependência econômica ou técnica. A doutrina trabalhista já há tempo rejeitou esse atrelamento. A proteção que incide sobre as relações de trabalho não está ligada às condições pessoais de quem trabalha, mas à circunstância de que nela está implicada uma troca desigual. O fato objetivo de que na relação de trabalho ocorre a troca de tempo de vida por remuneração é o elemento, historicamente reconhecido, que está no princípio da construção de normas tipicamente trabalhistas.
O PL 8294 de 2014 é, portanto, mais uma arma dos inimigos do direito do trabalho, que seguem mobilizados em trincheiras tão coesas quanto extremistas, com o claro objetivo de extingui-lo. Os fundamentos e a literalidade da proposta contida nesse PL implicam a adoção de um discurso no qual o direito do trabalho é dispensável. Então, o que nele se esconde é a reedição da vontade liberal de extinção da justiça do trabalho e, consequentemente, anulação da força de tensão, contenção e avanço dos direitos fundamentais trabalhistas.
Se os inimigos estão organizados em seu propósito de ataque e desconstrução do direito do trabalho, a resposta precisa ser ágil e efetiva. Esse projeto de lei está atualmente na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público. As entidades sindicais e os demais representantes de trabalhadores precisam estar atentos e intervir no processo legislativo para impedir que seja aprovado, sob pena de grave retrocesso.
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*Valdete Souto Severo – Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região. Especialista em Direito do Trabalho, Processo do Trabalho e Direito Previdenciário pela UNISC, Master em Direito do Trabalho, Direito Sindical e Previdência Social, pela Universidade Européia de Roma – UER (Itália), Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP. Diretora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS.
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