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“Quanto vale uma canção de ninar?” A mobilização popular conquista a redução de jornada no Chile.

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“Quanto vale uma canção de ninar? Quanto vale poder sair a caminhar? Respirar depois da jornada de trabalho?  Quanto vale passar o tempo em família ou sozinho refletindo, pensando o que foi a jornada e o que virá? Isso seguramente não entra nos índices padrões de produtividade”[1].Ao parafrasear sua ministra do Partido Comunista do Chile (PCCh) Jeannette Jara, o presidente chileno Gabriel Boric entrava de cabeça na campanha pela redução da jornada de trabalho para 40 horas em agosto do ano passado.

A reflexão não impressionava somente por invocar argumentos não econômicos a favor de mais tempo livre para os trabalhadores, trazendo ao centro as relações humanas baseadas em felicidade e bem-estar numa campanha que tinha como mote “40 horas é qualidade de vida”. O discurso de Boric chamava a atenção também por se consolidar em um momento de crise das esquerdas e por hastear a bandeira antiga da redução da jornada laboral, hoje defendida mais por uma vanguarda sindical, partidos e movimentos com nível de formulação mais avançada.

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Longe de ter inventado a roda, o governo de Boric conseguiu aprovar e colocar de volta em pauta uma velha insígnia do movimento dos trabalhadores que anseia algo para além das horas extras e medidores da economia capitalista. Boric lembrou que tal bandeira faz parte de um programa para a “família e que aponta ao Bem viver”. Porém, como também disse nesse discurso, tal conquista não teria sido possível sem um árduo caminho de construção feito em aliança com “sindicatos, a sociedade civil, pequenas e médias empresas” e outros atores.

Antecedentes da reforma: o povo ainda é um ator político!

A lei que “Modifica o código de trabalho com o objeto de reduzir a jornada laboral” para 40 horas não era nova e não foi uma iniciativa direta do atual executivo. Rejeitada pelo ex-presidente neoliberal Seabstian Piñera, a lei era uma proposta de 2017 da comunista e então deputada Camila Vallejo. Ela depois viria a ser Ministra da Secretaria Geral do Governo de Boric, que passaria a encampar com mais força a batalha.

A proposta tinha alguma interlocução com setores mais “civilizados” da direita, mas havia sido emperrada por Piñera um ano após os massivos protestos que aconteceram no Chile entre 2019 e 2020. Assim, o arranjo das esquerdas que passaram a governar o país não hesitou em fazer disputas no seio da sociedade, e com a proposta de redução da jornada não foi diferente. A concepção de que só a correlação de forças interna das instituições determina o jogo político, como a configuração do Congresso – um reducionismo presente na covardia das esquerdas liberais -, não predominou  e o governo parece não ter tido medo de gastar seu capital político para travar batalhas.

“Em tempos turbulentos, em que o espírito político é difícil, mais do que pensar apenas nas conversações ou no diálogo entre La Moneda e o Parlamento, que são profundamente necessários, temos de voltar ao apoio natural que o nosso Governo deve ter, que é o povo chileno. Temos que nos apoiar nas organizações de trabalhadores, nas associações de bairro, nas organizações de moradores; política não é apenas instituições”. O governo, seguindo a fala de seu presidente,  parece não ter tido medo de gastar capital político e fez disputas em muitas frentes. As derrotas na aprovação da Constituição que substituiria a Carta Magna da ditadura de Pinochet, e na reforma tributária que taxaria a megamineração e os mais ricos, perdida com ajuda da ausência de três parlamentares ditos de esquerda, pareciam ter mostrado as vísceras de um governo que expunha suas debilidades. O governo derrotado parecia fraco.

Mas a consciência popular parece ter se acumulado nesse período. Com a ajuda de ampla mobilização de sindicatos e movimentos sociais, por meio de 26 sessões de audiências públicas abertas ao longo do Chile, nas quais mais de 200 organizações se envolveram, o país aprovaria no dia 11 de abril de 2023 a segunda redução da jornada de trabalho de sua história. O povo havia sido chamado para participar da gestão do Estado, perdeu, amadureceu, criou consciência e se tornou um ator primordial na correlação de forças que as esquerdas chilenas não restringiram a circunscrever ao parlamento[2]. A história, ainda que por um breve momento, voltou a ser “nossa”, como Salvador Allende há 50 anos atrás anunciara.

Características da reforma, avanços e contradições

A reforma espera-se que impacte mais de 4 milhões de chilenos, inclusive aqueles com jornadas mais complexas. A redução será escalonada por 5 anos com a redução de 1 hora por ano e sem distinção do tamanho da empresa. A flexibilidade também foi contemplada, com setores podendo implantar uma jornada de 4 dias na semana e três dias de descanso com a permissão de jornadas diárias de 10 horas. O trabalho de 5 dias na semana poderá chegar a 8 horas de jornada e o de 6 dias a 6 horas.A gradualidade e a flexibilidade foram construídas junto das pequenas e médias empresas e para beneficiá-las. Porém, é claro, há brechas das quais empresas maiores podem se beneficiar.

Os acordos de jornada terão por obrigação que ser feitos sempre com os sindicatos, quando estes existirem, ou diretamente com os trabalhadores quando não existirem. Tal feito reafirma as negociações coletivas junto das representações dos trabalhadores contra as medidas neoliberais que visam individualizar as negociações enfraquecendo os sindicatos. Talvez como fruto das contradições do possível, todavia, alguns sindicatos têm se queixado da flexibilização das jornadas que apareceram mais tarde no texto da lei[3]. Ainda que a média de horas por semana no mês abaixe com o marco, é possível ter jornadas de mais de 45 horas por semana desde que a média mensal seja de 40 horas. Sindicatos mais fracos terão dificuldades, governo e a representação dos trabalhadores terão que trabalhar para prover correlações de forças favoráveis a jornadas menos flexíveis.Os sindicatos terão sim que se reinventar.

Aprendizados para o Brasil: a ousadia pode mudar a correlação de forças

Os aprendizados do Chile para o Brasil pós-Bolsonaro e com esperanças renovadas em Lula, nos mostram que a ousadia pode mudar a correlação de forças desde que o povo seja chamado para participar dos processos de mudança. Como disse o presidente Gabriel Boric “com certeza temos que cuidar das instituições porque sem instituições não há política, mas não podemos nos reduzir a elas”. Sem ilusões sobre o caráter burguês das instituições capitalistas podemos ver que há espaço para transformações políticas no Brasil desde que se considere o povo como ator político, e não somente o parlamento conservador. O governo de Boric e seu arranjo entre as esquerdas têm seus limites e problemas, mas não hesitaram em travar as lutas para as quais foram eleitos para executar. As derrotas na reforma tributária e na Constituição mantiveram o povo em movimento para a aprovação da redução da jornada para 40 horas. Vitórias só se consolidam quando nos arriscamos a tentar vencer.

Tudo isso pode jogar luz ao momento complicado da política brasileira, onde um arcabouço fiscal com forte teor liberal é postulado visando diálogo com setores conservadores, mas que sem tocar no principal para a população brasileira parece desgastar o governo da mesma forma. Nem tudo que pode ser encarado pode ser mudado, mas nada pode ser mudado até que seja encarado. A vitória dos trabalhadores chilenos na redução da jornada mostra que as velhas lutas sindicais são atuais, e que para além do trabalho assalariado e com patrão, podem apontar para a boa vida, o tempo livre com nossas famílias e amigos e, acima de tudo, para um socialismo do nosso tempo.


[1] Essas e todas as outras falas de Boric no texto podem ser conferidas em: https://prensa.presidencia.cl/discurso.aspx?id=199792

[2] https://www.gob.cl/noticias/gobierno-reactiva-proyecto-de-40-horas-y-presenta-sus-indicaciones-iniciativa-sera-discutido-con-suma-urgencia-por-el-senado/

[3] https://www.elciudadano.com/chile/si-a-las-40-horas-pero-sin-letra-chica-mas-de-50-organizaciones-de-la-sociedad-civil-se-movilizan-por-la-aprobacion-del-proyecto/11/16/

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