Mais de 1.000 Sem Terra de centenas de assentamentos e acampamentos de todo o Brasil ajudaram a levantar a Escola Nacional Florestan Fernandes há dez anos.
Foram mais de 1.000 pessoas, entre homens e mulheres, organizadas em 25 brigadas de trabalhadores voluntários de 112 assentamentos e 230 acampamentos de diversos estados brasileiros. Esse foi o contingente total para construir o que ficou conhecido com Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF).
Batizada com o nome de um dos maiores sociólogos e políticos brasileiros, muitos consideram a ENFF o resultado da ideia, da força, do trabalho voluntário, da persistência e solidariedade de diversos atores sociais “que acreditam numa educação e formação de qualidade e que lutam para romper com as cercas da ignorância, do latifúndio e do capital”, acredita Paulo Almeida, da coordenação política pedagógica da escola.
Filho de assentados do Rio Grande do Sul, Almeida comenta que a ENFF nasceu com a responsabilidade de ser um modelo de escola pública, gratuita e de qualidade defendido por Florestan Fernandes, e cuja construção foi regida por dois valores fundamentais: o estudo e o trabalho.
A ideia da construção de um espaço de formação para a classe trabalhadora surgiu durante uma reunião da coordenação nacional do MST feita no estado de Sergipe, em 1996.
No mesmo ano começou o processo de arrecadação, que durou até 1999. A maior parte dos recursos vieram da venda das fotos de Sebastião Salgado e do livro Terra, uma coleção que trazia junto às célebres fotos Sebastião Salgado, texto do escritor português José Saramago e músicas de Chico Buarque. Os três artistas doaram os direitos autorais aos Sem Terra.
“Quando eu morrer, que me enterrem
Na Beira do chapadão
Contente com minha terra
Cansado de tanta guerra
Crescido de coração”
(Assentamento, Chico Buarque apud Guimarães Rosa)
Após o lançamento da coleção, os Sem Terra passaram a ver um dos mais belos valores humanitários: o da solidariedade. Dezenas de comitês internacionais e entidades da classe trabalhadora do Brasil e do mundo passaram a realizar exposições mundo afora para arrecadar fundos para a construção da escola.
Com o dinheiro obtido, um terreno de 120 mil km² foi adquirido em Guararema, próximo à cidade de São Paulo. Três anos depois, no dia 22 de março de 2002 teve início o processo efetivo da construção da ENFF, que durou até a sua inauguração, no dia 23 de janeiro de 2005.
“Seja como for, os deserdados da terra alimentam a esperança de melhores dias e uma coisa é certa: não querem mais fugir para as cidades, que já não podem mais absorvê-los, dar-lhes trabalho e condições dignas de vida. Preferem, pois, resguardando-se das ameaças da deliqüência e da prostituição dos grandes centros urbanos, permanecer nos acampamentos à margem das estradas e esperar pela oportunidade de ocupar a terra tão sonhada, mesmo correndo risco de vida. Seus projetos são idênticos: lavrar um pedaço de terra finalmente seu, construir uma casa para a família, assegurar o sustento desta e, por meio da cooperativa a ser criada, comercializar os excedentes de sua produção agrícola, garantindo a manutenção de escola para os filhos. É esse, em síntese, o sonho comum dos sem-terra
(Sebastião Salgado).
Do tijolo à caneta
Uma das ideias mais absorvidos durante a construção da ENFF foi o lema “Construção da escola é uma escola”.
Para Almeida, esse foi um importante aprendizado, que se transformou numa escola para além da escola, da qual todos os que estiveram envolvidos retiraram lições para suas vidas.
Aos 39 anos de idade, Eridan Alves Pereira, à época acampado no estado do Rio Grande do Norte, relembra deste processo do qual participou ativamente.
“Cheguei a São Paulo em maio de 2002. Estava a 40 dias acampado, quando outros companheiros e eu fomos convidados para participar inicialmente da construção e, depois, da brigada permanente”, conta.
“Comecei a trabalhar como pedreiro logo em seguida passei a desenvolver serviços de elétrica e hidráulica. Aprendi tudo aqui. Terminei os meus estudos em Guararema. São poucos espaços no Brasil que possibilitam esse grau de conhecimento e interação com outros povos”.
Para ele, a construção já fora um grande desafio, mas mantê-la com toda essa estrutura seria um desafio ainda maior.
“Me lembro que na época da construção nos perguntávamos se essa seria uma escola feita por Sem Terra para Sem Terra e hoje, 15 anos depois, só quem está aqui sabe o que isso significou e significa”.
Durante toda a construção da escola, os Sem Terra que ali chegavam começavam a participar de processos de alfabetização ou mesmo de formação política, ministradas por professores externos à ENFF e por pessoas que também participavam da brigada de construção, que contribuíram para a realização das provas supletivas.
Assim, o interesse pelo aprendizado foi despertado. Aprovados, alguns não pararam mais, e passaram às aulas frequentadas na escola do bairro.
“Eu me vejo como um grão de areia em um Movimento tão grande, mas participar da construção de um espaço como a ENFF meu deu a consciência da importância de cada grão nessa construção”, conta Eridan.
No mesmo barco estava Manoel Bernardo, mais conhecido como Caroço, 48. Na época acampado no Ceará, Caroço chegou à ENFF em 2004 para cumprir com a tarefa de ajudante de pedreiro.
Segundo ele, “ao levantar os tijolos da ENFF, conseguiu levantar também os seus próprios alicerces”.
Caroço conta que conseguiu estudar e viu muitos de seus companheiros fazendo o mesmo.
“Aprendi sobre a vida e os meus direitos. A experiência de participar de uma obra onde não havia chefe e nem mestre de obras, onde todos eram voluntários ao mesmo tempo em que eram aprendizes, coordenadores, discutiam, organizavam. Aqui aprendemos que o estudo e o trabalho são fundamentais para a formação de homens e mulheres”, resume.
Ao longo desta década de existência, passaram pela escola mais 24 mil pessoas em cursos, seminários, conferências e visitas, de movimentos sociais do campo e da cidade, de todos os Estados do Brasil e de outros países da América Latina e da África.
“Por aqui passam pessoas de todo mundo, de todas as línguas e culturas. Saber que esse espaço foi construído por companheiros como eu, que hoje podem circular livremente por aqui e ter contato com toda essa estrutura é emocionante”, ressalta Eridan.
A terra está ali, diante dos olhos e dos braços, uma imensa metade de um país imenso, mas aquela gente (quantas pessoas ao todo? 15 milhões? mais ainda?) não pode lá entrar para trabalhar, para viver com a dignidade simples que só o trabalho pode conferir, porque os voracíssimos descendentes daqueles homens que primeiro haviam dito: “Esta terra é minha”…
(José Saramago, prefácio do livro “Terra”)
O desafio
A construção da ENFF foi um processo desafiador por possuir uma linguagem nova, mas, além disso, uniu pessoas e fez com que tivessem o desejo de estudar, participar, de se transformar e transformar a realidade.
“Essa experiência só foi possibilitada a partir das vivências no dia a dia, de pessoas que se desafiaram, no decorrer de cinco anos para deixar registrada, através do exemplo de esforço, trabalho e da solidariedade, a sua contribuição na história da classe trabalhadora”, destaca Paulo Almeida.
O projeto arquitetônico, elaborado em termos solidários, teve como princípio causar os menores danos possíveis ao meio ambiente e, ao mesmo tempo, propiciar melhor acolhimento aos frequentadores.
Todas as instalações foram feitas de alvenaria, com tijolos construídos pelos próprios trabalhadores.
A estrutura total da escola conta com três salas de aula, com capacidade para 200 pessoas, auditório, anfiteatros, uma biblioteca com mais de 40 mil títulos, espaço de leitura, casa de artes, a Ciranda Saci Pererê (que assegura a participação das alunas e alunos que levam seus filhos às atividades) e uma ilha de ilha de edição onde funciona a rádio da ENFF.
No local também foram construídos quatro blocos de alojamentos com refeitório, lavanderia, uma estação de tratamento de esgotos, uma horta que produz para o consumo local, além de duas quadras multiuso.
Para manter todo esse alicerce funcionando, um batalhão de 42 militantes residentes, que compõem a brigada permanente Apolônio de Carvalho, mais os educandos – que são orientados a colaborar com as tarefas da escola -, se dividem durante as atividades cotidianas.
Com isso, a escola tem o apoio de mais de 500 professores voluntários – do Brasil, da América Latina e de outras regiões –, nas áreas de Filosofia Política, Teoria do Conhecimento, Sociologia Rural, Economia Política da Agricultura, História Social do Brasil, Conjuntura Internacional, Administração e Gestão Social, Educação do Campo, Estudos Latino-americanos, etc.
Além disso, oferece cursos superiores e de especialização, em convênio com mais de 35 universidades (por exemplo, Serviço Social e Direito) e mestrado em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe, por meio de convênio com a UNESP e Cátedra UNESCO de Educação do Campo. A ENFF também mantém convênio com mais de 15 escolas de formação em outros países.
5.000.000 de famílias de trabalhadores rurais que precisam de terra e não a têm, terra que para eles é condição de vida, vida que já não poderá esperar mais.
(José Saramago, prefácio do livro “Terra”).
Fonte: MST
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