Não raras vezes a defesa de direitos humanos entra em rota de colisão direta com a defesa da soberania dos Estados nacionais. Também não raras foram as vezes em que, em nome dos direitos humanos, se justificaram intervenções imperialistas em diversas nações insubmissas aos mandos do centro do capitalismo mundial. As investidas contra Cuba e Venezuela ou intervenções “humanitárias” como a ocorrida no Haiti são exemplos da história recente nos quais a defesa difusa de direitos humanos por meio de organismos multilaterais acabou por não apenas promover ainda mais violações de direitos humanos, como por intervir na soberania e autonomia dos povos destas nações.
Análises rasas e deterministas destes episódios podem levar à equivocada conclusão de que se tratam os direitos humanos de uma pauta necessariamente liberal e a serviço do imperialismo. Não se pode olvidar, entretanto, das possíveis e necessárias disputas a serem travadas também em torno desta agenda. É certo que os organismos multilaterais de direitos humanos organizam-se desde uma estrutura liberal, em que tais direitos mais conformam um programa pretensamente universal que deve orientar a política de cada um dos Estados-parte, do que garantem quaisquer condições materiais ou imateriais para que os povos do mundo vivam uma vida digna.
Contudo, está posto à classe trabalhadora – aqui, inclusas todas as classes subalternas – o desafio histórico de exigir que mais do que um apanhado de normas esvaziadas de conteúdo material, como querem os liberais, os direitos humanos sejam efetivamente garantidos, de modo que passem a significar a concretude da dignidade humana. Para tanto, deverão ser condicionadas a política e a economia, de modo que os interesses de 1% da população mundial deixem de prevalecer sobre as condições de vida de uma imensa maioria de pessoas que não dispõe de outra forma de sobreviver que não pela venda – ou tentativa, em face do desemprego estrutural – de sua força de trabalho.
Num estágio em que o Capital depende cada vez mais de sua força destrutiva para garantir sua reprodução ampliada, a defesa dos direitos humanos pode – e deve, caso queira minimamente ser efetiva – alinhar-se à luta anti-imperialista, o que, no caso brasileiro – e de todas as economias capitalistas dependentes – implica engajar-se na defesa da soberania nacional.
A partir dessa perspectiva é que propomos um olhar sobre o acordo de entrega da Base de Alcântara aos EUA recém-firmado por Donald Trump e seu lambe-botas, Jair Bolsonaro. Assinado em março, o “Acordo de Salvaguardas Tecnológicas” (AST) regula o uso comercial do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) por parte do governo e de empresas estadunidenses e prevê a remoção de aproximadamente 800 famílias quilombolas que residem na área. Se de um lado é evidente a afronta à soberania nacional brasileira, de outro, a ratificação do acordo pelo Congresso Nacional implicará na expulsão de mais de 2 mil pessoas de seu território ancestral, acarretando violações de direitos de toda ordem. Ademais, a ampliação da Base Alcântara de 8 para 20 mil hectares impactará sobremaneira as relações econômicas, sociais, culturais das comunidades, destacando-se que uma das implicações do AST será a limitação do acesso das comunidades às áreas litorâneas de Alcântara. A situação de insegurança alimentar que se instalará caso o Acordo seja ratificado pelo Congresso é clarividentemente previsível e não pode ser admitida.
No afã de satisfazer os interesses dos EUA, o governo de Jair Bolsonaro viola uma série de normas nacionais e internacionais, com destaque para a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que determina a consulta prévia dos povos e comunidades tradicionais sobre qualquer medida que venha a impactar seus territórios ou modos de vida.
Noutra nota, ao que diz respeito à soberania nacional do Brasil, são igualmente graves as implicações do AST. Nele, está prevista a possibilidade de que os EUA utilizem a base militar do CSA para lançar foguetes e satélites e, nos termos da “parceria” comercial, limita o Brasil a utilizar somente componentes produzidos pelos EUA e suas empresas. Assim, no caso de lançamentos nacionais, será exigida do Brasil a aquisição de equipamentos exclusivamente dos EUA sem que haja contrapartidas como a transferência de tecnologias ou qualquer remuneração pela cessão de nossa base militar. Esta limitação se configura como inconteste interferência dos EUA nas decisões soberanas para o Brasil se desenvolver na área espacial. A condição subordinada do Brasil no acordo revela sua inconstitucionalidade, por não deixar dúvidas de que se conforma num verdadeiro atentando contra soberania nacional.
Diante deste descalabro conduzido pelo Poder Executivo, estão os demais Poderes da moribunda Nova República brasileira instados a defender, ao mesmo tempo, a soberania da Nação brasileira e os direitos humanos de 800 famílias diretamente afetadas pelo AST.
De um lado, o Acordo tramita na Câmara dos Deputados, submetido pela Presidência da República através da Mensagem nº 208/2019, que repete o texto da Mensagem nº 296, de 2001, a qual foi retirada pelo Autor em 2015, em face de inúmeras inconstitucionalidades e incompatibilidades. De outro, está sub judice do Supremo Tribunal Federal (STF) um Mandado de Segurança impetrado por parlamentares federais do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), no qual é pedida, liminarmente, a suspensão da tramitação da MSC 208 na Câmara federal.
A urgência e importância de se impedir que o AST seja ratificado pelo Congresso Nacional traz consigo uma oportunidade histórica: a unidade entre a defesa dos direitos humanos das 800 famílias quilombolas ameaçadas de remoção e a defesa da soberania nacional.
Diante disso, conclamamos a sociedade brasileira, notadamente às organizações e defensores de direitos humanos e àquelas e àqueles comprometidos com a defesa da soberania de nosso povo à unidade necessária para barrar o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas.
Em defesa do Brasil e da soberania de nosso povo!
Em defesa de nossos quilombos!
O povo brasileiro diz NÃO à entrega de Alcântara!
*Guilherme Rodrigues Tartarelli Pontes é advogado, mestrando em Políticas Públicas em Direitos Humanos pela UFRJ. Membro da Coordenação Política Nacional das Brigadas Populares.
Fonte: Observatório da Democracia
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