Em meio à pandemia do coronavírus e a ausência de políticas públicas que impeçam o avanço da doença nos territórios indígenas, aldeias pelo Brasil criaram, por iniciativa própria, barreiras sanitárias para coibir o acesso de pessoas de fora e garantir o isolamento nas comunidades. Um levantamento feito na última semana pelo De Olho nos Ruralistas identificou relatos de restrições de acesso em 23 etnias, em pelo menos doze estados, todos realizados com recursos dos próprios indígenas.
Troncos de árvores nas estradas, correntes, cercas, placas e vigilância 24 horas foram alguns dos mecanismos encontrados, mas os esforços coletivos são colocados em xeque por ameaças de madeireiros, garimpeiros e até a polícia e políticos locais. Até o momento três indígenas já morreram vítimas da Covid-19; um dos casos registrados foi o de um adolescente Yanomami de 15 anos, em Roraima. Líderes indígenas e especialistas temem um massacre.
Nem sempre os bloqueios são respeitados. No dia 4 de abril, uma ação da Polícia Militar invadiu a Terra Indígena Xakriabá, em Minas Gerais, com guinchos e viaturas, e abordou a população sem autorização dos líderes. De acordo com relato da comunidade enviado aos órgãos públicos, uma placa advertia que era proibida a entrada de não-indígenas no território. Quando os líderes souberam da ação, a polícia já estava lá dentro, com viaturas e um guincho.
“A Policia Militar invadiu, não respeitou e entrou e circulou na área inteira”, disse o cacique Santos, da aldeia Morro Vermelho. “Quando ficamos sabendo da ação, a polícia já realizava abordagens dentro da aldeia. Ele disse que a entrada da PM causou terror. “Não só pela ação que realizaram sem nenhum comunicado às lideranças da aldeia, mas também pelo coronavírus, esse perigo que pode vir com os policiais que são de diversas cidades da região”. A atividade colocou em risco a saúde coletiva do povo, que conta com aproximadamente 12 mil indígenas, e fragilizou ações que ocorriam há aproximadamente um mês. Trinta e sete aldeias compõem o território.
“Diante deste fato queremos informar que os casos de contaminação que por ventura surgirem a partir deste momento será também de responsabilidade do Governo do Estado de Minas Gerais”, informa o comunicado do povo Xakriabá.
Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a ação realizada pela Polícia Militar no Território Xakriabá contraria a Portaria nº 419, de 17 de março de 2020, emitida pela Fundação Nacional do Índio (Funai), que suspendeu as autorizações de entradas em terras indígenas por trinta dias. O documento do órgão indigenista do governo federal sustenta que povos indígenas devem ser entendidos como grupo de risco por suas condições sociais de saúde, o que exige uma atenção especial aos povos diante da pandemia.
Apesar da portaria que suspende as autorizações de entrada em terras indígenas de todo o país, o órgão publicou nesta segunda-feira (13) um alerta para que os indígenas não bloqueiem as estradas de acesso às aldeias durante a pandemia. A nota informa que “eventuais obstruções podem comprometer a circulação de pessoas e o abastecimento nas regiões”.
Na Bahia, entre os Tupinambá, o desrespeito a medidas de distanciamento social envolve não somente a polícia, como também políticos locais. No início de abril, os indígenas bloquearam uma das estradas de acesso à aldeia de Serra do Padeiro, no município de Buararema, no sul do estado. Em um ofício solicitando ajuda para retirada da barricada, o prefeito Vinicius Ibrann (PSDB) chamou os Tupinambá de “supostos índios”.
Em menos de dez dias, os indígenas foram abordados duas vezes em uma tentativa frustrada para convencê-los a desfazer a barreira. No dia 8 de abril, à noite, dois carros foram até a barricada no trecho da rodovia BA-688. O cacique Babau Tupinambá contou à reportagem que um delegado, cinco policiais militares e até um vereador, divididos entre um gol vermelho e uma caminhonete da Polícia Militar baiana, pararam os veículos e pediram que um dos oito indígenas presentes se aproximassem para negociar. A negociação durou menos de cinco minutos. Diante da negativa enfática, a comitiva foi embora.
Com a confirmação de três casos de contaminação no município de Buararema na última quinta-feira (09), o prefeito, que tentava persuadir pela liberação da via, recuou e bloqueou o acesso de outras entradas da cidade.
A antropóloga Daniela Fernandes Alarcon, que acompanha os Tupinambá, afirma que o isolamento, além de proteger a própria aldeia de contaminação, evita o contágio nas comunidades indígenas. “O grupo ainda tem na memória muito vivas as imagens das devastadoras epidemias que acompanharam a massiva penetração de não indígenas no território a partir do final do século 19, com o avanço da fronteira agrícola”, diz.
Para ela, a reação contrária à barreira causa indignação. “É um absurdo que uma medida tão importante, que conta com o apoio de sitiantes não indígenas que vivem no território, seja alvo de ataques repressivos e objeto de declarações racistas de uma autoridade pública”.
Na região do Território Indígena do Xingu (TIX), no Mato Grosso, a lembrança pelos anciões e anciãs de epidemias anteriores que dizimaram parte da população permanece viva. O medo de que a história se repita motivou o fechamento de todos os acessos por terra com troncos de árvores atravessados nas estradas. Segundo Ianukula Kaiabi Suia, presidente da Associação Terra Indígena do Xingu (Atix), que reúne 16 etnias, com 7.500 pessoas, as comunidades que têm acesso pela estrada são consideradas mais vulneráveis do que aquelas onde só se chega pelo rio.
Com o registro de contaminação por indígenas do Covid-19 por um médico, o povo Kokama está com receio até de receber as equipes de saúde. Em Canarana (MT), município mais próximo do TIX e onde os indígenas fazem compras, tiram dinheiro ou recebem benefícios do governo, foi confirmado nesta semana o primeiro caso de Covid-19, o que levou as comunidades a ficarem ainda mais apreensivas em relação às pessoas de fora. “Temos esse passado de dizimação por doenças e os mais velhos estão bastante assustados”, afirma Ianukula. “Nosso atendimento à saúde já é precário, imagina em um caso de pandemia. Não queremos esse passado de volta”.
Em Roraima, porta de entrada para a mineração na Amazônia, os indígenas da TI Barata Livramento montaram uma barreira na estrada e um esquema de vigilância que envolve vinte pessoas, divididas em turnos. Elas se organizam para garantir que ninguém de fora entre sem permissão, mesmo que o motorista garanta que o destino final não é comunidade, moradia de cerca de mil indígenas das etnias Macuxi e Wapichana.
Segundo Ademar Cavalcante, assessor regional das lideranças indígenas da região do Tabaio, tudo está sendo feito com recursos próprios. Um novo recrutamento será realizado para agregar novos voluntários para integrar o Grupo de Vigilantes Territoriais para um segundo bloqueio. Ele será criado para restringir o acesso territorial de outra entrada, a alguns quilômetros de distância. Um quebra-molas será construído para diminuir as velocidades dos carros, que chegam em sua maioria de Boa Vista, a cerca de 70 quilômetros.
De acordo com levantamento do observatório, há relatos de vários bloqueios dentro de uma mesma território, como o caso dos Guajajara, no Maranhão, com barreiras nas Terras Indígenas Arariboia e Caru. No Mato Grosso do Sul, há pelo menos duas comunidades da etnia Terena com acesso interrompido. Entre os Wapichana, em Roraima, são pelo menos cinco aldeias com algum tipo de barreira física. O Conselho Indígena de Roraima (CIR) informou, via assessoria de imprensa, que são muitos os relatos que chegam de que as comunidades do estado não param de fechar as portas.
Documento do Mecanismo de Peritos sobre os Direitos dos Povos Indígenas, órgão subsidiário do Conselho de Direitos Humanos, informa que as iniciativas dos povos indígenas de estabelecer medidas e controles de contenção na entrada dos seus territórios devem ser saudadas, além de respeitadas e apoiadas pelo Estado.
A fórmula de bloqueios nas estradas aliados à vigilância física está sendo aplicada pelos Guajajara, no Maranhão, em algumas aldeias da Terra Indígena Araribóia, e também pelos Munduruku, no Pará, na Reserva Indígena Praia do Índio. “Países de primeiro mundo que têm os melhores hospitais, médicos e cientistas e mesmo assim morreram, imagina nós que moramos em um lugar que não tem saneamento básico e quem passa mal tem que esperar na fila. Nós não estamos a salvo e vamos cuidar das nossas aldeias e dos nossos parentes”, afirma Alessandra Korap, líder do povo Munduruku.
No entanto, barreiras não significam, em muitos casos, que ninguém entra, mas também ninguém saia. O isolamento das aldeias já começam a gerar outro tipo de crise humanitária com a falta de alimentos e outros suprimentos, como anzol e combustível, necessários para garantir a caça e a pesca. Nem todos os territórios são autossustentáveis e a ida para as cidades mais próximas em busca de itens de necessidades básicas acontecem a todo momento. (Leia mais: Conheça as campanhas que arrecadam dinheiro para populações indígenas em meio à pandemia.)
A recomendação da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) é que indígenas não se direcionem às cidades. Mas um levantamento realizado pela Swiss Indigenous Network, entre os dias 24 e 27 de março, mostra que mesmo as aldeias que produzem a própria alimentação estão com dificuldades e não conseguem cultivar ou caçar para o consumo interno. Os indígenas ouvidos justificaram que, devido às secas e condições climáticas desfavoráveis, a mobilização de animais na mata e o clico da terra, das águas sofreram mudanças desfavoráveis às aldeias neste período.
É o que acontece na Aldeia São Domingos, no município de Luciara, no Mato Grosso, onde habita parte dos Karajá. A cacique Sandra Kuady conta que eles instalaram há quize dias uma barreira, não só para evitar a entrada de pessoas de fora, mas também a saída. No entanto, não houve consenso e o entra e sai continua, com alguns membros da comunidade que se deslocam para comprar alimentos, pois o que é produzido localmente não é suficiente para todos. Ela tem tentado diminuir as idas para Luciara com a distribuição de cestas básicas, mas não sabe até quando terá recursos para manter a iniciativa.
Na aldeia Tekoa Takuaty, do povo Guarani Mbya, em Paranaguá, no Paraná, apenas uma pessoa está autorizada a ir para a cidade, segundo a cacique Juliana Kerexu. Ela contou que o bloqueio e a vigilância não estavam funcionando para impedir a saída.
“Em sua maioria, as aldeias estão fechadas sem permissão para que pessoas saiam ou entrem, de forma a proteger os seus moradores”, diz trecho do relatório final da análise da Swiss Indigenous Network. “Por este mesmo motivo, as famílias encontram-se em situação de extrema necessidade e fome, pois muitos trabalhavam fora das aldeias como artesãos, trabalhadores informais ou em extrativismo”.
Em nota, a Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Estado do Ceará (Fepoince) lembrou que os povos indígenas, ao longo dos séculos, foram fortemente atingidos por epidemias, como gripe, varíola, tifo e sarampo. As doenças levadas por não indígenas dizimaram milhões de pessoas indígenas, causando o extermínio de muitos povos originários.
“Se faz necessário todo cuidado e resguardo para com os povos indígenas”, alerta Ceiça Pitaguary, coordenadora da Fepoince.
— Nesse momento conclamamos a todas as pessoas que se resguardem nas suas casas. E aos nossos irmãos indígenas que não saiam de suas aldeias. Mais do que nunca precisamos fechar as porteiras das aldeias, não precisamos de visitas nesse momento. Poderemos receber nossos parentes não indígenas quando esse grande mal passar.
Fonte: CIMI
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