China se move para aumentar a proteção aos entregadores de comida por aplicativo

Imagem: Comunicação da Intersindical
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Novas medidas adotadas pela China obrigam apps de entrega a pagar mais que o salário mínimo e garantir seguros e descanso a entregadores

Por Gabriel Deslandes | Revista Opera

Autoridades reguladoras da China obrigaram as plataformas de aplicativo de entrega de comida a assegurarem benefícios sociais e proteções legais aos seus entregadores. As empresas associadas à gig economy (“economia colaborativa”) deverão garantir a seus funcionários uma renda básica acima do salário mínimo, seguridade social, direito à atividade sindical e um relaxamento nos prazos de entrega.

As medidas, que visam libertar os entregadores de aplicativos de demandas irracionais impostas por algoritmos, consistem em mais um aperto no controle das gigantes nacionais de tecnologia – as Big Techs – pelo governo chinês, forçando o setor a priorizar os direitos do consumidor e do trabalhador. Emitidas pela Administração Estatal de Regulação do Mercado (SAMR) juntamente a outras sete agências administrativas, as novas diretrizes atingem em cheio a maior companhia de serviços de entrega do país, a Meituan. As regulações mais rígidas fizeram as ações da empresa despencar 18% na Bolsa de Hong Kong, perdendo 60 bilhões de dólares em seu valor de mercado por dois dias seguidos, segundo o Yahoo Finance. O setor de plataformas digitais foi também impactado pelas reformas anunciadas para a área de educação privada online, acusada de ter sido “sequestrada pelo capital”.

Com mais de três milhões de funcionários entregando uma média de 27 milhões de pedidos de alimentos por dia na China, a Meituan tem apresentado um crescimento meteórico nos últimos anos. A companhia registrou uma receita de 37 bilhões de iuanes no primeiro trimestre de 2021, uma alta de 120% em relação ao ano anterior – consequência da importância do comércio eletrônico durante a pandemia da Covid-19 para manter o abastecimento das cidades. De acordo com a própria Meituan, o número médio diário de transações de entrega de alimentos da empresa aumentou 113,5% em comparação a 2020, com a receita média por pedido de 0,38 iuanes, ante uma perda de 0,05 iuanes no ano anterior.

Esses ganhos, todavia, parecem não ter chegado até os trabalhadores. As novas regras regulatórias são, na prática, uma resposta às crescentes reclamações de motoristas de aplicativos que não contam com quaisquer salvaguardas trabalhistas. A Meituan e a Ele.me – outro aplicativo de delivery, pertencente à holding Alibaba – têm sido objeto de duras críticas nas redes sociais chinesas pelo tratamento dispensado a seus entregadores.

Nesse contexto, a deliberação da SAMR aconteceu poucos dias após o Ministério de Recursos Humanos e Previdência Social (MOHRSS) emitir pareceres orientando as empresas de plataformas digitais a se responsabilizarem pelos direitos básicos dos trabalhadores nas “novas formas de emprego”. “Os dois conjuntos de diretrizes tornam mais clara a relação jurídica entre as plataformas online e os gig workers, o que costumava ser muito polêmico, uma vez que plataformas como Meituan e Ele.me terceirizavam seus serviços de entrega para outras empresas”, disse ao South China Morning Post o advogado no escritório de Hangzhou da Yingke Law Firm, Liu Jia.

Entre as determinações estabelecidas pelo órgão regulador chinês, está a de que os trabalhadores devem ganhar acima do salário mínimo e ter acesso à seguridade social e comercial para cobrir acidentes e doenças. As companhias também foram obrigadas a criar entidades sindicais e estimular seus funcionários a se envolverem nas atividades desses sindicatos, de modo que possam participar das negociações por direitos trabalhistas. Foram exigidos ainda capacetes de segurança para motociclistas, recipientes para guardar as refeições e estações de descanso.

Outra mudança está no algoritmo usado para avaliar o desempenho de cada entregador, que deve ser mais flexível e oferecer mais tempo para o funcionário concluir suas entregas. É esse algoritmo que determina para onde eles vão e quantas entregas devem fazer em um dia. Um problema recorrente é que o rastreamento de GPS desse tipo de aplicativo não costuma levar em consideração variáveis ​​humanas, como engarrafamentos, bloqueios em estradas e mudanças de endereço na última hora por parte do cliente, ou seja, fatores que podem causar atrasos. Logo, caso um pedido atrase ou um cliente reclame, o entregador pode ser penalizado com desconto de até metade do salário do dia somente por uma infração.

Exploração digital dos trabalhadores

O aprimoramento das regulações da gig economy – como é conhecido o setor marcado por prestação de serviços temporários sob demanda e sem vínculos empregatícios – representa um marco para as relações de trabalho na China. Essa é uma categoria de trabalhadores acostumada a pouco espaço para negociação.

Segundo South China Morning Post, o tipo de relacionamento que um funcionário tem na China com uma empresa determina a que ele tem direito de acordo com a lei. “Não existe uma relação de emprego direta entre a maioria dos motoristas e as plataformas. Assim, os entregadores trabalham para elas como funcionários terceirizados, de modo que as plataformas não têm obrigação de lhes pagar a previdência social”, ressaltou o advogado do Beijing Jia Shan Law Firm, Chang Liang.

Ao baixar o aplicativo, os gig workers – chamados na China de zhongbao (众 包) – aceitam um acordo padrão, que pode ser alterado pela própria empresa a qualquer momento sem aviso. Foi o que aconteceu, por exemplo, no início de março de 2021, quando a Meituan repentinamente diminuiu a quantia ganha pelos entregadores por cada pedido. Em retaliação, os trabalhadores entraram em greve contra a redução nos pagamentos em, pelo menos, duas cidades da província de Zhejiang – Shenzhen e Tongxiang – e em Linyi, na província de Shandong.

Protestos e greves tendem a ser o único recurso desses trabalhadores para canalizar suas insatisfações para uma ação coletiva. É o que descobriu um estudo da professora do Departamento de Sociologia de Harvard, Ya-Wen Lei. Ela analisou como os aspectos tecnológicos, legais e organizacionais de controle e gestão por parte das plataformas de aplicativo tornam os entregadores mais propensos a verem suas relações de trabalho como exploratórias e a se mobilizarem em solidariedade de classe, a despeito de todo o processo de atomização. Dito de outra forma, a pesquisa de Lei sugere que a maneira como as plataformas tratam sua força de trabalho pode instigar inquietações trabalhistas, acirradas na medida em que o debate sobre a regulação da gig economy se intensifica em outros países.

Em seu estudo, a professora acompanhou, entre 2017 e 2019, 68 operários que abandonaram seus empregos em linhas de montagem de fábricas para labutar como trabalhadores de aplicativos. Os participantes da pesquisa eram, na maioria, migrantes do sexo masculino que reclamavam de, nos empregos anteriores, passarem a maior parte do tempo em somente três lugares: seus dormitórios, a fábrica e o refeitório. Por outro lado, eles alimentavam uma visão idílica do que seria o trabalho para as empresas de aplicativo, em que supostamente poderiam definir seus próprios horários e serem seus próprios patrões. “A liberdade significava muito para esse grupo de pessoas”, afirmou Lei ao portal Rest of World.

Contudo, a realidade rapidamente se mostrou frustrante e, em função de um ano, alguns desses funcionários começaram a protestar contra seus novos empregadores. Embora seu mundo tenha se expandido para além do chão da fábrica, agora eles não dispunham de contratos formais de trabalho, tinham pouca relação com seus chefes humanos e eram forçados a lidar com a mudança constante de regras e requisitos, como destaca a jornalista do Rest of World, Meaghan Tobin.

Entregadores da China, uni-vos!

Como resultado desse processo, a maioria dos seis milhões de entregadores de alimentos na China, que ganham a vida transportando sanduíches, poke bowls e chá com leite, e cujo trabalho é mediado por um aplicativo, acabam compartilhando dos mesmos dilemas diários e reivindicações. É o caso de Cui Xuedong, entregador de 52 anos em Pequim entrevistado pelo South China Morning Post. Natural da província de Hunan, no sul da China, Cui migrou para a capital chinesa em busca de melhores oportunidades de emprego. Ele trabalha das 6h às 16h como zelador, ganhando em torno de cinco mil iuanes (780 dólares) por mês. Durante intervalos de almoço e à noite, Cui sobe na garupa de sua bicicleta elétrica e, usando um capacete amarelo e o colete com o logotipo da Meituan, complementa a renda fazendo entregas. Assim, ganha por dia cerca de 160 iuanes extras por uma média de 40 pedidos. “Esse é um bom dinheiro [para mim]”, disse o entregador.

Como enfatiza o South China Morning Post, Cui é apenas mais um, entre os mais de 200 milhões de gig workers do país, com uma história de êxodo rural. Muitos chineses deixaram cidades mais pobres à procura de uma nova vida nos grandes centros urbanos. Por não serem residentes formais em suas novas cidades, esses recém-chegados não constam no sistema de registro doméstico chinês – o hukou, criado justamente com a finalidade de desestimular a migração de pessoas do campo – e ficam sem acesso legal a alguns benefícios básicos da legislação trabalhista.

Dada essa condição de fragilidade, as empresas de aplicativos aproveitam para ampliar a exploração de sua força de trabalho a níveis abusivos. Em outro caso registrado pelo South China Morning Post, uma dona de casa de 35 anos de sobrenome Gao, natural da província de Henan, virou entregadora de Meituan em Pequim. Apesar de tecnicamente ela trabalhar em tempo integral, ela teve seu contrato assinado por uma firma terceirizada da Meituan e não diretamente pela plataforma de aplicativo. Ela contou ao jornal que sequer sabia o que havia no contrato: “Eu só me importava com o dinheiro e lembro de ter assinado várias cópias. Venho do campo e, para mim, já é bom o bastante saber escrever meu nome. Por isso, não perguntei sobre os detalhes”.

A reação à rotina exaustiva dos trabalhadores de aplicativos também se reflete em mobilizações nas redes sociais por mudanças. Uma história que ficou famosa na China foi a de Chen Guojiang, que filmava em vídeos curtos seu dia a dia percorrendo Pequim sobre uma scooter elétrica e realizando centenas de entregas. Conhecido na Internet como “o líder da aliança de entregadores”, o motociclista de 31 anos chegou a alcançar mais de dez mil seguidores em sua conta no WeChat, onde denunciava as condições de trabalho dos entregadores. Em fevereiro, ele foi preso sob a acusação de fraude em cartões e de obstrução das medidas de controle da pandemia. Colegas de Chen circularam nas mídias digitais mensagens pedindo sua libertação, e sua família chegou a arrecadar 120 mil iuanes em doações para arcar com os custos dos advogados do motociclista.

A repercussão na opinião pública de denúncias de superexploração, de fato, tem contribuído para dar maior visibilidade à situação dos gig workers. Em janeiro de 2021, a Ele.me sofreu forte pressão depois de anunciar que só poderia pagar dois mil iuanes de indenização à família de um funcionário de sobrenome Han que desmaiou e morreu no trabalho. A morte do motociclista, que trabalhava em Pequim para uma empresa de logística terceirizada da Ele.me, gerou enorme comoção nas redes sociais chinesas, que forçaram a companhia a aumentar a compensação para 600 mil iuanes. Por não haver contrato direto entre Han e a Ele.me, a empresa estava se isentando de qualquer responsabilidade legal pelo óbito.

Um dos estopins para a indignação generalizada dos chineses contra as plataformas de delivery de comida foi a publicação, em setembro de 2020, de uma reportagem investigativa da revista Renwu sobre as cotas impossíveis e os prazos apertados a que estavam submetidos os entregadores. O artigo causou um imenso alvoroço nas mídias digitais e estimulou o debate público sobre as condições de vida desses trabalhadores.

Desde então, as autoridades reguladoras da China têm atuado na cobrança de que essas companhias ofereçam a seus funcionários uma “parte justa” de seus benefícios. Entre essas ações, oito órgãos governamentais, como o Ministério dos Transportes, a Administração do Ciberespaço da China e o Ministério da Indústria e Tecnologia da Informação, promoveram palestras com representantes de dez empresas de aplicativo para que corrigissem problemas como preços injustos. Foi ordenado às plataformas que tomassem medidas imediatas para melhorar seus preços e garantir condições de trabalho dignas a seus motoristas. Além da Meituan, um dos focos do encontro foi o aplicativo de carona Didi Chuxing, que domina o mercado de transporte individual no país e está na mira dos reguladores chineses por razões de cibersegurança.

Big Techs sob rígido controle

Em abril de 2021, um vídeo governamental mostrando um entregador da Meituan da trabalhando em um árduo turno de 12 horas viralizou nas redes sociais. O entregador em questão era, na verdade, o vice-diretor da Divisão de Relações Trabalhistas do Birô de Recursos Humanos e Segurança Social de Pequim, Wang Lin, e o vídeo fazia parte de uma série de documentários sobre a vida de chineses comuns. Nele, Wang corre por Pequim em uma motocicleta realizando entregas de comida enquanto luta com o tráfego congestionado da cidade. A certa altura, ele atrasa um pedido em 20 minutos e, como punição, teve de 60% de sua taxa de entrega cortada pelo aplicativo. “Trabalhei muito, mas ganhei tão pouco dinheiro. Estou longe da minha meta de ganhar 100 iuanes (15,4 dólares) hoje. É muito difícil ganhar dinheiro”, lamenta.

O vídeo de Wang foi publicado na Internet logo após as autoridades reguladoras lançarem uma investigação antitruste sobre a Meituan. A Administração Estatal de Regulação do Mercado (SAMR) iniciou oficialmente uma apuração para saber se a plataforma de entrega de comida está envolvida na prática chamada de “escolher um entre dois”. Comum na China, essa tática consiste em obrigar os comerciantes a assinarem acordos de cooperação exclusiva, o que os impede de vender em plataformas concorrentes. Em dezembro de 2020, a Alibaba também foi alertada pela SAMR sob a acusação das mesmas práticas. Por sua vez, a Meituan entrou no radar dos reguladores graças às denúncias de usuários do aplicativo.

Após o anúncio da investigação, as ações da Meitun – até então, a quinta maior empresa no Índice Hang Seng da Bolsa de Valores de Hong Kong – caíram 0,5%, para 305 dólares honcongueses (39 dólares americanos), marcando a primeira queda depois de três pregões seguidos. “A prática ‘escolher um entre dois’ contribuiu para que a Meituan fosse bem-sucedida em seus primeiros dias de competição no ramo de delivery de comida, pois ajudou a diferenciar as entregas de um restaurante específico daquelas de um concorrente. Acreditamos que a forte posição da Meituan no mercado e a lealdade dos clientes permitem que a empresa supere essa prática”, frisaram os analistas da Nomura Holdings, Shi Jialong e Thomas Shen.

A devassa sobre a Meituan confirma os novos esforços de Pequim para conter o poderio econômico das Big Techs. As ações antimonopólio movidas contra a holding Alibaba não foram um caso isolado e indicam uma tendência de repressão por parte das instituições chinesas a práticas de concorrência desleal. “[A investigação da Meituan] Não é uma decisão surpreendente. Depois da multa recorde da Alibaba, nenhum grande player de tecnologia deve ficar imune às investigações de monopólio. Os reguladores precisam mostrar também que a investigação é um movimento justo para todos, não só para a Alibaba”, disse ao South China Morning Post o presidente-executivo da consultoria Dolphin Think Tank, Li Chengdong.

Em abril, a Alibaba recebeu uma multa recorde de 18,2 bilhões de iuanes (2,8 bilhões de dólares) após os reguladores concluírem que a gigante do comércio eletrônico estava se comportando como monopólio. A punição drástica mostrou o comprometimento do governo chinês com a regulação das atividades de mercado e serviu de exemplo para outras Big Techs. Prova desse movimento inédito é que, no mesmo mês, a SAMR convocou as 34 maiores companhias de tecnologia do país, incluindo a Tencent Holdings, JD.com, ByteDance e a própria Meituan, e as fizeram prometer publicamente realizar “autoinspeções abrangentes” dentro de um mês. Elas receberam a ordem de “aprender com a Alibaba”.

Em resposta, a plataforma de entrega de comida alegou se comprometer com as deliberações dos órgãos reguladores. “A empresa cooperará ativamente com a investigação das autoridades reguladoras para melhorar ainda mais o nível de gestão de conformidade comercial, proteger os direitos e interesses legítimos dos usuários e de todas as partes, promover o desenvolvimento saudável e de longo prazo da indústria e cumprir com seriedade suas responsabilidades sociais”, avisou o comunicado da Meituan.

A plataforma também vem se pronunciando sobre as acusações de exploração de seus trabalhadores. Ainda em maio, o presidente-executivo da empresa, Wang Xing, disse em uma teleconferência que tem trabalhado com o governo para fornecer seguro de acidentes de trabalho a seus entregadores. Segundo ele, a Meituan já registrou cada um de seus passageiros no seguro comercial. Em junho, o empresário foi orientado por autoridades chinesas a manter um perfil mais discreto e a se distanciar dos holofotes, ainda que temporariamente.

Para o governo, o principal desafio é elevar as condições de trabalho e fazer valer as obrigações contratuais sem que isso afete o desenvolvimento comercial e tecnológico das gigantes digitais. Proteções legais aos gig workers e o combate à terceirização aplacam as demandas não só dos próprios entregadores de aplicativo, mas também da sociedade chinesa em geral, que tem se demonstrado ativa na solidariedade a esses trabalhadores. Dessa forma, as novas diretrizes regulatórias divulgadas pela SAMR contra a Meituan representam mais um capítulo das disputas trabalhistas e do controle do Estado sobre as atividades econômicas na China.

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