INTRODUÇÃO
1. Na última década, a expansão da economia digital, aumento da cobertura e acesso à Internet, reestruturação produtiva, precarização laboral generalizada criou oportunidade para a proliferação de formas de exploração do trabalho alicerçadas na superexploração mediada pelas plataformas digitais. Esse “novo” modelo de negócio traz a necessidade urgente de regulação que contemple a proteção social e jurídica dos trabalhadores. No Brasil, somada a estas transformações, temos, desde 2017, as consequências da Reforma Trabalhista, que, em alguma medida, “legalizou” formas precárias de trabalho.
2. Durante a Pandemia da Covid-19, as plataformas digitais ampliaram sua importância econômica e seu poder de mobilizar e explorar o enorme potencial de trabalho de indivíduos dispersos espacialmente mas conectados em uma suposta “rede”. Cabe destacar que diferente da arquitetura em rede, o que temos com as plataformas é um sistema “algorítmico” de gestão de força de trabalho e resposta direta à demandas de clientes, que se caracteriza em especial por uma série de instruções e comandos pré-determinados. O algoritmo expressa interesses econômicos, não possuindo uma razão em si mesmo.
3.Essa situação já tem merecido tratamento nos tribunais em diversos países. Nos EUA (Califórnia), Uruguai, Espanha e Brasil, na perspectiva do direito comparado, é possível perceber o quanto o Judiciário brasileiro ainda encontra-se praticando distorções conceituais acerca do tema (ALMEIDA & KALLIL, 2021). Em especial, a incompreensão sobre a forma específica de subordinação laboral “plataformizada” e a força “mandatória” do algoritmo limita a qualidade dos julgamentos no país, questão que será colocada nos próximos pontos.
4. No Brasil, segundo o IPEA, já somam 1, 5 milhão de motoristas, que juntos executam 25 milhões de viagens por mês, trabalhando de 8 a 18 horas diariamente. Atualmente na cidade de São Paulo, existem 556 mil motoristas atuando por plataformas, e contribuem com aproximadamente 151 milhões de reais em taxas para a receita da capital paulista.
5. As plataformas digitais são instrumentos de alocação de força de trabalho que estão presentes nos mais variados ramos de atividade, não apenas na logística de mercadorias e transporte de passageiros; aplicativos dirigidos à gestão de trabalho de empregados domésticos, advogados, jornalistas e professores, etc são cada vez mais comuns. Este modal de alocação, que se efetiva pela programação algorítmica, é a forma atual mais eficiente, na perspetiva capitalista, de gestão da força de trabalho e tende a atingir, em alguma medida, todos os trabalhadores, direta ou indiretamente.
6. É necessário reconhecer a relação de subordinação entre os trabalhadores por aplicativo e as empresas proprietárias das plataformas digitais. As plataformas são apenas o modal, a relação se dá, como sempre é, entre quem necessita de vender sua força de trabalho e quem necessita comprá-la, deixando claro a hipossuficiência dos primeiros.
7. Assim, acompanhando a doutrina da legislação brasileira, bem como a produção legislativa no direito comparado, é possível e necessário estabelecer, como princípio a presunção de vínculo trabalhista nas relações de trabalho mediadas por plataformas. Tribunais em todo mundo já decidem, mesmo que ainda de maneira pouco sistemática, o reconhecimento deste princípio. Tribunais italianos, ingleses, holandeses, franceses e espanhóis já produziram decisões que confluem nesta direção. Como exemplo, na Espanha, o Tribunal Supremo indicou de maneira sintética, a presunção de vínculo:
“(i) a empresa se apropria do resultado da prestação do trabalho e exerce controle diretivo sobre o processo produtivo e sobre o trabalhador a partir do algoritmo e do sistema de geolocalização; (ii) o entregador não tem ingerência sobre os acordos estabelecidos entre a Glovo e os clientes, não fixa preços e nem sua remuneração; e, (iii) embora o telefone celular e a motocicleta ou bicicleta pertençam ao trabalhador, são meios acessórios, complementares ao exercício da atividade, cuja infraestrutura essencial é a marca empresarial e o programa informático desenvolvido pela empresa.” (BIAVASCHI, 2023, p.8)
8. Por outro lado, defendemos que a parcela de trabalhadores por plataforma, que explicitamente opte por uma relação de prestação de serviços autônomos, deve celebrar contrato formal nos termos previstos em norma jurídica (portaria, lei, decreto, etc) a ser produzida, que indique forma e obrigações mínimas exigidas para este tipo específico de relação contratual. Trata-se, portanto, no campo da produção legislativa, de reconhecer a necessidade de legislação civil nova que inclua as novas necessidades no âmbito das relações contratuais e as formalize, como ocorre já no campo das relações de consumo, nas quais se encontram formas de combate a cláusulas draconianas.
9. Cabe destacar que no caso dos trabalhadores que venham optar por contrato de serviços como trabalhadores autônomos devem ser previstos a garantia de direitos trabalhistas como férias, décimo terceiro salário, descanso semanal remunerado, auxílio alimentação/refeição, pagamento de horas extras adicional noturno, além de garantia de direitos previdenciário com o recolhimento da contribuição previdenciária pelo trabalhador e pela empresa que contrata os serviços autônomos.
10. Partimos do entendimento que o processo de construção da regulamentação do trabalho por plataforma deve se orientar pela ampliação de direitos, uma vez que não é admissível trabalhadores descobertos de proteção do estado.
11. No entanto, a melhoria das condições laborais dos trabalhadores por plataforma não pode ser atingida apenas no âmbito de alterações no Direito Trabalhista e Civil; é necessário regular a própria operação das empresas proprietárias das plataformas, como acontece em outros ramos de atividade. Esta regulação passa por dar transparência e estabelecer mecanismo de controle sobre a tecnologia e processos empregados pelas mesmas, instituindo faixas limites predeterminadas sobre as taxas cobradas ao consumidor final e valor pago aos trabalhadores, entre outras providências.
12. Acreditamos que o reconhecimento dos direitos trabalhistas dos trabalhadores por aplicativo é uma condição necessária, mas não suficiente para ampliar a dignidade laboral dessa categoria. Propomos, dito isso, o debate em duas frentes distintas e complementares. A primeira para reconhecer o vínculo trabalhista e atualizar a legislação diante das demandas específicas desta categoria. A segunda, avançar no debate sobre a construção de um Estatuto dos Trabalhadores Autônomos, com processo similar à experiência da elaboração do Estatuto do Trabalhador Rural de 1963 no governo João Goulart e da garantia dos direitos trabalhistas das Empregadas (os) Domésticas (as) na CF de 1988 que foram ampliados no governo de Dilma Rousseff.
13. O Brasil tem um histórico de elaboração legislativa setorial como citado anteriormente, este acúmulo será útil para a proteção legal dos trabalhadores autônomos. Partimos ainda do entendimento que trabalhadores autônomos não são empresários, mas uma parcela da força de trabalho que em consequência da reestruturação produtiva estão excluídas do assalariamento clássico, cabendo a intervenção do estado diante da sua condição hipossuficiente.
14. O trabalho autônomo tem característica de trabalho por conta própria, por forma associada entre trabalhadores autônomos ou via cooperativas de trabalho. Importante incluir também a negociação coletiva entre os trabalhadores e as empresas de aplicativos através dos seus sindicatos e quando não tiverem sindicatos através de comissão de negociação ou associação. A negociação coletiva vai viabilizar contratos e convenções coletivas de trabalho que podem ter caráter nacional e/ou regional.
15. Apoiamos que, independente da forma jurídica e meios administrativos de implementação, se busque garantir direitos básicos já estabelecidos para categorias assalariadas como descanso semanal remunerado, férias, décimo terceiro, seguridade social e jornada de trabalho máxima de 8h. Em relação a jornada de trabalho existe a possibilidade de jornada extraordinária com pagamento adicional, além de ser garantido ao trabalhador a autonomia para definir seu horário de trabalho.
16. Quanto à remuneração dos trabalhadores por aplicativo, em especial aqueles que desenvolvem atividades de transporte, é necessário garantir o pagamento pelo tempo de espera, uma vez que estão neste período à disposição da empresa. Atualmente, os critérios de remuneração não são transparentes e são alterados com frequência, o percentual cobrado por corrida está entre 20% a 45% do valor total. Neste sentido é fundamental estabelecer formas de controle, fixando limites mínimos de remuneração para estes trabalhadores, situação pela qual eles possam planejar seus rendimentos.
17. Na mesma lógica, os bloqueios (suspensão) e banimentos das plataformas (demissão) são mecanismos obscuros que estão sob total discricionariedade das empresas. Tal prática deve ser substituída por critérios públicos estabelecidos em norma, com direito a defesa por parte do trabalhador. Em caso de bloqueio injustificado, cabe multa rescisória a ser paga pela empresa proprietária da plataforma. Defendemos o fim do banimento ou bloqueio das contas e a criação compulsória de canais e procedimentos de esclarecimento dos mesmos.
18. Entendemos que é necessário, apoiar trabalhadores/as por aplicativos, em especial do setor de transporte, na aquisição e manutenção dos seus instrumentos de trabalho, por meio de descontos no IPVA, crédito e melhores condições de financiamento para a aquisição de veículos. Além disso, cabe criar mecanismos, dentro das próprias plataformas, para assegurar a segurança destes trabalhadores e trabalhadoras, que são vítimas recorrentes da violência.
19. Quanto às objeções geralmente levantadas pelas empresas proprietárias de apps, quanto a viabilidade técnica de controle da jornada de trabalho no ramo e ainda a aceitação de frações destes trabalhadores que atuam em diferentes plataformas (como na Uber em um determinado período e quando excedido as horas máximas permitidas passam a trabalhar pela 99 ou outro); entendemos que já há capacidade técnica de controle de uso de diferentes aplicativos e dispositivos, tais como os já presentes nas políticas de segurança de plataformas como Meta e Google, que por meio do rastreamento de IP, limita operações dos usuários em máquinas e contas distintas. Quanto a possíveis fraudes neste sistema, realizadas por trabalhadores que desejam trabalhar fora da jornada estabelecida, devem ser entendidas como exceção, com tratamento específico que iniba tais práticas.
20. Ainda no tema da formas de controle das tecnologias das plataformas e na gestão da força de trabalho, propomos a realização de um grupo de trabalho específico para o tema como a participação do SERPRO, maior empresa pública de TI do mundo, um patrimônio do estado brasileiro, e que pode ser incorporada no esforço de garantir um melhor tratamento técnico para a regulamentação do trabalho por aplicativo.
21. Defendemos também que a SERPRO e toda inteligência disponível no Estado brasileiro (entendido assim como os diferentes entes – União, estados, Distrito federal e municípios) reflitam sobre alternativas a estas grandes empresas multinacionais, no mesmo sentido que declarou o ministro do trabalho Luiz Marinho de que os Correios podem dispor de um modal tecnológico capaz de substituir empresas como a Uber. Defendemos também que seja estimulada e apoiada a criação de alternativas locais de tecnologia no âmbito do associativismo e cooperativismo, como na criação de linhas de créditos específicas por meio de bancos públicos como o BNDES e o Banco do Brasil que possam financiar estas iniciativas, bem como aportar créditos aos trabalhadores como na criação de linhas específicas para aquisição de veículos.
22. A ampliação de direitos para trabalhadores por plataforma está diretamente relacionado à forma como o estado compreende os serviços de tais empresas. Procedimentos de regulação públicos são fundamentais para garantir melhores condições para trabalhadores e usuários. Não obstante o próprio estado pode assumir, por meio das empresas públicas (como destacamos acima), parte das atividades hoje desenvolvidas por empresa privadas de app, propomos o debate sobre a possibilidade de enquadramento de empresas de aplicativo no escopo da Lei 8987/95 que trata das concessões e permissões públicas à iniciativa privada, como ocorre no âmbito das telecomunicações e transportes públicos, serviço de táxi, etc. Caso prospere tal entendimento, em tese, parte do processo de regulamentação da atividade, relação laboral e qualidade do serviço poderiam estar incluídos nos termos do edital de licitação próprios desta modalidade de contrato.
23. A Intersindical Central da Classe Trabalhadora compreende que estas propostas ainda necessitam de maior aprofundamento, análise de viabilidade e exame das etapas de construção necessárias no Executivo e no Legislativo. Não obstante as insuficiências desta contribuição, procuramos apresentar aqui um quadro mais geral do problema, tratando em distintas dimensões, tanto do trabalho quanto da regulamentação deste setor de atividade. Seguimos no esforço unitário para garantir a máxima: nenhum trabalhador ou trabalhadora sem direitos, nenhuma atividade sem regulamentação.
ALMEIDA, Paula Freitas de & KALIL, Renan Bernardi. Uma visão comparada de decisões sobre o vínculo jurídico dos trabalhadores via plataformas digitais: EUA (Califórnia), Espanha, Uruguai e Brasil. In: DIEESE. Revista Ciências do Trabalho, n°20, 2021. Disponível em: Revista Ciências do Trabalho – n. 20 (2021): Plataformas Digitais (acesso em 10/02/2023)
BIAVASCHI. Magda Barros. As Plataformas Digitais e os Trabalhadores: o sistema público de proteção social ao trabalho, 2022. Texto encaminhado pela autora.
GARCIA. Lucia dos Santos & CALVETE, Cássio da Silva. Trabalhadores/as em plataformas de trabalho no brasil – contribuições ao desafio do dimensionamento e dinâmicas do tempo trabalhado e das remunerações. In: DIEESE. Revista Ciências do Trabalho, n°21, 2022. Disponível em: Revista Ciências do Trabalho – n. 21 (2022): Plataformas Digitais II (acesso em 10/02/2023)
SÃO PAULO, 11 DE MARÇO DE 2023
3° Congresso Nacional da Intersindical Central da Classe Trabalhadora
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