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Não mereci ser estuprada [Gatilho Estupro]

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Por Elenira Vilela, para Desacato.info

# NinguémMereceSerEstuprada

Esse texto foi escrito em abril de 2014 quando um parlamentar que me recuso a citar o nome diz que um mulher merecia ser estuprada. O golpe militar de 1964 completava 50 anos. Naquela época eu escrevi pensando em publicar e mais uma vez deixei de fazê-lo.

Depois de nova e linda mobilização da #GreveInternacionalDeMulheres #2018M e como estou publicando essa coluna no Desacato, finalmente acho que é a hora e o lugar de contar essa história. Pensei em escrever novo texto, mas resolvi somente corrigir um pouco erros de digitação e publicar esse mesmo. É um texto catártico que conta minha experiência em sobreviver a violências sexuais.

Eu não mereci ser estuprada.

Nem eu, nem a Helenira, nem a Vilma, a Maria, a Estela, a Júlia, a Auxiliadora, a Alice, a Luzia, a Heloisa, a Teca, a Laura, a Xuxa, a Dilma… nenhuma mulher, menina, menino, ninguém merece ser estuprad@.

Eu passei os últimos dez dias muito mexida, com as descomemorações do 50 anos de ditadura (eu participei de 3 grandes eventos em São Paulo) e com a discussão sobre o que torna a mulher merecedora ou não de ser estuprada. Esse desabafo é uma parte da minha contribuição ao debate.

Desde que aconteceu comigo eu penso se chegaria o dia em que eu resolveria contar o que passei e pra quem. Até este momento apenas pessoas muito próximas de mim na época e hoje sabem o que houve e menos pessoas ainda sabem detalhes. Eu fui violentada sexualmente duas vezes na vida, uma na infância e outra com 18 anos.

Eu dei uma “sorte”, a de que as violências a que me submeteram foram praticadas por desconhecidos. Sorte não existe, mas como 3 de cada 4 mulheres que sofre violência a sofre por alguém conhecido e muito próximo, normalmente alguém que devia proteger ou amar a mulher (pai, padrasto, marido, parente, amigos da família, padres, colegas de faculdade…), sofrer isso por um desconhecido é sutilmente menos ruim.

Falo isso para as pessoas se darem conta de como é comum que mulheres sejam violentadas, as estimativas que conheço dão conta que de cada 3 ou 4 mulheres, uma sofreu pelo menos uma vez na vida uma violência sexual grave.

Isso, olhe em volta, sua irmã, sua mãe, sua esposa, namorada, tia, prima, amiga, colega, de cada 3 ou 4 uma delas sofreu uma violência grave. Não estou falando de ouvir cantada grosseira na rua, ou ser encoxada no metrô, isso deve ser perto de 100%, estou falando de violência grave, invasiva.

A primeira vez eu tinha algo entre 5 e 6 anos (talvez um pouco mais). A ditadura estava acabando, de maneira lenta, gradual e segura, como queria o regime, sem acordo. Os meus pais estavam voltando a uma vida mais ou menos normal, se “desclandestinizando” e estava acontecendo o congresso da UNE, no Maracanãzinho no Rio. Ambos (mais a minha mãe do que meu pai) participaram do Movimento Estudantil antes de irem pra clandestinidade, o ME era polo de luta contra a ditadura e eles foram ver o Congresso e nós fomos junto (eu e minha irmã). Eu ia a muitas reuniões com eles e já estava acostumada, quando elas aconteciam em lugares que permitiam, ficava brincando e correndo e assim eu estava, subindo e descendo arquibancadas e correndo em rampas e minha sandália arrebentou. Descolou e eu sentei pra tentar arrumar, sozinha, me separei da minha mãe e das outras crianças. De repente um homem, branco, jovem, estudante, senta ao meu lado e pergunta o que houve e eu mostrei a sandália estragada. Ele e começou a mexer nela e logo a mão dele estava no meu corpo e logo embaixo da minha saia, dentro da minha calcinha. Eu não entendi aquilo, ele tinha uma fala mansa, parecia amigo e não parava de mexer em mim. Eu achei aquilo estranho, me incomodou, mas eu não sabia bem o que pensar, muito menos o que devia fazer. Em um momento ele disse que podíamos passear, que podia consertar a sandália, que ele ia buscar umas coisas e voltaria pra me buscar.

Eu resolvi ir até a minha mãe e contar o que aconteceu, ela contou pro meu pai e os dois me levaram pelos corredores daquele lugar enorme, me pedindo para mostrar quem tinha feito aquilo comigo. Uma hora entramos em uma rampa e ele estava lá, juntando suas coisas, arrumando a mochila. Percebeu que tinha sido descoberto assim que me viu com meu pai e minha mãe e começou uma perseguição, o cara, meu pai atrás e eu sendo puxada pela minha mãe atrás. Gritaria, confusão, correria, PEGA, PEGA ESSE FILHO DA PUTA… e pegaram. Minha mãe me levou no banheiro, me examinou, perguntou se doía, se ele tinha me machucado…ardia, doía a cabeça, a alma. Depois fomos a uma sala, um monte de gente, uma discussão tensa que eu não entendia e o cara ali de cabeça baixa, eu não queria olhar pra ele, parecia que eu tinha feito algo errado. Ele foi expulso do congresso, parece que era do MR8, mas não foi denunciado à polícia, não era bom atrair a polícia para um congresso de estudantes naquele tempo, meus pais concordaram com isso, eu concordaria hoje, na época estava perdida, só isso, não entendia o que tinha acontecido.

Hoje vejo que se eu não tivesse ido até minha mãe e tivesse ficado ali parada (o que é fácil entender que uma criança poderia fazer), provavelmente não estaria aqui ou teria uma história muito mais triste pra contar, que talvez eu nunca conseguisse contar. Essa foi há mais de 30 anos.

A segunda vez foi no dia 07 de janeiro de 1994. Não tenho como esquecer exatamente quando foi, porque eu estava indo comemorar meu aniversário com amigos. Quem nasce em janeiro sabe como é chato, a gente nunca consegue comemorar o aniversário, não tem aula, está todo mundo viajando… Naquele ano eu achei que ia conseguir, combinamos de ir a um bar na zona sul do Rio. Eu estava ansiosa pra ver quem iria, tinha feito muitos grandes amigos naquele ano de UFF, vários tinham dito que iam e eu andava pela casa da minha avó, esperando meus primos, que iam junto, mas eles precisavam demorar e eu não aguentei a ansiedade e resolvi ir de ônibus antes, eles ficaram de me encontrar lá.

Saí da casa da minha avó em torno das 20h, andei um pouco, peguei um ônibus, a rua cheia, cedo, acho que era um dia de semana, isso eu não lembro bem. Quando desci do ônibus em frente a uma escola municipal, assim que desci, fui abordada por um homem, negro, jovem, com uma cara de bem pobre, ele anunciou o assalto, disse pra eu ir com ele e que eu tinha que entregar o que tivesse de valor a ele, relógio, dinheiro, mas eu não tinha quase nada. Eu não reagi fisicamente, achei que ia me livrar daquela situação conversando com ele (sempre fui bem melhor com as palavras do que com o corpo). Em princípio ele me tratou bem, fez questão de me dar a mão, me fez andar com ele, andar muito, atravessar um túnel, subindo uma favela lá que até hoje não sei bem qual era. Ele cumprimentava as pessoas, pra alguns disse que eu era sua namorada. Ele estava armado, mas não era uma arma de fogo. Me ameaçava baixinho e eu não tive coragem de correr. Ele encontrou um amigo, que foi quem sugeriu a ele que ele tinha que aproveitar a oportunidade, que eu era bonita, que ele ficava de guarda (ele, sim, com um revólver), pediu pra participar, o primeiro cara disse que não. Eu disse pra ele que ele encontraria alguém que faria sexo por vontade com ele. Ele disse que não. Me estuprou em um pedaço de madeira que ficava sobre a terra, embaixo de uma casa. Me perguntou se eu estava gostando, eu chorei, pedi pra parar. Me disse que queria fazer sexo anal, desistiu. Me disse como ir embora.

Eu sai correndo dali, chorando, andando e nem sei bem como, cheguei na casa da minha avó. Já eram umas 23h. Eu contei pra ela e pra quem mais estava lá o que tinha acontecido. Eles não sabiam o que fazer, nem eu. Fui correndo tomar um banho, me esfreguei pra ver se tirava aquela lembrança da mente e do corpo, fiquei lá um tempão tentando, mas não saiu com água e sabão. As pessoas que estavam me procurando voltavam pra casa, choravam, batiam porta, minha avó se batia, mas ninguém conseguia olhar pra mim. Menos o meu primo, o Fernando. Eu fiquei deitada, chorava sem parar, pensava porque aquilo tinha acontecido comigo, porque um dia que era pra ser muito feliz, tinha sido daquele jeito.

Meu primo segurou a minha mão. Isso foi muito importante, ele não disse nada, só ficou ali, não desviava o olhar, ficou comigo. Percebi que meus amigos ligaram, meu namorado ligou, vieram me perguntar, eu só queria que aquilo passasse, acordar do pesadelo, não quis falar com ele, nem com ninguém. Me perguntaram se eu queria ir à polícia, denunciar. Eu não quis, tive muito medo, vergonha, muita dor. Eu não estava machucada, eu não lutei fisicamente e isso também doía, me culpava, perguntava porque eu não corri, porque eu não bati, não me debati.

No processo tem vários episódios terríveis, novas violências. Minha tia me levou ao médico no dia seguinte. Era um ginecologista homem e o exame foi nova violência, pernas abertas, espéculo, tem uma ferida pela penetração forçada, mas ela parece bem. Examinou meus seios atrás de nódulos, aquilo pra mim foi terrível, aquele homem desconhecido me tocando. Tem que fazer exames de DSTs, AIDS, gravidez e eu fiquei aterrorizada pela possibilidade de ter ficado doente ou pior (sim eu achava pior) grávida daquela violência.

Passei alguns dias ali deitada, não tenho noção de quantos, não queria nada, quase não comia, não falava, não queria pensar. Minha irmã, minha mãe, meu pai, minha avó, minha tia por ali. Meu namorado ligava, eu não conseguia falar com ele. Sei que ele queria ajudar, que se sentia culpado (depois ele me disse, mas eu já imaginava), mas eu não conseguia pensar em olhar pra ele, não conseguia pensar no que dizer… Um dia pensei, peraí, esse cara me machucou, mas estou viva. E tenho muito o que viver, sai daí, vai viver. Não é porque aconteceu que vai acontecer de novo. Me levantei, me sugeriram e fui a um psiquiatra homem, me diziam que havia remédios que podiam ajudar.

Não tinha indicação, escolhi um do plano de saúde que podia atender logo, marquei a consulta, fui com a minha mãe. Andar na rua era difícil, muito medo, medo de olhar nos olhos de alguém e dar de cara com o estuprador, andava olhando pro chão. Entrei no consultório sozinha. Ele me perguntou o que eu tinha, eu contei e ele me perguntou: “Mas por que você deixou? Por que não reagiu? Ele não tinha como fazer isso em você se você não deixasse, por que você deixou?” Sai dali chorando, chamei minha mãe, vamos embora. O que houve? Vamos embora… Fomos. Não voltei em outro médico.

Tinha que contar o tempo, agora dá pra fazer o exame de gravidez… negativo, menos essa, ufa. Agora tem que ir no Centro de Testagem, faz o exame, espera meses até sair o resultado, vai buscar o resultado, meu pai foi comigo, ela me chama, tudo negativo de novo, mas um sermão, se você está fazendo o teste é porque fez sexo sem se proteger, não faça mais isso, use camisinha… Vontade de sair correndo, ouvi todo o sermão, meu pai quando saí estava cor de papel e aí? Por que demorou tanto? Está tudo bem… Por que ela te chamou?

Conversar com o namorado, encontrei ele. Queria te ajudar… eu sei. Eu devia ter ido te buscar, não podia ter te deixado sozinha… Não foi culpa sua, eu ia com meus primos, me afobei, dei azar. Mas não consigo ficar com você, não dá. Desculpa, não consigo. Não é pelo que aconteceu (mas era, claro que era), mas não dá.

Volta a ir pra aula, vestida de calça e jaqueta no calor do Rio. Você tem que enfrentar, tocar a vida. Comecei a fazer terapia junto ao Grupo Tortura Nunca Mais, é, eu fui torturada, não pelos militares que estupraram praticamente todas as mulheres que torturaram, se masturbavam e ejaculavam na cara delas. Mas eu fui torturada… era estranho pensar nisso.

A terapia ajudou muito, não só com esse, mas com muito outros problemas da vida (eu tinha outros…). Vivia na faculdade, estudo, cerveja, movimento estudantil, não pensa nisso, mas pensava. Anos depois, coordenando o Encontro de Mulheres Universitárias, já de volta a Floripa, tive uma crise, saí no meio, larguei a coordenação chorando compulsivamente, a conversa sobre a violência contra a mulher era muito forte, não conseguia escutar. Foi difícil, me acalmei, aprendi a segurar e guardar o que sentia, não chorar mais em público, mas só aprendi anos depois, me odiava porque chorava, odiava a ideia das pessoas me acharem fraca, terem pena de mim. Eu me achei fraca, não lutei (na hora), não denunciei (depois, logo depois, muito tempo depois), não tive coragem de falar. Só hoje tive coragem… 20 anos depois… Nesses vinte anos tive mais 4 mulheres que conheço que sei que foram estupradas, uma delas por um tio, outra por um vizinho, outras duas como eu, por desconhecidos, mais ou menos violentos no contexto, uma ficou desfigurada, teve que reaprender a falar e escrever. Estão todas fortes, tocando a vida, mais ou menos marcadas, a maioria sem conseguir falar, sem ter recebido atendimento adequado, preparado.

Me lembro que quando a Xuxa declarou que tinha sido violentada seguidas vezes por um amigo do pai (se me lembro da história), fiquei muito brava com comentários insinuando que ela inventou aquilo, que não tinha porque ela ter deixado pra falar disso só 40 anos depois. Tinha sim, eu a defendi, mas ainda não consegui falar. Mil vezes quando digo que defendo os direitos humanos e que sou contra a tortura, a lei do olho por olho e dente por dente, as pessoas me diziam isso é porque não foi com ninguém da tua família que foi estuprada ou morta. Nessas mil vezes eu pensava, foi comigo e ainda assim não quero que ele seja tratado feito bicho, acho que ele continua tendo direitos, tinha raiva, tinha medo, mas sabia, sei, que violentá-lo me violentaria de novo e a sociedade só fica pior nesse círculo extremamente vicioso.

Tenho um ódio muito mais perverso contra os torturadores, não contra um oprimido que vira opressor – como o cara que me estuprou, mas com alguém que saia de casa, limpinho, dando beijinho nos filhos, dizendo que estava indo trabalhar e em nome do Estado, recebendo salário com dinheiro do povo ou financiamento de grandes empresas, iam estuprar mulheres e torturar crianças, homens amarrados, indefesos. Mais ódio ainda do que fica em casa e não suja as mãos, só manda e financia, enquanto toma um whisky.

Ao longo desses anos a cultura machista me violentou muitas outras vezes, nenhuma mais invadiu meu corpo, mas desfez da minha capacidade, porque eu ousei entrar na política e nos estudos de exatas, me usou como troféu, homens que eu achava meus companheiros de luta que diziam ter caso comigo para se vangloriarem de estar comendo a jovenzinha bonitinha, tive que dar com o pé na porta pra ser respeitada várias vezes, homens grudentos que tentaram me tocar, sem minha autorização, homens e mulheres que me julgavam por como eu me vestia. Não foi fácil. Não é fácil. Mas eu não abro mão…

Elenira Vilela é professora e sindicalista.


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